E-book gratuito mergulha na história da linguística popular - PORVIR
Crédito: PeopleImages/iStock

Inovações em Educação

E-book gratuito mergulha na história da linguística popular

Em entrevista ao Porvir, o professor Roberto Leiser Baronas, da UFSCar, detalha as práticas linguísticas e sugere atividades para a sala de aula

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 19 de abril de 2022

Quando pensamos em linguística popular, é possível imaginar uma extensa lista de livros de referência em português, certo? Errado. Até poucos meses atrás, os principais textos desse campo de estudo estavam em inglês, francês ou alemão. 

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A fim de tornar parte dessa bibliografia acessível, os professores Roberto Leiser Baronas, Marcelo Rocha Barros Gonçalves e Tamires Cristina Bonani Conti, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), resolveram se debruçar sobre o tema e reuniram a pesquisa no e-book “Linguística popular/Folk linguistics: saberes linguísticos de meia tigela?” (Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 488 páginas). O acesso é gratuito. 

Dezoito textos compõem o livro, focado em valorizar e tornar mais acessíveis os saberes linguísticos de pessoas que não estudam a linguagem de um ponto de vista acadêmico. “O principal objetivo da linguística popular é compreender as práticas linguísticas dos não especialistas em ciências da linguagem. No contexto brasileiro, ainda estamos engatinhando”, ressalta Roberto Baronas. 

Nessa entrevista ao Porvir, Roberto, estudioso da linguística popular, da epistemologia e história da linguística brasileira, detalha, com exemplos do dia a dia, os diferentes eixos das práticas linguísticas, os mitos em relação às línguas fáceis ou difíceis de aprender, além de oferecer algumas dicas aos professores que queiram levar a temática para a sala de aula. Confira:

Porvir – Em linhas gerais, é possível explicar o que é a linguística popular?
Roberto Leiser Baronas – A linguística popular é um campo de estudos da linguagem já bem estabilizado no contexto norte-americano, com os trabalhos de Dennis R. Preston e Nancy Niedzielski, no contexto alemão com Gerd Antos, Franz Lebsanft e Martin Stegu, na França com Marie-Anne Paveau, e na Costa Rica com os trabalhos de Carla Victória Jara Murillo, só para ficar em alguns nomes relevantes. O principal objetivo da linguística popular é compreender as práticas linguísticas dos não especialistas em ciências da linguagem. No contexto brasileiro, ainda estamos engatinhando.

Roberto Leiser Baronas
Crédito: Arquivo pessoal Roberto Baronas (Arquivo pessoal)

Porvir – E o que são as práticas linguísticas? 
Roberto Leiser Baronas – São as práticas metalinguísticas (capacidade de falar sobre a linguagem, descrevê-la e analisá-la como objeto de estudo), epilinguísticas (reflexão que quem escreve ou lê faz para compreender ou atribuir sentidos ao texto) e metadiscursivas (aspectos do texto que se referem explicitamente à organização do discurso), como percepções, avaliações, crenças, convicções, atitudes, intuições linguísticas, entre outros, produzidas pelos leigos, os não cientistas da língua, sobre a sua própria língua e a língua do outro. Essas práticas linguísticas podem ser sistematizadas em quatro grandes eixos: prescritivas, descritivas, intervencionistas e militantes. 

Porvir – Como funcionam as práticas prescritivas?
Roberto Leiser Baronas – A prática prescritiva é a que mais salta aos olhos na nossa sociedade, pois cotidianamente vemos pessoas não especialistas em ciências da linguagem gerando comentários prescritivos sobre os usos linguísticos. Um exemplo dessas práticas são os trinta e quatro Projetos de Lei espalhados pelas casas legislativas brasileiras proibindo o uso da linguagem neutra

Porvir – E as práticas descritivas, como podemos explicá-las?
Roberto Leiser Baronas – Existe um trabalho bastante silencioso e muito pertinente dos não especialistas, com base em suas experiências metalinguísticas e de vida, que buscam registrar em dicionários colaborativos online verbetes e suas entradas correspondentes e que ainda não estão registrados nos dicionários tradicionais. Nesse sentido, há toda uma lexicografia colaborativa silenciosa sendo gestada pelos não especialistas e que fatalmente mudará o nosso jeito de construir dicionários e outros instrumentos linguísticos, como glossários, cartilhas, gramáticas… 

Porvir – O que dizer do conjunto de práticas intervencionistas?
Roberto Leiser Baronas – O movimento produzido pela cantora Anitta, e depois incorporado por outros artistas para a retirada das entradas iniciais do verbete patroa no dicionário do Google, é um exemplo disso. A pressão foi tão intensa que o verbete recebeu sentidos distintos dos que lá estavam. 

Porvir – Como exemplificar as práticas militantes? 
Roberto Leiser Baronas – Todo o trabalho dos movimentos negros em relação a substituição do termo escravo por escravizado é um exemplo. Essa troca não se dá somente no âmbito do léxico, mas principalmente no âmbito da história, uma vez que escravizado esvazia criticamente a agentividade de escravo.

Porvir – Vocês usam o subtítulo “saberes de meia tigela?” para referenciar o pouco valor atribuído aos saberes populares. Ainda existe o preconceito linguístico? Como vocês o identificam na obra?
Roberto Leiser Baronas – O uso da expressão meia tigela no subtítulo do livro, na forma de uma interrogação, é um recurso retórico, que busca dialogar com o pouco valor que os especialistas em ciências da linguagem, especialmente os linguistas, dão aos saberes produzidos pelos não especialistas. Com efeito, esse uso não tem um sentido preconceituoso ou ainda racista. Nossa questão com a expressão é de natureza epistemológica, portanto não é veicular preconceitos de qualquer natureza. Entendemos que os saberes produzidos pelos não especialistas podem ser perfeitamente incorporados pelos especialistas, num diálogo muito profícuo. 

Porvir – Como isso pode acontecer?
Roberto Leiser Baronas – É preciso adotar uma perspectiva epistemológica integrativa e não binária, que é a proposta do livro como um todo. Sobre os vários sentidos atribuídos a etimologia popular da expressão meia tigela, entendemos, no âmbito da linguística popular, que são todos válidos, embora nem todos tenham o mesmo valor na nossa sociedade. Nesse âmbito, especialmente a partir de uma abordagem integrativa com os estudos do discurso, não trabalhamos com a busca pelo sentido primeiro e/ou verdadeiro, pois nosso trabalho é entender como esses sentidos são construídos ao longo da história e, em última instância, como os sujeitos se apropriam desses sentidos e os transformam, por exemplo, em uma bandeira de luta em prol de um coletivo. 

Porvir – O bem falar, ou o bem escrever, podem se apropriar da linguística popular? Poderiam nos dar alguns exemplos?
Roberto Leiser Baronas – O bem falar e o bem escrever se inserem em um conjunto de práticas prescritivas sobre a língua, que é um dos quatro eixos com os quais trabalhamos e falamos anteriormente. Nossa questão, sempre numa abordagem integrativa, nunca nos esqueçamos disso, é incorporar essas práticas aos trabalhos dos especialistas, buscando entender por exemplo as razões pelas quais pessoas que são bastante progressistas em diversos temas na nossa sociedade são extremamente conservadoras em relação à língua. 

Porvir – Vocês também trazem observações de sala de aula, tanto do sexto ano quanto de crianças de 5 a 7 anos. O que podemos perceber no processo de alfabetização aplicado nas escolas em relação à linguística popular?
Roberto Leiser Baronas – A linguística popular nessa abordagem com as mais variadas ciências da linguagem pode trazer em diferentes níveis de ensino, da alfabetização ao ensino superior, uma enorme contribuição ao ensino de língua, quer seja materna ou estrangeira. Nesse contexto, é preciso dizer que a linguística popular trabalha não somente no âmbito do ensino de uma língua, o português, por exemplo, mas com o que chamamos de educação linguística. 

Porvir – E no que consiste a educação linguística?
Roberto Leiser Baronas – Significa levar em consideração não somente o papel normativo, reescrito nos saberes eruditos e científicos sobre a língua, mas principalmente os saberes leigos. Essa integração, além de alargar as possibilidades de diálogo entre os diferentes saberes (eruditos, científicos e populares), permite dar voz aos sujeitos produtores desses conhecimentos. Uma educação linguística que tenha em conta os sujeitos e os seus saberes permite que tenhamos acesso às suas crenças, percepções, convicções sobre a língua e o seu ensino, ampliando realisticamente esse ensino.  

Porvir – Quais são as suas sugestões para incorporar os saberes populares em sala de aula? 
Roberto Leiser Baronas – É sempre muito complicado dar dicas sobre ensino, quer seja de língua, história ou matemática, uma vez que essas dicas podem ser interpretadas como templates (modelos) a serem aplicados em outros contextos. Além disso, nossas pesquisas com a linguística popular dizem respeito muito mais às questões teóricas do que didáticas. Todavia, como professor de língua, arriscaria dizer que um bom começo seria trabalhar com as percepções que os alunos têm sobre a sua língua e a língua dos outros e, se for o caso, desconstruir criticamente esses saberes. 

Porvir – Como?
Roberto Leiser Baronas – Com base na percepção muito presente no imaginário de boa parcela da população, a de que existe “língua difícil ou língua fácil”, mostrar que do ponto de vista linguístico todas as línguas naturais são igualmente fáceis de aprender. Tanto são que um bebê, independentemente da sua nacionalidade, aprende a sua língua materna mais ou menos aos 24 meses de idade. Há uma série de pesquisas em psicolinguística que demonstram isso. A partir dessa discussão, poderíamos pensar em outras. 

Porvir – Poderia exemplificar?
Roberto Leiser Baronas – Quando um indígena se manifesta em público, essa manifestação, na grande maioria das vezes, recebe uma espécie de tradução às avessas, feita por um não indígena, ou seja, há sempre alguém fazendo comentários sobre essa manifestação. Mais tecnicamente falando, há sempre um falar sobre o indígena e raramente um falar do indígena. As discussões em diversos ambientes, administrativos, jurídicos, acadêmicos sobre a legalização do garimpo em terras indígenas são bons exemplos desse falar sobre. Levar esse tipo de debate para a sala de aula faz parte do que estamos chamando juntamente com outros colegas de educação linguística. Para finalizar, trago uma afirmação de Marie-Anne Paveau, presente no nosso livro: os saberes linguísticos populares “não são necessariamente crenças falsas, equivocadas a serem eliminadas da ciência”, mas, pelo contrário, representam “saberes perceptivos, subjetivos e incompletos a serem integrados aos dados científicos da linguística”.


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ciências da aprendizagem, ensino superior

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