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Inovações em Educação

Com mais alunos autistas, escolas seguem sem resposta à diversidade

Mesmo com garantia legal, falta de professores de AEE (Atendimento Educacional Especializado) escancara os desafios da inclusão escolar no Brasil

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 4 de maio de 2025

O número de estudantes diagnosticados com TEA (Transtorno do Espectro Autista) nas escolas brasileiras aumentou mais de 20 vezes na última década. Em 2015, eram pouco mais de 41 mil matrículas. Já em 2023, o número saltou para 884.403, de acordo com os dados divulgados em mês de abril pelo Censo Escolar 2024

O crescimento acompanha uma tendência global. Nos Estados Unidos, segundo relatório do CDC (Centers for Disease Control and Prevention), de 2023, uma em cada 36 crianças de 8 anos foi diagnosticada com TEA. Para efeito de comparação, nos anos 1980, este número era de aproximadamente 4 em cada 10 mil crianças. 

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No Brasil, embora não haja um censo populacional específico, projeções do site Canal Autismo indicam a existência de cerca de 6,9 milhões de pessoas dentro do espectro.

Para o cientista Holden Thorp, editor-chefe da revista Science (uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo) e professor da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, a narrativa ignora um fator fundamental: o aumento não está no número de casos, mas na capacidade de identificá-los.

“Se eu fosse criança hoje, provavelmente teria sido diagnosticado bem cedo”, escreveu em recente artigo publicado no jornal New York Times. Holden só recebeu a confirmação de estar no espectro aos 53 anos, após uma avaliação profissional. Seu exemplo reflete como muitos casos passaram despercebidos em um passado recente.

O avanço nos diagnósticos, de acordo com o cientista, reflete sobretudo avanços na conscientização, no acesso a avaliações e em critérios mais inclusivos, que hoje reconhecem manifestações mais sutis do espectro, especialmente entre meninas, mulheres e pessoas com altas habilidades. A antiga Síndrome de Asperger, por exemplo, foi incorporada ao espectro autista em 2013, ampliando o número de diagnósticos de TEA.

🎯Relembre as reportagens da série “Desafios da Educação Inclusiva”

“A mudança é positiva porque reconhece o autismo como um espectro, evitando divisões rígidas que dificultavam o acesso ao diagnóstico e ao suporte adequado”, explica a psicóloga e psicanalista Sílvia Oliveira, em entrevista à Agência Brasil.

Papel central da escola para os alunos com TEA

A escola tem papel central nesse cenário. Para Fábio Cordeiro, presidente da organização Neurodiversa pelos Direitos das Pessoas Autistas, o aumento no número de estudantes com TEA mostra que há maior visibilidade e que as famílias estão buscando seus direitos. “A escola acaba sendo um local estratégico para esse balanço”, diz.

Em entrevista ao Porvir, Deigles Giacomelli Amaro, especialista em gestão educacional no Instituto Rodrigo Mendes, destaca que a expansão das matrículas no Brasil é resultado do fortalecimento de políticas públicas de inclusão nas últimas décadas. Entre os marcos mais importantes estão:

– A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (2007)

– A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008)

– A Lei nº 12.764, de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA

– A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, nº 13.146 (2015)

Inclusão além do acesso

Atualmente, 92,6% dos estudantes da educação especial estão matriculados em turmas regulares. Para especialistas, como Deigles, esse dado é uma conquista importante, mas representa apenas o início da inclusão. O desafio agora é garantir a permanência com qualidade.

“Ter acesso à escola comum é um direito que, por muito tempo, foi negado. Agora, é preciso investir em condições adequadas para que esse aluno realmente aprenda”, destaca Deigles. Isso envolve desde a presença de professores especializados até a oferta do AEE (Atendimento Educacional Especializado) e de profissionais de apoio.

Contudo, dados do portal Diversa mostram que apenas um em cada três estabelecimentos de ensino com alunos da educação especial oferece AEE.

Falta de professores especializados agrava cenário

Apesar de o direito ao AEE ser previsto em lei, a realidade expõe uma lacuna. Em 2023, havia pouco mais de 59 mil professores de AEE em todo o Brasil, segundo o Painel de Indicadores da Educação Especial, levantamento do Instituto Rodrigo Mendes com apoio do Instituto Unibanco e do Centro Lemann. O número é insuficiente para as 178 mil escolas de educação básica, das quais 140 mil registram matrículas na educação especial.

Para Cleuza Repulho, consultora da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e coordenadora do programa Juntos pela Educação em Pernambuco, essa escassez está ligada à falta de valorização docente. 

“Isso ocorre, primeiramente, porque vivemos uma crise generalizada na carreira docente. A escassez de profissionais não atinge apenas a área da educação especial voltada a estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista, superdotação ou altas habilidades, mas afeta todas as áreas do conhecimento”, relata. 

“A profissão docente tem se tornado cada vez menos atrativa para os jovens, devido à desvalorização: faltam planos de carreira, a remuneração é baixa e há pouca estabilidade. No caso do AEE, uma área que exige formação e atuação específica, esse cenário se agrava ainda mais.”

Além disso, a falta de diretrizes nacionais claras faz com que cada rede implemente o serviço de forma diferente, o que aprofunda desigualdades regionais.

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Barreiras para o AEE ainda existem

Entre os principais desafios da inclusão, o Portal Diversa aponta:

1. Formação continuada para toda a equipe escolar; 

2. Contratação de profissionais de apoio; 

3. Baixo investimento público; 

4. Dificuldade de frequência no contraturno; 

5. Falta de materiais pedagógicos acessíveis; 

6. Número elevado de estudantes com deficiência por sala; 

7. Resistência de educadores à inclusão; 

8. Falta de transporte escolar no contraturno; 

9. Ausência de formação específica nas redes; 

10. Pouca participação das famílias. 

Atitude e informação

Maria Laura Gomes, especialista do Núcleo de Pesquisas e Tecnologias do Instituto Rodrigo Mendes, afirma que o principal entrave à inclusão escolar não é estrutural, mas atitudinal: “Não podemos tratar estudantes com deficiência e TEA como ‘café com leite’; todo ser humano aprende quando suas singularidades são respeitadas.”

Ela defende que escolas e empregadores adotem múltiplos formatos de ensino, desde materiais didáticos diversificados até tecnologias assistivas, e implementem estratégias pedagógicas que considerem cada perfil de aprendizagem. Esse modelo, diz Maria Laura, deve abranger todos os níveis educacionais, da educação básica ao ensino superior, e ser replicado no mercado de trabalho.

A especialista alerta ainda para o desconhecimento das famílias acerca de seus direitos. Embora a Constituição Federal (artigos 205 e 229) garanta matrícula obrigatória em instituições públicas e privadas, a exclusão de crianças com deficiência configura crime. “Muitas famílias ainda não sabem a quem recorrer nem como denunciar violações”, observa.

O desafio, conclui a pesquisadora, é mobilizar gestores, professores, legisladores e a sociedade civil para unir formação continuada, investimentos em infraestrutura e ampla divulgação dos direitos legais. Só assim a garantia de vaga se converterá em participação efetiva desses alunos – em sala de aula, nas atividades coletivas e, futuramente, no mercado de trabalho.


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educação inclusiva, inclusão

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