‘É um equívoco não falar de racismo com crianças brancas’ - PORVIR

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‘É um equívoco não falar de racismo com crianças brancas’, diz pesquisador

Março traz o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, mas o combate ao racismo precisa ir além das datas comemorativas. O Porvir entrevistou o pesquisador Ueliton Moreira sobre a urgência de abordar o tema com crianças

por Ruam Oliveira ilustração relógio 24 de março de 2025

Baseado no mito da democracia racial, que coloca o Brasil como uma nação construída na integração harmoniosa entre diferentes povos, há quem afirme que o racismo não existe. Existem também os que acreditam ser desnecessário abordar o assunto com seus filhos, sobretudo se eles forem brancos. É o que aponta o psicólogo e pesquisador Ueliton Moreira, da Universidade Federal de Sergipe. 

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Autor da tese “Como conversar com as crianças sobre raça e racismo: experiências de famílias brasileiras”, Ueliton notou, ao longo das entrevistas feitas para a pesquisa de doutorado, barreiras que dificultam o avanço de uma sociedade antirracista.

O lugar da branquitude no debate 

Um dos focos do estudo está na observação de como famílias brancas lidam com o tema. “Outros pais temem falar sobre o racismo, pois acreditam que esse assunto pode tornar as crianças racistas. Isso é um um grande equívoco, considerando que o que acontece é o oposto: quando a gente fala sobre o assunto, torna as crianças mais tolerantes, menos racistas”, afirma. 

“Os estudos apontam para uma prevalência do silêncio sobre raça e racismo. Enquanto para alguns pais o tema não é uma preocupação, outros acreditam que o racismo não é uma realidade”

Ueliton também reforça a importância de abordar conceitos como branquitude (construção, com o passar do tempo, da visão do branco como superior) desde cedo, pois entende que não é uma posição de poder presente apenas na fase adulta. “Ela está na infância e é construída desde a infância”, argumenta.

O pesquisador destaca, portanto, que a educação antirracista se faz necessária também em relação às famílias. Em sua percepção, muitas não sabem como abordar a temática, talvez porque não tenham sido orientadas para tal, e a escola pode suprir essa demanda.

Barreiras identificadas pelos pais e cuidadores

  • Não saber como abordar o tema 
  • Acreditar que as crianças são muito pequenas para essas conversas
  • Considerar que “somos todos iguais” e que a questão racial não é relevante 
  • Pensar que falar sobre racismo é desnecessário para crianças brancas 
  • Temer que abordar o tema possa tornar as crianças racista

Relação família-escola

A educação antirracista é um trabalho que deve ser feito por diferentes atores. Para o especialista, discutir racismo, discriminação e branquitude precisa fazer parte da educação das crianças. Escola e família precisam estar juntas nessa missão, acredita Ueliton. Ele cita que a implementação da Lei 10.639/03, assim como da Lei 11.645/08, que instituem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas, deve ser prioritária. 

Quando famílias e escolas atuam em parceria no combate ao racismo, os ganhos são maiores e mais fortalecidos.

O pesquisador Ueliton Moreira. Foto: Josafá Neto/Rádio UFS.

“Se a escola se coloca como espaço de apoio e oferece orientação aos pais, ela contribui para que eles desenvolvam mais diálogos e promovam a educação antirracista em casa”, ressalta o pesquisador.

Ações de formação docente também precisam ser constantes nas escolas. “Elas devem promover formação para os professores, como cursos de letramento racial e educação antirracista, para que estejam preparados para lidar, inclusive, com tensões e conflitos raciais no espaço escolar”, diz.

Estratégias sugeridas para pais e cuidadores

  • Explicar as diferenças raciais e incentivar o respeito à diversidade
  • Abordar diretamente o racismo e a discriminação
  • Incentivar a inclusão e as amizades multirraciais
  • Apresentar referências positivas de pessoas negras e indígenas
  • Fortalecer a identidade e a autoestima das crianças negras

Há uma idade certa para falar sobre o assunto?

A resposta é não. Desde a educação infantil até o ensino médio, o assunto pode ser abordado em diferentes momentos, na escola e em casa.

Embora não exista uma abordagem única, a ciência alerta: quanto mais cedo os pais começarem a falar sobre racismo com seus filhos, melhor. O documento “Conversando com seus filhos e filhas sobre racismo”, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), mostra que, desde os 6 meses, os bebês já percebem diferenças físicas, incluindo a cor da pele. Aos 5 anos, estudos indicam que as crianças podem demonstrar viés racial, tratando pessoas de certos grupos de forma mais favorável que outros.

Ignorar ou evitar o tema não as protege, mas as deixa vulneráveis aos preconceitos que permeiam a sociedade.

Ueliton aponta o equívoco em achar que crianças são muito pequenas para ter essas conversas e que não percebem as diferenças raciais ou o racismo, tornando-se, assim, incapazes de reproduzir preconceitos. “Essa visão reflete uma falta de compreensão sobre como o racismo se manifesta no desenvolvimento das crianças. Uma vez que elas são capazes de perceber as diferenças raciais e, como reprodutoras do seu meio social, muitas vezes acabam reproduzindo o racismo desde muito cedo”, reforça.

Recomendações para as escolas 

  • Oferecer orientação a pais e cuidadores sobre como conversar com as crianças sobre racismo e diversidade racial 
  • Incentivar a participação ativa dos pais em projetos escolares de promoção do combate ao racismo e valorização da diversidade racial 
  • Desenvolver materiais educativos sobre o tema e capacitar educadores para abordá-lo 
  • Incorporar a educação antirracista nos currículos desde a educação infantil 
  • Monitorar o combate a ocorrências de racismo dentro do ambiente escolar 

Conversando com crianças pretas 

Crianças negras também precisam ouvir sobre o assunto. Na pesquisa de Ueliton há um capítulo dedicado a analisar como conversas sobre questões étnico-raciais possuem um papel protetivo na construção da identidade racial dessas crianças. Para esta seção, o pesquisador ouviu 112 crianças e familiares. 

“Nós descobrimos que quanto mais os pais reforçam sentimento de orgulho racial e conversam sobre o racismo, mais as crianças negras gostam de ser negras e mais as crianças negras que têm o cabelo cacheado e crespo gostam do próprio cabelo”, afirma.

Entre as estratégias para inclusão do tema no cotidiano das crianças negras, ele sugere que as famílias e as escolas adotem algumas medidas. Entre elas:

  • Leitura de livros infantis que representem, positivamente, protagonistas negros
  • Inclusão de brinquedos, como bonecas e bonecos negros,
  • Debate personalidades negras que fazem parte da história do grupo
  • Conversas sobre o que é a própria negritude. 

“Falar que ser negro é uma parte importante de quem a criança é. É fundamental enfatizar o orgulho, a beleza, a riqueza cultural da negritude, do cabelo crespo e cacheado. Também sugiro que a família a leve para lugares ou eventos que celebrem a cultura e a história dos negros, além, claro, de conversar sobre o racismo e discriminação”. Para Ueliton, é preciso, acima de tudo, investir em táticas de valorização e do desenvolvimento de um pensamento positivo sobre a negritude.

Olhar histórico

Em sua pesquisa, Ueliton traçou uma linha do tempo para mostrar como os impactos do racismo na identidade de crianças negras têm sido evidenciados por estudos. Um destaque é o “experimento das bonecas”, de 1940, realizado pelos psicólogos Mamie e Kenneth Clark nos Estados Unidos, referenciado até hoje.

Foram analisadas 253 crianças negras, de 3 a 7 anos, usando bonecas brancas e negras para investigar as preferências e a identificação racial. As crianças foram questionadas sobre qual boneca gostariam de brincar, qual parecia boa ou má, e qual parecia com elas mesmas.

Crianças com uniforme verde assistindo a um vídeo em sala de aula; algumas olham para trás, em direção à câmera.
Crédito: Antonio Cruz / Agência Brasil

Os resultados mostraram que a maioria das crianças (67%) preferiu brincar com a boneca branca, associando-a à bondade e à cor “legal”, enquanto a boneca negra foi vista como “má” por 59% delas. Os autores interpretaram os resultados como evidência da internalização do racismo, com as crianças associando características positivas às pessoas brancas e negativas às pessoas negras.

O mesmo estudo dos anos 1940 revelou que, a partir dos 3 anos, as crianças já são capazes de categorizar os grupos raciais e se identificar com um deles. Mais de 30% das crianças negras se autodefiniram como brancas. Os pesquisadores analisam a resposta como evidência do impacto do racismo na identidade e autoestima das crianças negras, que se viam menos representadas em seu próprio grupo racial.

Qual seria o resultado hoje?

Em 2020, pesquisadores brasileiros reproduziram o estudo com 99 crianças negras e brancas, de 4 a 6 anos, residentes na Paraíba. A pesquisa utilizou as mesmas perguntas do estudo original. 

Os resultados foram ainda mais alarmantes:

  • 86,9% das crianças escolheram a boneca branca para brincar.
  • 78,8% consideraram a boneca branca como boa.
  • 92,9% acharam-na legal.
  • 76,8% escolheram a boneca negra como má.

Apenas 29,4% das crianças negras disseram ser parecidas com a boneca negra, a maioria se identificando com a boneca branca. “Esses dados evidenciam uma forte tendência de preferência e identidade racial associada ao branco”, escreve Ueliton. 

Reconhecimento 

A pesquisa é uma das cinco vencedoras do 2º Prêmio Ciência pela Primeira Infância, promovido pelo NCPI (Núcleo Ciência pela Primeira Infância) em 2024. Ao todo, 150 trabalhos de mestrado e doutorado concorreram à premiação.

Um dos capítulos reúne respostas de 140 mães e pais, de crianças entre 5 a 7 anos, à pergunta: “Você conversa com o seu filho(a) sobre o racismo?”.

Mais da metade dos pais e mães brancos nunca fala sobre raça e racismo com seus filhos. Enquanto isso, famílias pretas e pardas não apenas abordam o tema, mas o utilizam para fortalecer a identidade dos pequenos.

De acordo com o NCPI, “o estudo acende um alerta sobre a importância do diálogo desde a infância para a construção de uma sociedade mais consciente”.

As respostas dos familiares sobre os conteúdos das conversas e/ou o motivo de não falarem sobre o assunto foram transformadas em infográfico sobre como conversar com crianças sobre o racismo, que pode ser baixado gratuitamente.


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educação antirracista, educação infantil, primeira infância

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