Escola promove inclusão na EJA e publica livro com histórias de vida dos alunos
Iniciativa inclusiva, voltada a estudantes com e sem deficiência, envolve comunidade escolar de Santo André (SP) e reforça importância de valorizar a trajetória de quem dribla as dificuldades para aprender a ler e a escrever
por Ana Luísa D'Maschio / Marina Lopes 7 de junho de 2022
Nem mesmo a ventania e a sensação térmica de 3 graus afastou a turma da escola na manhã mais fria de maio. No CPFP (Centro Público de Formação Profissional) Valdemar Mattei, em Santo André (SP), o período é reservado para a EJA (Educação de Jovens e Adultos).
A escola está situada em um complexo educacional que ocupa um quarteirão inteiro no bairro de Silveira, formado pela Creche Professora Yonne Cintra de Souza (educação infantil) e a Escola Municipal de Educação Infantil e Fundamental Professor Nicolau Moraes Barros. Todas as unidades trabalham de forma articulada com o Polo Bilíngue, destinado aos alunos surdos: ali, eles aprendem Libras (Língua Brasileira de Sinais), português e os demais componentes curriculares. Do outro lado da rua, também contam com o apoio do Polo de Deficiência Visual.
A vontade de estudar para ganhar independência e autonomia se soma a uma iniciativa na qual esses alunos, na faixa dos 20 aos 70 anos, tornam-se protagonistas de suas histórias: o projeto “Livro de Memórias”, que mobilizou toda a escola, além, claro, das turmas de EJA do matutino e do noturno. Parte dos autores se reuniu naquela quarta-feira de maio para contar ao Porvir um pouco do processo de escrita de suas autobiografias e como estar na escola transformou suas vidas.
Há tempos, a equipe da escola pensava em uma estratégia de valorização da EJA. Para além da exclusão social, os educadores queriam, de alguma forma, enaltecer a história de superação desses homens e mulheres silenciados por anos a fio, longe da sociedade letrada por não ter acesso à educação, direito constitucional e universal.
Na retomada das aulas de 2022, depois de tanto tempo de isolamento social, a pergunta disparadora “Quem sou eu?” feita pelo professor de português da turma noturna ganhou força. Os aprendizes precisavam ser ouvidos. E os educadores abriram os braços para acolhê-los.
“São alunos que têm uma vivência muito grande”, diz a diretora da unidade, Alexandra Henriques. Ao começar a ler os relatos, diante de tantas histórias marcantes, os educadores tiveram a ideia de transformar as vivências dos alunos em um livro. “A partir disso, nós lançamos a proposta para todos os professores da escola, e eles abraçaram a ideia”, relembra.
Foram quase cinco meses de escutas, escritas, revisão e diagramação do livro, tudo feito internamente. Para os alunos que não eram alfabetizados, os professores ajudaram a fazer o registro escrito das histórias e gravaram vídeos de apoio. Os alunos surdos, que têm o português como segunda língua, também contaram com o apoio dos professores e intérpretes de Libras. Daiane Cordeiro Dias, única aluna cega da turma, ganhará a publicação no Sistema Braille.
Todas as cópias do livro serão viabilizadas com apoio da comunidade escolar, que está engajada na preparação da festa junina para arrecadar recursos. A ideia é atingir R$ 3 mil para garantir a impressão de 150 cópias. Ao todo, 83 histórias serão publicadas.
Relembre o episódio “Lugar de adulto é na escola”, do podcast “O Futuro se Equilibra”, parceria do Porvir com o Instituto Unibanco
“A gente sabe que os adultos, quando chegam à EJA, já passaram por muitas perdas. Mas aqui estão sendo valorizados. Imagine o orgulho deles ao se sentirem ouvidos e se sentirem autores, vendo um livro com nome, foto e a história de vida contada?”, diz a assistente pedagógica do Polo Bilíngue dos surdos, Rosemeire Fernandes, com os olhos marejados.
A importância do acolhimento
Por vezes, as origens dos estudantes do Valdemar Mattei se repetem. Boa parte vem da Região Nordeste em busca de emprego. As mulheres trabalhavam, em sua maioria, como domésticas desde crianças, criando sozinhas os filhos. “Notamos características muito próximas, que vão se transformar em material didático para a escola. Esse projeto reforça o currículo integrado, fazendo com que haja significado para eles. A proposta curricular da EJA é trabalhar com as vivências. E nada mais representativo do que trabalhar com as próprias histórias”, reforça Alexandra.
Para desenvolver esse trabalho, os professores levaram para a sala de aula a biografia de personalidades. Inspirados por essas narrativas, eles estudaram o gênero autobiografia e foram estimulados a contar as suas próprias memórias. “Esse processo de escuta é uma proposta que a Educação de Jovens e Adultos tem, de pensar no que tem significado para esse jovem e esse adulto, para que entendam o mundo em que vivem”, ressalta Maria Alice Bassoli Napoleão, diretora do Departamento de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria Municipal de Educação de Santo André.
Além de ressignificar memórias e valorizar os percursos de vida dos alunos, o projeto também teve a proposta de promover o reconhecimento e o fortalecimento da identidade de jovens e adultos. “A ideia era fazer com que eles se enxergassem como eles eram. Alguns alunos não se viam naquele tom de pele. Eles não se viam naquela cor de olhos”, afirma Rosana Gazotto, professora de artes.
Nesse processo, a fotografia e o autorretrato também foram ferramentas que ajudaram os alunos a se perceberem como indivíduos singulares e autores das suas histórias. Todos os estudantes contaram, inclusive, com uma sessão de fotos registrada pelo educador Jefferson Simões. Seja contornando e colorindo seus retratos com o auxílio de papel vegetal nas aulas de artes, ou até mesmo fazendo a descrição do desenho para garantir que todos os alunos pudessem ter acesso à produção. “Quando eu me apresento, eu também me reconheço. Qual é a cor da minha pele? Do meu cabelo? Quem sou eu? É bem interessante fazer esse movimento com todos os alunos”, destaca Walkiria de Oliveira da Costa, assessora de educação inclusiva do Polo Deficiência Visual.
“Houve a necessidade de pensar em atividades específicas para eles conseguirem se expressar de forma mais clara. Nós observamos muitas dificuldades, porque são histórias que eles vivenciaram e que muitas vezes trouxeram traumas”, recorda Felipe Nicastro, instrutor de Libras de pessoas surdas e ouvintes do Polo Bilíngue.
As estratégias para vencer as barreiras de comunicação também foram pontos de atenção para os professores durante o percurso. “A maioria dos nossos alunos [surdos] chegaram aqui sem língua e só com sinais caseiros. Tentamos qualificar essa comunicação ressignificando o que eles trazem pra gente ir colocando na estrutura em Libras”, explica Eliana Amaral, professora do Polo Bilíngue. Tudo isso para que todos e todas pudessem se expressar e contar suas histórias.
Memórias, experiências e histórias de vida
Entre as lembranças contadas, casos de abuso, violência, abandono, bullying, negligência de direitos e até mesmo de trabalho escravo foram relatados pelos alunos. Temas delicados que exigiram dos professores cuidado redobrado na condução do projeto – e até mesmo na edição do livro – para preservar os jovens e adultos que compartilharam suas trajetórias.
Mas as histórias registradas destacam, sobretudo, na superação. Entre elas, está a de Sônia Cristina, de 54 anos. Desde pequena, a surdez a isolava do mundo ouvinte, inclusive dentro de casa: por vezes, não conseguia expressar o que sentia, tampouco entender a família. “Não tinha ensino no qual eu pudesse aprender de verdade. Comecei a entender um pouco de leitura labial, mas as barreiras eram grandes”, conta ao Porvir, com o apoio de Kátia Maciel, intérprete de libras da escola. No CPFP, a aluna do Polo Bilíngue pôde realizar o sonho de voltar a estudar. “Aqui na escola, tudo melhorou. Minha vida é diferente, sabe? Estou muito feliz. Conhecimento nunca é demais”, garante.
Aos 61 anos, Luzia Valdenita de Moraes também nota mudanças no seu dia a dia. “Foram 48 anos fora da escola”, diz. “Optei por cuidar dos filhos e da casa em vez de seguir estudando. O tempo passou e comecei a sentir falta dos estudos”, afirma a aluna do 6º ano. “Tenho um filho de 40 anos formado em psicologia e engenharia, uma filha de 32 anos formada em farmácia e pesquisa clínica e, o mais novo, de 26 anos, também é formado em engenharia. Eles e meu marido me apoiaram muito na retomada dos estudos”. A próxima da lista dos universitários será Luzia: ela quer se tornar assistente social para aprimorar o trabalho com idosos que realiza na pastoral de sua igreja.
Luiz Fernando Ferreira de Oliveira, de 37 anos, já quis ser policial. Precisou sair da escola aos 14 anos, por sofrer bullying. Com deficiência intelectual, conta no livro as lembranças da infância com seu avô, com brincadeiras de jogo de cartas, boliche e bola de gude. As aulas na EJA têm sido bastante importantes para ele. “Vou estudar para me tornar advogado.”
Além da barreira educacional, Ravena dos Santos, de 28 anos, precisou superar o preconceito social. Mulher trans, voltou à escola para resgatar um objetivo: ser comissária de bordo. Enquanto isso, dedica-se ao trabalho com estética. “Gosto de cuidar da beleza dos outros”, confessa a maquiadora, que também já pensou em cursar geografia. “É um orgulho grande poder contar um pouco da minha vida nesse livro. Eu me sinto lisonjeada”, diz.
Descaso governamental
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), há 11,3 milhões de pessoas analfabetas com mais de 15 anos no Brasil, o que corresponde a 6,8% da população total. Aproximadamente 70 milhões de brasileiros (52,6% da população) com mais de 25 anos não têm ensino médio completo.
Apontada como estratégia para ampliar a escolaridade média da população e, por consequência, a renda, a EJA não tem ocupado o interesse do atual governo: os gastos caíram em todas as modalidades e a EJA sofreu um corte de 94% na gestão Bolsonaro. A verba, que já chegou a ultrapassar a casa de R$ 1 bilhão em 2013, caiu de R$ 76 milhões, em 2018, para apenas R$ 4 milhões em 2021.
“A EJA vem passando por um crescente movimento de desvalorização, de invisibilidade, por parte dos governantes”, lamenta a pedagoga Alessandra Rodrigues dos Santos, especialista na modalidade de Educação de Jovens e Adultos pelo Instituto Federal São Paulo. Para Alessandra, é possível citar várias evidências desse descaso, como, por exemplo, a falta de investimento financeiro em pesquisas, estudos e formação de professores e a ausência de estratégias para alcançar as metas previstas no atual Plano Nacional de Educação.
“Há, ainda, fechamento de turmas de EJA para implantação de escolas que atendem o período integral, com a justificativa de que não é possível manter o período diurno e noturno, ou ainda a justificativa de que não há demanda. Sabemos que é necessário contar com uma busca ativa para a EJA”, destaca a ex-coordenadora da área de Educação de Adultos do Instituto Paulo Freire.
Olhar cuidadoso
A Educação de Jovens e Adultos deve ter um formato que atenda e compreenda as especificidades de seus estudantes, reflete a especialista. “Eles já chegam à escola com conhecimento de vida, com conhecimento de mundo. A EJA precisa contemplar essa compreensão e, a partir daí, fazer o seu trabalho: transformar o que as pessoas escutam ou veem para agirem a partir do que elas compreendem. É a pessoa tendo outro lugar na sociedade, um lugar protagonista.”
Com apenas 20 anos, Giovana Rodrigues Silva escolheu a turma de EJA para o estágio final do curso de pedagogia. E garante que sair de sua zona de conforto foi uma experiência “avassaladora”. “Você passa a olhar para os alunos não só como sujeitos de direitos, bem como enxerga ali a dignidade de quem viveu histórias fortíssimas. Não se trata de romantizar o sofrimento, mas de dizer: ‘Eu consegui superar e estou aqui na escola'”. Com a escrita do livro, Giovana presenciou alguns alunos chorando de emoção. E os confortou. “Se eu cheguei à faculdade, você também pode. Você vai chegar, sim. Ninguém pode limitar seus sonhos.”
Atitudes acolhedoras são fundamentais para superar obstáculos e manter jovens e adultos em sala de aula, resgatando a cidadania desses estudantes. Com o “Livro de Memórias”, a equipe do Valdemar Mattei põe em prática um dos principais ensinamentos de Paulo Freire (1921-1997), patrono da educação brasileira e principal referência nacional quando o assunto é EJA: a conscientização. “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”, escreveu Freire em “A importância do ato de ler”. E é exatamente disso que se trata o livro dessa turma, que será lançado em 1 de julho, em cerimônia para os estudantes e suas famílias, com direito a tapete vermelho, na Secretaria de Educação de Santo André.