Com celulares, estudantes produzem guia de identificação de aves da caatinga
Professor na Paraíba desenvolveu projeto de observação de pássaros para aproximar os estudantes do território em que vivem
por João Paulo dos Santos Silva 18 de dezembro de 2024
O projeto “As Aves que Aqui Gorjeiam Não Gorjeiam Como Lá” foi desenvolvido com base em uma metodologia ativa de ensino, focada no uso de mídias móveis para estimular a aprendizagem investigativa dos alunos.
O trabalho foi realizado na ECIT (Escola Cidadã Integral Técnica) Jornalista José Itamar da Rocha Cândido, localizada no município de Cuité (PB), uma instituição voltada para a formação de estudantes do ensino médio. A escola adota uma proposta pedagógica que integra o desenvolvimento de competências acadêmicas, técnicas e socioemocionais.
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A proposta central, desenvolvida com estudantes do 3º ano do ensino médio, consistia em utilizar os celulares, que já fazem parte do cotidiano dos estudantes, como ferramentas para promover a educação ambiental. A ênfase estava no reconhecimento e na preservação da biodiversidade local, especialmente das aves da Caatinga.
Uso de celulares
Só que nem todos os estudantes possuíam celulares. Para contornar essa situação, organizei a turma em grupos, assim quem não tivesse o aparelho poderia realizar a atividade com o dispositivo de outras pessoas. Também levei de casa uma câmera e um tablet para complementar os recursos disponíveis. Recorremos ainda aos computadores do laboratório de informática para apoiar as atividades quando necessário.
E não foram todas as atividades que precisaram de tecnologia. Algumas foram adaptadas para uma forma mais analógica, como a criação de registros manuais e desenhos baseados nas observações de campo. Nosso objetivo era garantir que nenhum estudante ficasse de fora, independentemente das condições individuais. A ideia central do projeto era promover inclusão e engajamento, e acreditamos que conseguimos alcançar isso ao adaptar o processo às realidades dos nossos alunos.
Um dos momentos mais interessantes do projeto foi observar uma população de corujas que vivem nos buracos do estacionamento da escola. Elas se tornaram as estrelas do projeto, chamando a atenção dos estudantes pela sua curiosidade e interação com o ambiente escolar. Essa experiência também incentivou os alunos a observar outras aves típicas da região, como o galo-de-campina, sabiá, João-de-barro, rolinha, cancão, azulão, pardal e golinha.
Como foi preparar o projeto
A preparação envolveu o planejamento de uma sequência didática, dividida em 20 aulas ao longo de seis semanas. Inicialmente, foi realizada uma introdução ao tema da biodiversidade, com ênfase na importância da conservação das aves. Os materiais utilizados incluíram celulares para fotografia de aves, cartolinas, folhas de papel pardo, canetas, lápis de cor, barbante e pranchetas, garantindo uma abordagem prática e criativa.
Em parceria com o Instituto Federal da Paraíba – Campus Picuí, que forneceu mudas de árvores, foram realizadas atividades de plantio no entorno da escola, reforçando o engajamento dos estudantes com a conservação ambiental.
Estudo da biodiversidade
Os alunos iniciaram o projeto com uma pesquisa sobre o conceito de biodiversidade e sua importância para o equilíbrio ecológico. Utilizando celulares para acessar materiais online, investigaram o tema e realizaram uma análise do entorno da escola, identificando a necessidade de plantio de árvores para melhorar o habitat local.
As principais dúvidas que surgiram incluíam inicialmente a identificação das aves, pois muitos alunos não sabiam como identificar espécies ou como diferenciá-las com base em características físicas e comportamentais. Outro ponto relevante foi a compreensão do conceito de biodiversidade. Notei que alguns estudantes enfrentaram dificuldades para entender exatamente o que o termo abrangia e como ele se relacionava com o cotidiano.
Outros problemas iniciais se apresentaram como a falta de familiaridade com o método científico, dificuldades no uso de celulares para fotografia, preconceitos com aves locais devido à aparência delas e limitações do acesso aos dispositivos, como mencionado anteriormente.
Fotografia e identificação das aves
Os alunos foram orientados a utilizar os celulares para fotografar aves no entorno da escola e em suas comunidades. Essas fotos serviram de base para a criação de um guia de identificação de aves locais, no qual cada estudante contribuiu classificando as espécies encontradas.
Feitas as fotografias, alguns dos achados foram:
Diversidade de espécies no entorno escolar e comunitário: Os estudantes se surpreenderam ao identificar uma variedade de aves habitando os arredores da escola e suas comunidades, incluindo espécies que antes passavam despercebidas, como a coruja, o cancão e o azulão.
Importância das aves na Caatinga: Eles compreenderam o papel essencial das aves no equilíbrio ecológico do bioma, principalmente como agentes de dispersão de sementes e controle de pragas.
Relação entre aves e o ambiente urbano: A turma percebeu como algumas espécies se adaptam bem a áreas urbanas, enquanto outras necessitam de ambientes mais preservados, reforçando a importância da conservação de áreas naturais, mesmo em espaços próximos às cidades.
Impacto da ação humana: Ao analisarem as fotografias e o ambiente em que as aves foram encontradas, os estudantes observaram sinais de impacto humano, como poluição e desmatamento, que ameaçam a sobrevivência de algumas espécies.
Identificação de aves endêmicas: Uma das descobertas mais marcantes foi a identificação de espécies endêmicas da Caatinga, como o galo-de-campina (Paroaria dominicana), reforçando o valor único da biodiversidade local.
Conexão cultural com a fauna local: A atividade despertou um olhar mais atento para as aves que fazem parte do imaginário cultural da região, como as citadas em músicas, histórias e tradições locais.
Diário de Bordo
Também criamos um diário de bordo, no qual os estudantes registraram suas observações, anotando informações sobre o comportamento, habitat e características ecológicas das aves. Esse processo foi enriquecido com uma visita à Reserva Ecológica Olho d’Água das Onças, no município vizinho de Picuí. Lá, os alunos puderam ver mais espécies de aves e visitar o museu de aves da Caatinga.
Os registros nos diários de bordo foram diretamente relacionados ao currículo de Biologia e também integrados com outros componentes curriculares, como Matemática e Língua Portuguesa.
- Biologia: Conceitos de biodiversidade, relações ecológicas, ciclos da vida e adaptação dos organismos foram trabalhados de forma prática.
- Matemática: Os dados coletados durante o projeto foram usados para construir tabelas, gráficos e esquemas, desenvolvendo habilidades de interpretação e organização de dados.
- Língua Portuguesa: A produção dos diários de bordo envolveu textos descritivos e argumentativos, incentivando o desenvolvimento de habilidades de comunicação e protagonismo dos alunos.
Para que pudessem elaborar o diário de bordo, ofereci exemplos de como registrar observações, elaborar hipóteses e também documentar conclusões com clareza. O período dentro de sala de aula também foi importante, pois pude explicar conceitos ecológicos observados nas aves, como territorialidade, comportamento alimentar e papel na cadeia alimentar, conectando-os ao conteúdo curricular.
Orientei os alunos a formular perguntas mais específicas e a realizar observações sistemáticas, melhorando a qualidade dos dados registrados. Também encorajei os estudantes a buscarem conexões entre os temas abordados no projeto e outras disciplinas, como literatura e matemática, para enriquecer suas análises. Trabalhei para conscientizar os alunos sobre o valor de todas as espécies, mesmo as que consideravam “comuns” ou “pouco atrativas”, promovendo uma visão mais abrangente da biodiversidade.
Dúvidas frequentes dos alunos
Ao incentivar os estudantes a explorar mais sobre as espécies de aves e escrever sobre elas, percebi um aumento significativo na curiosidade da turma. Surgiram perguntas como: “De que forma interpretar o comportamento das aves?” Muitos alunos tinham dificuldade em relacionar comportamentos observados, como vocalizações ou interações, às adaptações ecológicas das espécies.
Outras dúvidas compartilhadas pelos estudantes incluíram:
Por que algumas aves são mais comuns que outras?
Os alunos demonstraram curiosidade sobre os fatores que determinam a presença ou ausência de certas espécies em um ambiente, como a disponibilidade de recursos e o nicho ecológico.
Como conectar a biodiversidade local aos problemas globais?
Houve dificuldade inicial em compreender como questões locais, como o desmatamento da Caatinga, estão ligadas a desafios globais, como as metas dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU.
Como redigir e estruturar o diário de bordo?
Muitos estudantes se sentiram inseguros quanto à organização dos registros e à aplicação do método científico para estruturar suas observações e conclusões.
Cartazes e manifestações artísticas
Em uma etapa posterior, os alunos elaboraram cartazes artísticos que combinavam literatura e informações científicas sobre aves. Esses cartazes foram apresentados em uma culminância, onde os estudantes discutiram a importância da conservação da biodiversidade e o papel de cada um na preservação do meio ambiente.
Aplicação da Agenda 2030 da ONU
O projeto também trabalhou com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU (Organização das Nações Unidas), abordando como os estudantes podem aplicar essas metas para transformar a realidade socioambiental da escola e da comunidade. Eles discutiram temas como a caça predatória e o tráfico de animais silvestres, relacionando essas práticas com a conservação da biodiversidade local.
Avaliação do projeto
A avaliação do projeto foi conduzida de forma contínua, processual e diversificada, para captar não apenas o aprendizado conceitual dos estudantes, mas também o desenvolvimento de habilidades, atitudes e engajamento com o tema.
A primeira avaliação foi diagnóstica. Antes de iniciar o projeto, aplicamos uma sondagem para identificar o conhecimento prévio dos alunos sobre biodiversidade, aves e conservação ambiental. Isso foi fundamental para traçar um ponto de partida e ajustar as atividades às necessidades da turma. Além disso, as anotações registradas nos diários de bordo foram analisadas para complementar a avaliação.
Para cada um dos conteúdos produzidos nesta atividade, usei determinados critérios avaliativos:
- Guia de identificação de aves: avaliamos a qualidade das fotografias, a correta identificação e classificação das espécies, bem como o esforço dedicado à pesquisa e à apresentação.
- Cartazes artísticos sobre aves: consideramos a criatividade, o conteúdo científico, a integração com elementos culturais (como literatura e música) e a qualidade visual da apresentação.
A participação nas etapas práticas, como a observação das aves, o plantio de árvores e a visita ao Museu das Aves da Caatinga, foi observada e registrada. Avaliei o engajamento dos alunos nas tarefas; Trabalho em equipe e colaboração e a aplicação do método científico nas atividades investigativas.
Ao longo do projeto, promovi momentos de autoavaliação para que os estudantes refletissem sobre suas aprendizagens, dificuldades e contribuições. Esse processo incentivou o protagonismo juvenil e a metacognição. Também forneci devolutivas contínuas, destacando pontos fortes e áreas para melhoria, tanto de forma individual quanto coletiva.
A culminância do projeto envolveu apresentações dos alunos sobre os resultados de suas pesquisas, proporcionando um momento de reflexão e compartilhamento das experiências.
Avanços e dificuldades
A metodologia de ensino por investigação foi uma das bases do projeto. Os estudantes exploraram o ambiente ao seu redor, registraram descobertas e propuseram soluções para problemas ambientais identificados. A coleta de dados sobre as aves e a elaboração do guia de identificação permitiram uma aplicação prática do método científico, conectando teoria e prática de forma significativa.
Uma das dificuldades iniciais foi a resistência de alguns alunos em usar o celular para fins educativos, já que estavam habituados a utilizá-lo para entretenimento. Contudo, essa barreira foi superada de forma gradual à medida que os estudantes se envolveram nas atividades práticas, como fotografar as aves e criar o guia. Esse processo despertou maior interesse e engajamento
Outro desafio enfrentado foi a falta de familiaridade de alguns estudantes com o processo de pesquisa científica e coleta de dados. Para superar essa dificuldade, foram realizados momentos de orientação individual e em grupo, proporcionando suporte para o desenvolvimento de habilidades investigativas e argumentativas.
As dificuldades estavam relacionadas principalmente a dois principais aspectos do projeto: o desenvolvimento de habilidades investigativas e a capacidade de argumentação científica. Essas dificuldades se manifestaram nas seguintes formas:
1. Formulação de Hipóteses: muitos alunos tinham dificuldade em transformar observações iniciais em perguntas ou hipóteses investigáveis. Por exemplo, ao observar as aves, não conseguiam identificar padrões ou levantar questões como “Por que algumas espécies preferem áreas abertas e outras áreas arborizadas?”
2. Coleta e Organização de Dados: embora engajados nas observações e fotografias, alguns estudantes encontraram desafios para registrar de forma sistemática as informações relevantes sobre as aves (comportamento, local, horário). Isso impactava na organização do diário de bordo e na análise posterior.
3. Interpretação e Análise dos Dados: após a coleta de dados, houve dificuldade em interpretar as informações de forma crítica. Por exemplo, identificar relações ecológicas ou os fatores ambientais que influenciam a presença de determinadas aves.
4. Argumentação Científica: os alunos tiveram dificuldade em defender suas ideias ou hipóteses com base em evidências. Ao apresentar suas observações e conclusões, faltava-lhes segurança para utilizar termos científicos ou relacionar os dados coletados ao conteúdo teórico discutido em sala.
5. Relacionamento com Temas Globais: conectar os problemas locais, como o impacto do desmatamento na Caatinga, com metas globais, como os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), exigiu uma orientação mais direcionada para contextualizar as descobertas.
Para superar essas dificuldades, foram realizadas sessões de orientação mais próximas, tanto individuais quanto em grupo, além de oficinas de metodologia científica que ensinaram como formular hipóteses, organizar dados e aplicar o método científico. Além disso, incentivei uma dinâmica de troca de ideias em sala de aula, para que os conhecimentos fossem construídos e socializados entre todos.
Inovação e produção de materiais
A principal inovação do projeto foi a utilização das mídias móveis como ferramentas educacionais. Em vez de restringir o uso de celulares em sala de aula, como tradicionalmente ocorre, o projeto integrou esses dispositivos de forma estruturada ao processo educativo. Aplicativos de fotografia, busca e pesquisa online foram usados para promover a aprendizagem ativa e a investigação científica. Essa abordagem aproximou os alunos da biologia e da ecologia, estimulando o protagonismo juvenil e permitindo que os estudantes assumissem o papel de agentes de suas próprias descobertas.
O Guia de Identificação de Aves tornou-se um material didático disponível no laboratório de biologia da escola, servindo como referência para estudos e atividades futuras. Por limitação de tempo, ainda não pensamos em uma versão para publicação, mas considero a ideia muito interessante e pretendo preparar esse material para disponibilização em 2025. Além disso, os diários de bordo produzidos pelos estudantes foram arquivados na minibiblioteca do laboratório, criando um registro valioso do processo investigativo.
Os cartazes artísticos desenvolvidos durante o projeto foram expostos nos murais da escola, onde puderam ser apreciados por todos os estudantes, ampliando o alcance das descobertas e promovendo maior conscientização sobre a biodiversidade local. Essas ações garantiram que o impacto do projeto fosse compartilhado e valorizado pela comunidade escolar.
Resultados
Transformar algo tão presente no cotidiano dos jovens, como o celular, em um recurso educacional ajudou a promover o senso de responsabilidade digital, demonstrando que o uso consciente do dispositivo pode ser um aliado no desenvolvimento de habilidades científicas e na construção de conhecimentos significativos.
Os alunos passaram a enxergar as aves e outros elementos da fauna e flora local como partes essenciais do equilíbrio ecológico. Muitos expressaram surpresa ao descobrir a rica biodiversidade da Caatinga, um bioma que antes não era plenamente valorizado.
A relação entre as ações humanas e os impactos negativos na biodiversidade ficou evidente para os estudantes. Eles relataram uma maior sensibilidade em relação ao desmatamento, à poluição e à caça predatória, compreendendo melhor a necessidade de preservação.
Muitos reconheceram a importância do papel individual e coletivo na conservação ambiental e começaram a pensar em soluções práticas para problemas locais. Entre as ideias apresentadas, pode-se listar campanhas de sensibilização, plantio de árvores e incentivo ao uso sustentável dos recursos naturais.
O processo de coleta e análise de dados sobre as aves possibilitou que os estudantes experimentassem como a ciência funciona na prática. Eles relataram maior confiança em formular hipóteses, observar padrões e propor soluções embasadas em evidências.
Além dos aspectos científicos, o projeto também trouxe um resgate de elementos culturais relacionados às aves. Os alunos conectaram suas descobertas a músicas, lendas e expressões artísticas regionais, valorizando o patrimônio cultural relacionado à biodiversidade.
Outro impacto relevante foi a mudança de comportamento pessoal relatada por muitos estudantes. Alguns passaram a evitar o descarte inadequado de lixo, incentivar familiares a plantar árvores e a observar e cuidar mais do ambiente ao seu redor.
O projeto também despertou o interesse pela ciência como ferramenta de transformação social. Alguns alunos manifestaram o desejo de participar de iniciativas futuras, como feiras de ciências e ações ambientais, ampliando seu engajamento em iniciativas sustentáveis e cidadãs.
João Paulo dos Santos Silva
Nascido em Cuité-PB, possui formação em Biologia pela Universidade Estadual da Paraíba. Especializou-se em Ciências da Natureza, suas Tecnologias e o Mercado de Trabalho pela Universidade Federal do Piauí e obteve o título de Mestre em Entomologia pela Universidade Federal de Viçosa - MG. Atualmente, é mestrando no Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de Biologia (PROFBIO) na Universidade Federal da Paraíba. Com uma trajetória dedicada ao ensino desde 2010, tem contribuído para a educação em Biologia em diversas instituições de Cuité-PB, tanto públicas quanto privadas. No momento, exerce a função de professor de Biologia na ECIT Jornalista José Itamar da Rocha Cândido e na ECI Orlando Venâncio dos Santos. Além de sua atuação em sala de aula, integra a comunidade nacional de educadores Liga STEAM, Coorte 2024, onde está envolvido em projetos que transformam o ensino das ciências por meio da tecnologia.