Coletivo de estudantes lidera debate em escola sobre violência sexual e meio ambiente
Finalista do Prêmio Melhores Escolas do Mundo 2025, o projeto “Em busca dos jardins”, da EMEF Saint-Hilaire, em Porto Alegre (RS), promove autoria, acolhimento e conscientização sobre violência e menstruação
por Maria Victória Oliveira
4 de agosto de 2025
Já imaginou uma escola receber mais de 300 denúncias de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes como resultado de um projeto pedagógico extracurricular? E mais: uma iniciativa criada pelas próprias estudantes? Essa era a realidade da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Saint-Hilaire, em Porto Alegre (RS), em 2024.
Com o projeto “Em busca dos jardins”, a escola é finalista na categoria “Superação de Adversidades” do Prêmio Melhores Escolas do Mundo 2025, premiação internacional criada em 2022 pela organização britânica T4 Education, que reconhece iniciativas educacionais inovadoras e transformadoras.
| Parceria Porvir e T4 |
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| A edição de 2025 do prêmio apresenta uma novidade importante. Como parceiro oficial da T4 Education no Prêmio Melhores Escolas do Mundo (World’s Best School Prizes) no Brasil, o Porvir reafirma seu compromisso com a valorização de boas práticas educacionais. Ao longo do ano, você poderá acompanhar por aqui uma cobertura especial sobre a premiação, incluindo entrevistas com educadores e especialistas envolvidos nas iniciativas finalistas, oferecendo orientações e exemplos inspiradores sobre essas experiências. |
Tudo começou com a professora de matemática Maria Gabriela Souza que, também atuando na biblioteca da escola, formou um coletivo de estudantes mediadoras de leitura. O grupo foi se formando, naturalmente, por meninas que compartilhavam assuntos do cotidiano, dando origem ao Coletivo de Mediadoras de Leitura Luisa Marques, em homenagem a uma estudante da instituição que faleceu em decorrência de leucemia.
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Em uma das reuniões, uma aluna fez um relato impactante de uma colega vítima de violência sexual no ambiente familiar. “Quando ela contou, eu não sabia como agir. Não havia um protocolo sobre o que o professor deve fazer ao receber uma denúncia. E ela me perguntou: ‘A gente pode fazer alguma coisa? Podemos contar uma história para alertar as pessoas sobre isso?’. Essa foi uma das primeiras ações do grupo. As meninas criaram a metodologia ‘Chama Violeta’, que combate a violência sexual por meio da contação de histórias, utilizando uma linguagem acessível para crianças e adolescentes”, relata Gabriela.
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O território, os desafios e a rede de proteção
A denúncia acendeu um alerta para que a educadora começasse a pesquisar sobre o território onde a escola está inserida, como compartilha Clarissa de Paula, assistente social do Departamento de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventudes da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.
“A escola está localizada na Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, um território de grande vulnerabilidade social, com índices alarmantes — e, muitas vezes, naturalizados — de violência contra mulheres e crianças. O Projeto RS Seguro, que mapeou os municípios com maior índice de violência letal juvenil, apontou a Lomba como um dos locais com maior número de mortes de jovens no estado”, explica Clarissa.
A assistente social conheceu o coletivo durante um seminário promovido pelo Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (CEEVSCA/RS). “Uma das frentes do nosso trabalho é a educação permanente da rede de proteção do estado. Durante o seminário do CEEVSCA, convidamos as gurias para apresentar o projeto. Foi amor à primeira vista. Elas são criativas e têm muito a contribuir. Defendemos que a criança não é o futuro – é o presente. E elas provam isso.”
A metodologia resultou em impactos expressivos. “Muitas adolescentes tinham medo de denunciar porque viviam há anos situações de violência. Percebemos que, quanto mais trabalhávamos esse assunto, mais denúncias recebíamos. No ano passado, foram 300”, destaca Gabriela.







Ações para transformar a realidade das meninas
Com o tempo, o coletivo se consolidou como um espaço seguro para debate. Os temas se ampliaram. Quando uma das integrantes menstruou, o tema virou pauta e inspirou a criação de uma nova metodologia do coletivo. Segundo Gabriela, a localização da escola dificulta o acesso a itens de higiene menstrual, já que farmácias, supermercados e postos de saúde ficam distantes.
Assim nasceu a frente “Garotas de Vermelho”. Em parceria com costureiras da comunidade, o grupo passou a produzir absorventes de pano reutilizáveis, que são distribuídos gratuitamente às estudantes. Além disso, confeccionam bolsas de sementes que, aquecidas no micro-ondas, ajudam a aliviar cólicas e reduzem faltas às aulas durante o período menstrual.
“Passamos a incentivar que as meninas se sintam confortáveis estando na escola enquanto menstruadas. Foi algo que realmente transformou a dinâmica escolar. Os professores homens falam sobre isso; as alunas pedem licença para trocar o absorvente ou pegar a bolsa térmica. É uma superação incrível.”
Outra ação importante é a criação dos kits de saúde menstrual, compostos por um absorvente sustentável, uma bolsa de sementes e o livro “De onde é esse sangue, Joana?”, escrito pelas próprias estudantes para tratar do tema com sensibilidade e linguagem acessível.
O coletivo também escreveu o livro “Voar juntas”, sobre violência sexual, com o objetivo de incentivar denúncias sem causar medo nas crianças.
A atuação se estende ainda a outras áreas, como saúde mental, cuidado com o meio ambiente e trabalho do cuidado. Ações como o combate às queimadas e o plantio de árvores locais são incentivadas. O coletivo é frequentemente convidado para eventos em escolas públicas e privadas. Nessas ocasiões, conta com o apoio da Guarda Municipal para o transporte.
Em 2023, a frente dedicada à saúde menstrual foi premiada no Desafio Liga Jovem, promovido pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). O prêmio possibilitou que o grupo apresentasse o projeto no evento de inovação, tecnologia e empreendedorismo South Summit, em Madri, na Espanha.
Protagonismo das estudantes na defesa de direitos
Manuella Barcellos, de 12 anos, conheceu o Coletivo Luisa Marques aos 9. No início, estranhava falar abertamente sobre temas considerados tabus, como menstruação, saúde mental e violência sexual. Com o tempo, compreendeu a importância de discutir esses assuntos.
“Todos os temas que tratamos no coletivo são tabus. Quando tive a oportunidade de falar e escutar tudo isso de forma lúdica, comecei a entender e me interessei pelos meus direitos. Ninguém nunca tinha conversado comigo sobre menstruação, limites do meu corpo ou saúde mental. Nem conhecia o Parque Saint-Hilaire, que fica ao lado da escola. O coletivo me deu muitas oportunidades de aprender e explorar novos lugares. Foi algo incrível para mim.”
Manuella conta que passou a levar os ensinamentos que aprendeu no coletivo também para dentro de casa. Quando menstruou aos 10 anos, ouviu de seus familiares que “ficou mocinha”. “O coletivo me ensinou que não se ‘vira mocinha’, porque eu vou continuar sendo uma criança. E, quando se fala ‘mocinha’, muitas pessoas entendem isso com outro significado. Eu sei que [na família] não é por mal, porque eles não foram criados com essa consciência, vieram de uma geração passada em que não se falava sobre menstruação.”
Ela conta que, desde o primeiro momento, se sentiu inspirada ao ver as outras meninas do coletivo falando sobre os direitos das crianças e adolescentes, e sentiu vontade de se juntar a essa luta, mostrando que as crianças têm voz.
“A gente enfrentou muitos desafios, principalmente com o nosso primeiro projeto, ‘Chama Violeta’, que combate a violência sexual. Disseram que a gente não tinha idade para falar sobre isso. Só que, se a gente não for falar, quem vai falar por nós? Nós somos as pessoas que mais sofrem com todas essas injustiças — sejam as queimadas no Parque Saint-Hilaire, as pessoas subestimando a saúde mental ou dizendo que menstruação é algo sujo. A gente não podia deixar isso continuar acontecendo. Óbvio que levou um baita tempo pra gente conseguir apoio da nossa comunidade. No começo, a gente não tinha muito, mas agora todo mundo nos apoia em tudo. Por isso é que a gente continua.”
O anúncio das escolas vencedoras da edição de 2025 do Prêmio Melhores Escolas do Mundo será em outubro.





