Como a leitura pode auxiliar a implementação da lei 10.639? - PORVIR
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Inovações em Educação

Como a leitura pode auxiliar a implementação da lei 10.639?

A lei 10.639/03 inclui o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos. Como a leitura se encaixa nisso?

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por Ruam Oliveira ilustração relógio 8 de julho de 2022

Puxe pela sua memória: quantas vezes você abriu um livro e a personagem principal era negra? Quantos livros já leu em que fenótipos negros e indígenas eram valorizados e não postos em posições inferiorizadas? A resposta para essas perguntas pode impulsionar em você o desejo de trabalhar com conceitos de educação antirracista. E a leitura traz caminhos possíveis nesse sentido. 

Em 2003, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) foi alterada para incluir a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira por meio da lei 10.639. Cinco anos depois, em 2008, acrescentou-se a obrigatoriedade também de incluir a história dos povos indígenas e originários no currículo das escolas, com a lei 11.645.

No texto de 2003, há a indicação de que esses conteúdos podem ser trabalhados especialmente em artes, literatura e história. O que, claro, não impede que sejam também apresentados em disciplinas como ciência e matemática, por exemplo.

Literatura e arte

Dentro desta noção de leitura no contexto da arte, as possibilidades de desenvolver estratégias na educação antirracista são amplas. “Colocando a leitura como expressão artística, ela traz possibilidades de ajudar esse aluno, jovem ou criança a se enxergar no mundo e enxergar o mundo de uma outra forma”, aponta Laís Rodrigues, consultora pedagógica de Árvore. 

A especialista reforça que a leitura pode moldar o olhar social para a valorização das identidades e da contribuição que a população negra e indígena na construção do país. 

É por meio da leitura, também, que interpretações equivocadas e preconceitos podem ser discutidos e desfeitos. “A Lei 10.639/03 mostrou o quanto é grande nossa ignorância sobre a origem continental africana. Isso impacta o imaginário e, por sua vez, o modo de perceber o mundo e a vida ao redor. Ignorar é se afastar do conhecimento”, diz a escritora Heloísa Pires de Lima, autora do livro infantojuvenil “Histórias da Preta”. 

A escritora afirma que “uma expressão literária, quando a autoria brota de vivências como as do segmento negro da população,  pode ser acolhida por outros corações. E, como Arte, pode ampliar a percepção para o além do comum”.

Ela se lembra de um ditado recorrente dentro da literatura, que aponta a leitura como “janela para o mundo”. A frase tem certo sentido, mas precisa ser contextualizada sempre.

Formas diversas de abordar a leitura

Os estudantes são constantemente expostos a diferentes situações que envolvem a leitura. E elas vão além do texto propriamente escrito. Seja nas redes sociais, em sites, vídeos ou material em áudio, essas possibilidades devem sempre ser levadas em consideração pelos professores e professoras. 

Laís sugere que os educadores olhem para essas múltiplas possibilidades de leitura, sempre como oportunidades. Se, por exemplo, o estudante gosta de TikTok ou Twitter, de que maneira esses textos podem ser puxados para o contexto de aula? Além de muitas dancinhas, o TikTok também é conhecido por viralizar indicações de livros, por exemplo. 

E por que não pedir que os estudantes construam histórias no Twitter ou trabalhem fanfics (versão reduzida da palavra fanfiction, que, em tradução livre, significa“ficção de fã”) sobre determinado personagem de um livro? A especialista sugere que, em vez de tentar lutar contra essas formas de ler, que os educadores vejam essas ferramentas como aliadas.

Usar de diferentes elementos, para além do texto, é uma maneira de desenvolver nos estudantes uma habilidade de leitura de mundo mais ampla que impacta também no senso crítico e na forma de ver a vida.

Criticidade e cidadania

Como disse a escritora Heloísa Pires de Lima, há ainda uma lacuna grande a respeito do conhecimento que se tem sobre a história africana, que foi tão importante para a construção do Brasil. 

Trabalhar com projetos de leitura que valorizam essa contribuição faz com que os alunos também desenvolvam seu senso crítico e sua capacidade de compreender suas identidades. O Brasil é um país com 56,1% de sua população composta por pessoas negras e, portanto, é importante que a educação antirracista esteja presente no currículo. 

“O texto tem que estar a serviço dessa construção de leitura crítica. É colocar o texto de fato na mão desses alunos, mas não só ler e pronto, mas aprender como que aquilo está inserido e o que a gente pode tirar desses temas tanto para o aprendizado, para essa construção, quanto para desconstrução também”, pontua Laís. 

Foco na valorização das culturas

O Colégio Franciscano Imaculada Conceição, da Rede Clarissas Franciscanas, em Governador Valadares (MG), desenvolve anualmente o projeto “Da África para o mundo”, com estudantes do 4º ano do ensino fundamental. Por meio de livros que levantam o debate sobre o tema, a escola propõe diversas atividades como, por exemplo, o concurso “Releituras da Memória”. 

“Um ponto fundamental da proposta desenvolvida é refletir sobre a importância dos povos de origem africana para além da questão do nosso passado escravagista, que evidentemente não pode ser negligenciado, mas proporcionar às crianças conhecer a beleza e riqueza da diversidade cultural. Conhecer um pouco do que há da África em nós”, explica a professora Elizeth Gonçalves da Cunha, coordenadora pedagógica dos anos iniciais do ensino fundamental. 

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Por trabalhar com crianças muito pequenas, a educadora ressalta: investir em uma estratégia lúdica facilita com que o tema seja discutido com elas. Elizeth comenta, ainda, que pode ser um tema delicado por envolver questões como racismo, mas não descarta a importância de que ele seja tratado na aula. 

“A leitura, principalmente para a faixa etária das crianças dos anos iniciais do ensino fundamental, é primordial para a implementação da lei. Por meio da leitura, podemos refletir de forma lúdica e contextualizada sobre a influência da cultura africana, reconhecendo todas as contribuições dos negros e afrodescendentes na construção da história, da cultura, da política e da economia brasileira”, diz a professora. 

A escola explora a possibilidade de leitura para além do texto. O projeto envolve ações como rodas de conversa, seminários, vídeos, entrevistas, filmes, oficinas e debates. Há, também, parcerias com coletivos negros da cidade que atuam principalmente nas oficinas. Elizeth explica que essas atividades sempre acontecem de maneira interdisciplinar ao longo do ano. 

Caminhos possíveis

Ao tratar sobre literatura que aborda questões raciais, além de observar um contexto histórico, é possível estabelecer conexões com o presente e com o futuro. 

“A literatura, para além de seu potencial subversivo, abre a possibilidade de pensar outros mundos possíveis. Pensemos nas narrativas afrofuturistas, por exemplo, caracterizadas por textos ficcionais que se permitem imaginar como seria a vida de africanos, caso a expansão colonial europeia não tivesse ocorrido. Essa parece ser uma oportunidade para que crianças e jovens reconheçam a experiência negra para além do racismo. Assim como aqueles livros que trazem a riqueza de nações africanas, a diversidade de brincadeiras, os diferentes jeitos de ser e estar no mundo”, diz Luciana Alves,  pró-reitora adjunta de assuntos estudantis na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e consultora do Instituto Alana. 

Ao explicar esse viés que vai além do racismo, ela pontua que há algo que considera ainda mais importante: educação para as relações étnico-raciais. Em resumo, esse conceito subsidia a construção de novos sentidos sobre a diversidade humana, em especial a diversidade racial. 

Ou seja, por meio da leitura é possível refletir não somente a respeito de representações negativas e estereótipos sobre a população negra que foram construídos ao longo do tempo, mas também criar consciência sobre situações não ligadas diretamente a aspectos raciais.

“Em levantamento bibliográfico que coordenei no CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), no qual e analisamos 104 teses e dissertações defendidas a partir dos anos 2000 que tratavam do tema racismo e infância, o trabalho com literatura correspondia pela esmagadora maioria de projetos bem avaliados pelos pesquisadores e pesquisadoras das relações raciais e educação”, comenta Luciana. 

“Tais autores sinalizavam a diversidade de temáticas presentes nos livros destinados a crianças e jovens que remetiam não apenas à constituição de uma representação positiva da população negra, mas também remetiam a elementos da cultura africana e afro-brasileira, dilemas com relação ao cabelo e corpo crespo, além de outros que são comuns a toda infância urbana, como o medo de dormir sozinho ou a escolha de profissões, sem que a questão da pertença racial estivesse em primeiro plano”, conclui.

Heloísa comenta que os livros podem ser bons mediadores para conversas, sendo capazes de ampliar jeitos de olhar e ler a existência, com todas as particularidades que cada pessoa tem. Para ela, é uma garantia cidadã que responde ao desejo de equidade que se a sociedade almeja alcançar. 

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competências para o século 21, educação antirracista, ensino fundamental, ensino médio, socioemocionais

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