Diversidade nas escolas de elite: qual o papel das ações afirmativas?
Neste artigo, o educador e pesquisador Leo Bento compartilha resultados de sua dissertação de mestrado e caminhos para a implementação da educação antirracista em escolas particulares
por Leo Bento 25 de novembro de 2024
Miguel (nome fictício) foi para a escola bem cedinho, como todos os dias. Ele fez todas as atividades que foram propostas, estava ali de prontidão, contribuiu de forma significativa para as aulas. É considerado pelos professores um dos melhores estudantes, e isso acontece com outros colegas que possuem as mesmas características que a dele: menino negro, pobre e que mora longe do “vale encantado das escolas da zona oeste da cidade de São Paulo” (importante: para quem não conhece a capital paulista, trata-se de uma das regiões mais ricas da cidade). Mas o menino, mesmo com todo o bom desempenho, não consegue superar a falta de entrosamento com os colegas de classe e a exclusão dos convites para as festas e diversos passeios que a turma faz nos fins de semanas.
A escola em que Miguel estuda é uma dessas que gozam de certo prestígio entre a classe média alta da cidade. São instituições particulares com mensalidade média em torno de R$ 7,8 mil. A pergunta que surge é: como Miguel fez para estar ali sendo negro e pobre, características que no Brasil são aliadas por conta do nosso processo histórico de discriminação e exclusão sistemática?
📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
Após a onda de protestos que ocorreram em diversos países do Ocidente, impulsionados pelo assassinato de George Floyd, homem negro morto pela polícia norte-americana em 2020, famílias pagantes de escolas com esse perfil se sensibilizaram para a pauta do racismo estrutural no país e forçaram gestores a tomar uma atitude diante da falta de diversidade.
É claro que não foi somente esse evento que impulsionou tal decisão. Há um movimento neste sentido desde a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe em seu cerne a garantia de direitos que se apresentou como um compromisso do Estado brasileiro. Estudos do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) evidenciaram as desigualdades raciais latentes no Brasil.
Soma-se a isso a ação de militantes do Movimento Social Negro, com apoio da Fundação Ford que convenceram a Elite do Poder (segundo Charles W. Mills, um grupo seleto atuante na tomada de decisões no mundo financeiro, em empresas, na área militar e política) que era de suma importância a criação de políticas públicas que pudessem trazer equidade para a população.
Logo, a implantação de ações afirmativas em universidades como a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense), UNEB (Universidade do Estado da Bahia) e UNB (Universidade de Brasília) no início dos anos 2000, seguida da criação do PROUNI (Programa Universidade para Todos) em 2004 e da Lei 12.711/12 (que garante cotas sociais e raciais nas universidades federais) se apresentam como ações para dar conta de um certo equilíbrio racial. Embora ainda estejamos longe de algo ideal.
Então, foi dado o pontapé inicial por essas escolas, para que saíssem na vanguarda de implementar políticas de ações afirmativas, oferecendo bolsas com recorte racial para estudantes negros e indígenas, com o objetivo de ampliar a diversidade entre o corpo discente.
Relacionadas
Baixe já o Jogo de Tabuleiro Antirracismo na Escola
O impacto da educação na vida de um jovem negro, gay e periférico
Falar sobre cabelo afro é fortalecer a educação antirracista
Ações afirmativas
A preocupação inicial da minha pesquisa de mestrado era tentar entender como esse processo aconteceu. A hipótese era a de que havia ocorrido a ampliação da diversidade sem que fosse feita a inclusão racial desses novos estudantes, o que se provou o contrário. Foram entrevistados quatro gestores de escolas dentro deste perfil, que tinham decidido pela implantação da política de bolsas com recorte racial.
Nas entrevistas, o que encontrei foi uma ruptura com o discurso do mito da democracia racial: todos foram enfáticos em apontar o racismo como um problema a ser combatido. Foi apresentada também uma série de práticas que alicerçaram as políticas de ações afirmativas, dentre elas: letramento racial da comunidade escolar; formação continuada dos educadores; criação de políticas de contratações afirmativas e implementação da Lei 10.639/03 na educação infantil, nos fundamental (anos iniciais e finais). Já no ensino médio, que é o momento em que os estudantes estão focados no vestibular, essa normativa aparecia muito mais evidente nas disciplinas eletivas, aquelas que os alunos poderiam escolher ou não fazer.
É inegável que houve uma ampliação da diversidade com a implementação das bolsas. Isso resultou na saída de algumas famílias que não assumiram o racismo como pano de fundo para a decisão, mas alegaram não estarem de acordo com o Projeto Político-Pedagógico da escola justamente no momento em que elas garantiam espaço para que o filho da empregada doméstica e do motorista de ônibus estivesse ao lado de seus filhos na sala de aula – e não numa condição de subalternidade. Em contrapartida, algumas escolas enfatizaram, mesmo com esse revés inicial, a ampliação do público pagante que buscaram essas escolas mesmo com uma ampliação diminuta em termos de quantidade da diversidade nesses ambientes.
Ainda que esse crescimento da diversidade com as bolsas com recorte racial tenha sido tímido, percebe-se que crianças autodeclaradas indígenas conforme categorização do IBGE não foram contempladas por dificuldades logísticas, como a distância das aldeias em relação ao “vale encantado”, dentre outras questões. Situações como estas também foram identificadas com o público negro: ao atrelar inicialmente as bolsas a um recorte racial e social, percebeu-se que a integração das crianças com bolsas integrais não estava sendo algo benéfico. Apareceram barreiras financeiras, como a aquisição de materiais didáticos, livros, uniformes, alimentação, transporte, saídas pedagógicas e participação em eventos (festas e idas aos shoppings) com os colegas de classe, como exemplo dado acima com o estudante Miguel.
Para resolver esta situação, as escolas incentivaram a criação de fundos junto à comunidade escolar para financiar essas ações. Outra alternativa foi o desdobramento das bolsas integrais em parciais, de forma que uma bolsa de 100% poderia se transformar em duas de 50% ou quatro de 25%. Isso garantiria a ampliação da diversidade com a atração de famílias negras de classe média, retorno financeiro e a não necessidade de arcar diretamente com todos os materiais que os alunos precisam para garantir permanência na escola, bem como a definição de residência em bairros próximos para que os estudantes não tivessem de ficar horas no transporte para chegar às aulas.
Observou-se ainda que, mesmo com todo esse esforço, as escolas tinham uma ampliação de estudantes negros que girava em torno de 1 a 9% do público geral. Em sua maioria, os gestores apontavam que pretendiam com essas políticas espelhar em suas escolas o percentual da diversidade da população brasileira, que é de 56%. Dessa forma, considerando a quantidade de bolsas oferecidas por essas escolas anualmente, levarão de 31 a 165 anos para atingir essa meta.
Diante desse cenário, fica evidente que a inclusão racial em escolas de elite ainda enfrenta desafios significativos, especialmente no que diz respeito à verdadeira integração dos estudantes bolsistas. Contudo, iniciativas como as bolsas com recorte racial e a criação de fundos de apoio mostram que é possível avançar em direção a uma educação mais equitativa e plural na rede privada.
Em suma, o compromisso dessas escolas em reconhecer e combater o racismo estrutural, aliando ações afirmativas a práticas pedagógicas inclusivas, aponta para um futuro onde a diversidade não seja apenas números, mas uma realidade que seja capaz de transformar o ambiente escolar. Sendo assim, é necessária uma trilha de práticas positivas que integrem todos os estudantes sem distinção, principalmente para que os “Miguéis” de hoje não apenas estejam presentes nesses espaços, mas sintam-se verdadeiramente pertencentes e valorizados.
Recomendações para ampliação da diversidade e das ações afirmativas em escolas da rede privada:
- Realização de um diagnóstico para a diversidade;
- Medição da qualidade da educação para a diversidade;
- Criação, implementação e monitoramento de um plano de ação para a diversidade;
- Formação continuada do corpo docente;
- Currículo voltado à temática decolonial;
- Criação de um protocolo que fique claro para toda a comunidade escolar sobre medidas antirracistas;
- Implantação de políticas de ações afirmativas.
➡️ Leia também: Manual gratuito orienta escolas para práticas antirracistas