Da assistência à aprendizagem: a educação infantil como guardiã dos direitos da criança
Como a educação infantil destaca a primeira infância como etapa decisiva do desenvolvimento humano e fundamental para o reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos
por Mayara Penina / Ruam Oliveira
29 de agosto de 2025
A primeira infância, fase que vai do nascimento aos seis anos de vida, é a janela de maior desenvolvimento do cérebro humano, segundo a ciência. Nesse período, 90% das conexões cerebrais, que podem chegar a um ritmo de 1 milhão por segundo, são estabelecidas. É um momento decisivo para consolidar as bases do aprendizado, da adaptação e da resiliência. No entanto, a maioria da população brasileira não a percebe como a fase mais importante da vida.
A recente pesquisa “Panorama da Primeira Infância: O que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros seis anos de vida” da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal com o Datafolha, confirma essa percepção: apenas 15% dos entrevistados reconhecem a primeira infância como período em que o ser humano mais se desenvolve. O levantamento apontou que 41% da população acredita que o desenvolvimento humano ocorre principalmente após os 18 anos.
🟠 Inscreva seu projeto escolar no Prêmio Professor Porvir
Para compreender o cenário atual, é preciso antes conhecer a história da instituição escolar no país. Esta é a primeira reportagem de uma série que aborda a trajetória da educação infantil no Brasil, questiona a desvalorização do cuidado como tarefa feminina e apresenta pedagogias das diversas realidades culturais e territoriais do Brasil.
Origens e transformações
A historiadora Katya Braghini, professora de pós-graduação na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), lembra que a escola no Brasil nem sempre teve o formato atual. Criada no século 16, sua função inicial era formar cristãos e súditos, e só mais tarde passou a ser entendida como espaço de formação cidadã.
Ela explica que, no início da instrução pública, muitas famílias resistiram em enviar os filhos, pois a permanência na escola significava abrir mão de uma força de trabalho essencial para o sustento do lar.
Essa transição, contudo, não garantiu legitimidade automática. A aceitação da escola foi um longo processo de convencimento público. “Essa instituição, inventada para formar cidadãos, não ganhou o crivo e a legitimidade social de imediato. Houve muitas disputas sociais para que a escola fosse instituída como competente para essa função”, explica a historiadora.
No final do século 19 e início do século 20, a educação infantil ainda tinha um caráter predominantemente assistencialista, voltado às famílias trabalhadoras pobres.
Leia também
Por que as crianças negras continuam fora das creches?
15 livros indispensáveis para a primeira infância
Educação infantil: falta de acesso e qualidade impede o Brasil de cumprir as metas do PNE
Atendimento assistencial
A pesquisadora Isabel Cristina Lima Conceição, no artigo “Breve Histórico da Educação Infantil no Brasil”, explica que nas grandes cidades, como São Paulo, proliferaram creches e asilos destinados a acolher os filhos de mães operárias, enquanto os jardins de infância, inspirados em modelos europeus, eram voltados à infância das classes favorecidas economicamente.
Assim, estabeleceu-se uma divisão: os jardins de infância atendiam em estabelecimentos públicos voltados às elites, com intencionalidade pedagógica, enquanto o atendimento assistencial às crianças pobres ocorria tanto em instituições públicas quanto privadas, muitas vezes ligadas às fábricas.
Um exemplo desse período é a fundação, em 1889, da creche da Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado, no Rio de Janeiro, considerada a primeira de que se tem registro no Brasil dedicada aos filhos de operários. Com foco em guarda e assistência, refletia recomendações que circulavam em congressos da época, defendendo a criação de creches junto a indústrias e entidades filantrópicas.
Em São Paulo, a primeira creche registrada foi a Baronesa de Limeira, criada em 1913 para atender filhos de trabalhadores, de modo a garantir a presença da mão de obra feminina nas fábricas. O foco era o cuidado básico, com higiene, alimentação e guarda, sem intencionalidade educacional.
Com o tempo, a escola se consolidou como uma das invenções mais importantes da humanidade. Universalizada ao longo dos séculos, tornou-se espaço central de organização social e de formação dos sujeitos, sendo constantemente disputada por diferentes grupos.

Reivindicação e direito
Grande parte da legislação educacional vigente nasceu da mobilização popular, sobretudo de mulheres que reivindicavam vagas para seus filhos. “As mães saíram às ruas para pedir mais escolas e a ampliação do número de vagas nas periferias”, lembra a historiadora Katya Braghini.
Em 1969, foi inaugurada em Guaianases (SP) a primeira creche ligada diretamente ao poder público municipal, vinculada à então Secretaria do Bem-Estar Social. A partir da década de 1970, as reivindicações ganharam força: já não se tratava apenas de conquistar vagas, mas também de exigir qualidade pedagógica. “Eu não quero qualquer lugar para o meu filho, eu quero um lugar de qualidade”, complementa Alessandra Arrigoni, professora da rede municipal de São Paulo e pesquisadora do tema.
Entre 1978 e 1982, esse movimento se consolidou em São Paulo com a criação do Movimento de Luta por Creches, protagonizado por famílias trabalhadoras. Sua atuação foi decisiva para ampliar vagas e defender o reconhecimento das creches como espaços educativos.
Sob a ditadura militar, feministas e organizações sociais ampliaram a mobilização, como mostra o livro “Por que a creche é uma luta das mulheres?”. A maternidade passou a ser entendida como questão social e coletiva, e não apenas responsabilidade individual. Com o lema “O filho não é só da mãe”, o movimento levou suas demandas à Assembleia Constituinte (1987–1988).
O resultado foi histórico: a Constituição de 1988 reconheceu a creche como direito da criança e da família, ampliou a licença-maternidade e instituiu a licença-paternidade, transformando de forma definitiva as relações entre infância, família, Estado e sociedade.

Espaço de aprendizado
A mobilização segue em torno do direito à escola infantil, entendendo a modalidade como um local que não serve somente como abrigo para as crianças, mas que contribui para sua formação intelectual e cidadã.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, consolidou o direito à creche, organizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Em 1996, a LDB instituiu a educação infantil como uma etapa da educação básica, sendo as creches destinadas às crianças de zero a três anos e a pré-escola como etapa obrigatória para crianças de quatro a seis anos, e atribuiu aos municípios a responsabilidade principal por sua oferta.
Já o PNE (Plano Nacional de Educação), em 2014, traduziu esse direito em metas concretas, como a universalização da pré-escola para crianças de 4 e 5 anos até 2016 e a ampliação da oferta em creches para atender, até 2024, pelo menos 50% das crianças de até 3 anos. No entanto, nenhuma dessas metas foi plenamente cumprida. Em 2024, de acordo com o Censo Escolar, a pré-escola atingiu 94,6% de cobertura, o que ainda deixa cerca de 329 mil crianças fora da escola. Já nas creches, apenas 37,7% das crianças de até 3 anos estão matriculadas.
Diferentemente da LDB, que é um marco permanente, o PNE tem caráter decenal e precisa ser periodicamente revisto para definir novas metas e estratégias. Assim, enquanto a LDB estabelece o marco legal e conceitual, o PNE transforma esse direito em compromissos práticos, com prazos e indicadores que orientam a expansão do acesso e a busca por qualidade na educação infantil.
Após a promulgação da LDB, os municípios tiveram um tempo para se adaptar a essa mudança, e enfrentaram desafios locais com a formação de professores, adequação da estrutura física e a criação de normas pelos Conselhos Municipais de Educação.
Cidades como São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG) já tinham uma rede de educação infantil mais consolidada e criaram sistemas de formação continuada e diretrizes curriculares próprias, servindo de referência para outros municípios.
A pesquisa de Alessandra mostra que a grande virada conceitual e administrativa no município de São Paulo ocorreu em 2002, quando as creches foram transferidas da Secretaria de Assistência Social para a de Educação. A medida, publicada em 2001 após estudos de uma comissão intersecretarial, reforçou a compreensão de que o atendimento de 0 a 3 anos integra a educação básica.
Políticas públicas e avanços
De acordo com o Censo Escolar de 2024, há cerca de 78,1 mil creches em funcionamento no Brasil. A maior parte, 52,8%, funciona por meio de convênios com o poder público, ou seja, são instituições privadas mantidas em parceria com prefeituras, que repassam recursos e supervisionam o atendimento. O restante está diretamente sob responsabilidade da rede pública municipal, que administra as creches de forma integral.
O levantamento mostra que quase 2,3 milhões de crianças de até três anos estão fora da creche por falta de vagas ou unidades próximas. O problema é mais grave entre os bebês de até 1 ano, em que apenas 18,6% são atendidos; entre os mais pobres, 34% ficam de fora por barreiras de acesso.
Esses números evidenciam a necessidade de fortalecer políticas que garantam qualidade e equidade no atendimento. Nesse contexto, em 5 de agosto deste ano, foi instituída a Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNPI), coordenada pelo MEC (Ministério da Educação).
Demanda antiga de diversas organizações ligadas à primeira infância, a nova política visa promover ações focadas no desenvolvimento integral e no pleno exercício dos direitos das crianças de zero a seis anos, intensificando os esforços para assegurar que a atenção à infância seja ampla e inclusiva.
Em linhas gerais, o PNE define as metas para a educação infantil, como ampliar vagas em creches e universalizar a pré-escola, enquanto a PNPI mostra como colocar essas metas em prática de forma integrada, unindo saúde, assistência social, cultura e educação para garantir que todas as crianças de zero a seis anos tenham seus direitos respeitados e possam se desenvolver plenamente.
| O que diz a BNCC? |
|---|
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) funciona como uma tradução pedagógica do que já está garantido em leis mais amplas (Constituição, ECA, LDB, PNE e PNEI). Ela dá concretude a esses direitos no dia a dia da sala de aula, organizando o que toda criança brasileira deve vivenciar e aprender na educação infantil. A BNCC para a Educação Infantil estabelece seis direitos de aprendizagem: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Esses direitos devem ser o ‘mantra’ a guiar a prática pedagógica. “Quando um professor determina a cor que a criança deve usar, nega o direito de se expressar; quando não oferece materiais diversos, obstrui o direito de explorar, por exemplo”, diz Cizele Ortis, diretora do Instituto Avisa Lá. |
Outra iniciativa centrada na qualidade e equidade, como é o caso do Conaquei (Compromisso Nacional pela Qualidade e Equidade na Educação Infantil), que prevê ações em gestão democrática, avaliação da educação infantil, infraestrutura, formação e valorização docente, entre outros.
Em recente entrevista ao Porvir, Marina Arilha Silva, coordenadora de programas da Fundação Van Leer, destacou que o Brasil “tem um histórico de ser bom formulador de políticas públicas, que são excelentes no papel, mas que, infelizmente, não se concretizam na prática”, o que exige acompanhamento constante de implementação.
No caso do Conaquei, por exemplo, a especialista destaca que trata-se de uma estratégia bem articulada entre os entes federativos, que apoiam tecnicamente o avanço da universalização da educação infantil. “Ao ter como base marcos regulatórios atualizados, como os parâmetros de qualidade e equidade e as diretrizes operacionais nacionais, ele contribui para transformar em prática muitos dos princípios da política nacional”, disse.
Essas políticas mostram que a educação infantil deixou de ser vista apenas como assistência e passou a ser reconhecida pelo seu valor pedagógico, fundamental para o desenvolvimento das crianças como cidadãs e sujeitos de direito.
O Porvir faz parte da mobilização em defesa da primeira infância. O movimento reúne diversas organizações ligadas à causa. Para saber mais acesse: mesdaprimeirainfancia.org.br






Adorei! Na expectativa pelas próximas reportagens da série. Seria legal se pudessem abordar mais a questão da qualidade da educação infantil. Como ela é definida? Optar por escolas com abordagens pedagógicas “da moda”, especialmente na rede particular, faz sentido e tem, de fato, algum impacto na formação da criança?