‘Crianças estão voltando para uma escola despreparada para recebê-las’
Pediatra e professor Daniel Becker avalia o atual cenário para estudantes e professores diante de sobrecarga de conteúdo e exigências
por Ruam Oliveira 26 de abril de 2022
Depois de dois anos longe dos pátios da escola e do convívio com colegas de classe, a volta ao presencial deveria representar um novo começo e, de certa forma, ser um momento muito esperado por jovens e adolescentes. No entanto, apesar de muitos terem se animado com a ideia de regressar à escola , há outros fenômenos acontecendo no contexto escolar: agressividade, ansiedade e depressão.
Que a saúde mental de todas e todos – estudantes, professores, famílias etc. – tenha sido impactada pela pandemia e por questões de distanciamento social, já é um fato. É difícil, porém, medir em quais níveis e de que maneira cada um foi atingido.
O pediatra e professor Daniel Becker aponta que muitas crianças e adolescentes foram expostas em excesso a telas, e que a impossibilidade de estar fisicamente com outras pessoas também comprometeu as habilidades de socialização. Além disso, Daniel reforça que a escola não está inteiramente preparada para lidar com muitas das questões emocionais que os alunos trazem nesta retomada.
De acordo com dados da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, apenas nos dois primeiros meses de aula de 2022 foram registrados mais de 4 mil casos de agressão física nas escolas estaduais. Isso representa um aumento de 48,5% se comparado com o mesmo período de 2019.
Casos de bullying, por exemplo, quase dobraram no período de dois anos. Em 2019 foram registradas 202 ocorrências; 359 apontadas em 2022.
Situações de ansiedade, depressão e crises de pânico têm sido relatadas com cada vez mais frequência. Recentemente, uma escola no Recife registrou um caso de crise de pânico coletiva, que acometeu 26 estudantes simultaneamente. Daniel pontua que situações como essa acontecem devido ao estresse e também à pressão que a escola pode produzir nos jovens, seja devido ao modelo educacional não adaptado, seja por questões de avaliação ou despreparo quando o assunto é acolhimento.
Leia abaixo a entrevista que o pediatra concedeu ao Porvir:
Porvir – Em seu ponto de vista, quais foram os principais impactos causados pela pandemia na saúde mental de jovens e adolescentes?
Daniel Becker – Para os adolescentes o período foi muito cruel. O convívio na cidade, especialmente na natureza, é muito importante para eles, e para as crianças também. O confinamento com os pais extremamente sobrecarregados, famílias tensas, conflituosas e muitas vezes com (situações de) violência, gera um clima pesado para as crianças.
O excesso de telas foi absurdo. Praticamente dobrou na pandemia. E tem se mantido assim no pós-pandemia. Crianças ficam 12 ou 14 horas hipnotizadas em telas, com o cérebro sendo danificado… Isso é realmente grave. Sem falar no excesso de comida ultraprocessada…
Porvir – O que já é possível perceber em termos de mudanças comportamentais nessa faixa etária?
Daniel Becker – Houve uma epidemia de sintomas psicossomáticos, emocionais e comportamentais impressionantes percebidos pelos pediatras logo no início da pandemia, inclusive. As crianças começaram a melhorar quando voltaram para o ar livre, quando puderam sair do confinamento e ver outras crianças, os avós, amiguinhos, especialmente melhoraram quando voltaram pra escola.
Mas algumas delas, ao voltar para a escola, seguiram com fatores de estresse, com medo de terem perdido a habilidade (da convivência). Igualmente, os adolescentes precisam muito dessa convivência. Ao ficar mergulhado dez, doze, quatorze horas por dia em telas e redes sociais que são tóxicas, ou em joguinhos ou em vídeos, perdem habilidades sociais, o cérebro delas fica prejudicado no seu funcionamento, elas tendem a ficar cada vez mais viciadas, cada vez querer se confinar mais e tendem também a mais situações de depressão, tristeza, introspecção e isolamento. São muitos os casos que vemos de crianças e adolescentes, especialmente os mais velhos, tendo dificuldade de voltar ao mundo real.
Porvir – Como enxerga a postura das escolas ao lidar com esse retorno presencial?
Daniel Becker – A escola quer recuperar conteúdo e isso é um absurdo. Fazer pressão em crianças que estão vindo de tanto sofrimento, que precisam, ao contrário, de momentos de mais relaxamento, do reencontro e de celebrar, é um equívoco.
Quando mal recebidas, elas podem explodir de diversas formas.
Porvir – Isso explica o aumento de violência e agressividade nas escolas?
Daniel Becker – Algumas vão explodir para dentro com sintomas de depressão, tristeza, introspecção, outras vão explodir para fora, com agressividade, rebeldia ou outro tipo de dificuldade.
Essa agressividade que está acontecendo nas escolas realmente é impressionante. É natural, é esperado, e seria previsível especialmente se a escola não está tendo atenção para isso. É hora da gente repensar o que está acontecendo nas escolas, de pensar na saúde mental desses alunos e colocar na escola grupos e atividades de acolhimento ou atividades de exercício.
Porvir – Quais as origens desse comportamento mais agressivo e menos sociável?
Daniel Becker – As crianças estão voltando de dois anos em situação de estresse profundo para uma escola que está despreparada para recebê-las. Estão vindo de famílias que ainda estão muito estressadas, onde muitas vezes esse mal estar não é reconhecido. Esse sofrimento, que está por trás dos sintomas e dos comportamentos atípicos, não é reconhecido e a criança ou adolescente acaba sendo castigada, apanhando, sendo objeto de gritos e broncas que são exatamente o que elas não precisam agora. Não há escuta, acolhimento para essas emoções.
Porvir – Em relação ao contexto de saúde mental, como delimitar e diferenciar o que é papel dos educadores, da escola e de profissionais especializados na área?
Daniel Becker – Sobre saúde mental, precisamos todos atuar neste tema. Não há uma delimitação clara, mas é óbvio que as crianças que estão sofrendo mais precisam de apoio profissional. As escolas têm que ter um corpo de saúde mental, fazer um convênio com a Secretaria de Saúde ou chamar um psicólogo ou psicóloga escolar. No caso da rede pública, encaminhar essas crianças para serem atendidas nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), ou por psicólogos na rede privada. As mais sintomáticas precisam realmente de ajuda.
Todo mundo está sujeito a uma pressão muito grande nas escolas
Porvir – Recentemente, foi noticiado um caso em que 26 estudantes de uma escola no Recife tiveram crises de ansiedade simultâneamente. Há alguma explicação possível para esse tipo de crise coletiva?
Daniel Becker – Todo mundo está sujeito a uma pressão muito grande nas escolas. Se uma criança começa a ter uma crise de pânico, que são um pouco contagiosas mesmo, vê outras que não conseguem respirar, ela começa a espelhar e passa a não conseguir respirar direito. Então isso desencadeia uma reação em cadeia. O que aconteceu é perfeitamente compreensível. Em certo sentido, foi muito bom isso ter acontecido. É claro que é uma tragédia, mas foi bom ter acontecido dessa forma porque chamou atenção no país inteiro para essa questão.
Porvir – Qual seria uma boa estratégia para que os jovens possam dar vazão a esses sentimentos?
Daniel Becker – Criar rodas de conversa, tentar ajudá-los a processar as vivências que tiveram durante a pandemia e que foram muito ricas. Eles testemunharam mudanças importantes no mundo, questões ambientais, questões políticas, a ciência, a colaboração, a internet… (é importante) deixar que falem da vivência deles nas redes, com o uso excessivo de telas, falar dos sintomas, do que que está sendo voltar para a escola. É trabalhar e processar essas vivências, especialmente habilidades socioemocionais, olhar atentamente para a questão do bullying.
A questão da violência física no pátio é mais visível. Já o bullying é uma violência silenciosa extremamente perigosa. Crianças chegam à depressão e ao suicídio muito rapidamente quando são vítimas de bullying, que é o assédio sistemático. Crianças que são diariamente perseguidas por outra ou por um grupo, isso é gravíssimo! Temos que estar atentos, as famílias devem estar atentas quando a criança vem da aula com comportamentos estranhos, muito recolhidas, entristecidas, não querendo ir para a escola. Essas crianças possivelmente são vítimas de bullying. É hora de a gente olhar de novo e reformar o papel da escola no acolhimento dessas crianças, e das famílias também.