Estudantes encontram passado, presente e futuro em aulas de projeto de vida - PORVIR
Crédito: Mayara Oliveira Fernandes/Arquivo pessoal

Diário de Inovações

Estudantes encontram passado, presente e futuro em aulas de projeto de vida

Turmas do ensino fundamental 2 de escola na Comunidade Tia Eva, em Campo Grande (MS), participam do Projeto "Livro-Árvore" e registram suas trajetórias e sonhos

por Mayara Oliveira Fernandes / Matheus Trajano ilustração relógio 16 de junho de 2023

Receber carga horária em projeto de vida foi certamente um dos nossos maiores desafios enquanto professores. Afinal, como deveríamos trabalhar as habilidades exigidas neste componente? Quais dinâmicas sobre determinados temas poderíamos realizar com os estudantes? Como tratar de assuntos por vezes tão delicados, como emoções e autoconhecimento? 

Os documentos oficiais mostravam algumas possibilidades, mas rapidamente percebemos a necessidade de pensar em uma proposta que pudesse dar mais sentido e coesão para as nossas aulas com as turmas do 6º ao 9º ano da Escola Estadual Antonio Delfino Pereira, localizada em Campo Grande (MS). 

Nossa escola fica dentro de uma comunidade quilombola (Comunidade Tia Eva), mas a maioria dos estudantes é de outras regiões da cidade. Optamos, então, por criar um projeto que pudesse contribuir, principalmente, com as reflexões do aluno sobre seu próprio contexto familiar, sua formação de identidade e suas perspectivas de futuro. Todos esses pontos estão previstos em documentos oficiais recomendados pela rede estadual.

Assim nasceu o Projeto Livro-Árvore, pensado por mim e pelo professor Matheus Trajano, com o intuito de conhecer melhor nossos estudantes, todos na faixa etária entre 10 e 16 anos (Matheus leciona projeto de vida para os sextos e sétimos anos, e Mayara é responsável pelo oitavo e nono anos). A ideia central é colocar o estudante no papel de escritor para criar, semanalmente, um capítulo de um livro sobre a sua própria vida, a fim de, entre outras coisas, refletir sobre os elementos que ajudaram e ainda ajudam a construir sua própria identidade. 

Antes disso, porém, realizamos uma sequência de aulas com temas relacionados à construção do sujeito: Como eu me vejo hoje? Como as pessoas me veem? Quais são minhas influências? Quais são as coisas que gosto ou não de fazer?

Apresentamos, então, a ideia de “Livro-Árvore”. Essa proposta é adaptada de um projeto realizado pelas professoras Lorenna Bolsanello, Maria Coelho e Raquel Fonseca, docentes de Língua Portuguesa do Colégio de Aplicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), escola federal localizada no Rio de Janeiro, nossa cidade natal.

Trata-se de “uma coletânea de textos que apresenta as experiências vividas por seu autor, suas memórias, além do trajeto percorrido por ele até a constituição de sua identidade. O conteúdo desse livro é marcado pela subjetividade e seus textos podem ser dos mais variados gêneros; é necessário que essa coletânea, inaugurada pela apresentação de uma árvore genealógica, cumpra um objetivo principal: o de apresentar ao leitor suas origens identitárias e sua ancestralidade.”

Assim, os alunos deveriam, dentro de um prazo e com auxílio dos professores envolvidos, escrever um livro sobre suas experiências de vida, atividade feita semanalmente no laboratório da escola. Seguimos as etapas abaixo.


Primeira etapa: produção de uma árvore genealógica

Para iniciar essa composição do “Livro-Árvore” é necessário realizar um trabalho de pesquisa familiar, buscando resgatar as heranças deixadas pelos antepassados. Para isso, utilizamos um roteiro com diversas perguntas como base para uma entrevista com algum responsável que possa colaborar nesta investigação.

Esse movimento de (re)conhecimento da ancestralidade resulta na confecção de uma árvore genealógica em formato livre. O objetivo desta produção textual é apresentar, de maneira autoral e criativa, as referências identitárias familiares. Esse será o primeiro capítulo.

Segunda etapa: relato pessoal sobre quem você era, como você é hoje e como as pessoas enxergam você

Considerando todas as leituras realizadas – textos teóricos e literários, conceitos, letras de música, etc. – e todos os debates promovidos até o momento, propusemos uma reflexão profunda sobre identidade. Procure responder às perguntas: Quem eu era? Quem eu sou neste momento? Como as pessoas me enxergam? Atente-se a questões relacionadas às suas virtudes, gostos e preferências, o que lhe afeta, com quais grupos ou pessoas você se identifica e o que gostaria de mudar. Fique à vontade para recorrer aos registros já realizados nas aulas anteriores. Esse será o segundo capítulo.

Terceira etapa: inspirações e influências

Nesta etapa, acontece a escrita sobre as inspirações de vida, ou seja, pessoas que são referências para você e também quais são suas principais influências – aquelas pessoas que estão próximas a você e colaboram para moldar o que você é hoje. Procure se atentar a pessoas que estão em seu contexto familiar, mas também a pessoas que não estão neste contexto, mas fazem parte de outras áreas da sua vida. Esse será o terceiro capítulo.

Quarta etapa: representação artística

Chegou o momento de contar qual letra de música, filme, série, desenho e/ou poema representam você. Escolha até três tipos de elementos artísticos para inserir neste capítulo. Você deverá explicar brevemente suas escolhas, dizendo por que essa produção artística é a sua cara! Esse será o quarto capítulo.

Quinta etapa: memórias

Nesta etapa, você irá registrar algumas lembranças especiais e significativas para a sua constituição. Para isso, você pode inserir uma foto de verdade com seus familiares e/ou amigos. Também vale inserir uma foto sua sozinho(a) em algum lugar ou momento que considere importante. Após a escolha das fotos, explique por que elas são marcantes para a sua história.

Sexta etapa: seus planos para o futuro

Por fim, você irá escrever sobre seus planos de vida para o futuro. Atente-se aos seguintes questionamentos: onde eu quero estar, com quem eu quero estar, qual condição de vida eu pretendo ter e qual profissão eu pretendo desempenhar. É claro que muitas dessas questões estão longe de ter uma resposta definitiva, mas reflita sobre seus desejos para sua vida futura e registre a respeito sobre “como o seu EU de hoje enxerga o seu eu futuro”. Este será o sexto e último capítulo.

Todas as etapas utilizaram o Microsoft Word. O livro contém capa, epígrafe, dedicatória, sumário, os capítulos descritos acima e as referências utilizadas. Também deixamos livre a maneira da customização de cada obra: vale o que a criatividade permitir, com fotos, adesivos, texturas, cores, recortes etc. 

Ao final de todo o processo, os livros-árvores foram impressos e expostos na escola. Todos são marcados pela subjetividade, com textos dos mais variados gêneros. Mas é necessário que essa coletânea, inaugurada pela apresentação de uma árvore genealógica, cumpra um objetivo principal: o de apresentar ao leitor suas origens e sua ancestralidade.

Observamos, durante o projeto, que os alunos ficaram animados com a ideia de se tornarem escritores e muitos mostravam uma animação para o momento da escrita, criando um laço de afeto com o livro que estava sendo produzido. 

Além disso, foi possível compreender, por meio da leitura desses livros (semana a semana), as diversas questões pessoais, sobretudo no campo familiar, que afetavam positiva e negativamente nossos estudantes, bem como os comportamentos que poderiam estar associados a essas questões. 

Muitos foram os momentos de descobertas. Um dos alunos, por exemplo, fã das músicas “Garota de Ipanema” e “Tiro ao Álvaro”, que sonha em ser diplomata ou ministro e quer ser lembrado pelo que fez, como Carmem Miranda, Pelé e Joseph Stalin, encontrou uma foto da família, com os pais, tios e os avós. Ele não se lembrava da imagem da família unida e escreveu: “esse tipo de foto é mais raro que diamante para mim”.

Verificamos também que o “Livro-Árvore” trouxe uma consciência maior sobre a noção de ancestralidade e de herança familiar. Como o projeto foi desenvolvido dentro de uma escola quilombola, era muito importante para nós, professores, que essa temática fosse bem entendida e respeitada por nossos estudantes.


Mayara Oliveira Fernandes

É licenciada em Letras (Português-Literaturas) pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Em 2019, ao iniciar o estágio no Colégio de Aplicação da UFRJ, descobriu um grande interesse pelo mundo da Educação. Desde então, tornou-se professora particular, atuou na rede privada em 2020 e trabalhou como professora voluntária no PECEP, um pré-vestibular social do Rio de Janeiro. Atualmente é professora na rede estadual de Mato Grosso do Sul por meio do Ensina Brasil, um programa de desenvolvimento de lideranças na educação. Em 2022, ministrou aulas de projeto de vida, práticas linguísticas, pesquisa e autoria, língua portuguesa e eletiva de linguagens em uma escola quilombola de tempo integral, a Escola Estadual Antonio Delfino Pereira, localizada em Campo Grande (MS).

Matheus Trajano

Possui licenciatura em Matemática pelo IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro). Durante a graduação, participou da residência pedagógica, atuando como professor da rede municipal de Nilópolis, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, e pesquisou sobre os obstáculos didáticos no ensino e aprendizagem de equações do primeiro grau. Também já atuou como professor de Matemática na rede particular em um curso preparatório durante o ano de 2021. Atualmente, está como professor da rede estadual do Mato Grosso do Sul, no polo de Campo Grande, ministrando as disciplinas de matemática, projeto de vida e eletiva em uma escola quilombola de tempo integral, a Escola Estadual Antonio Delfino Pereira, localizada em Campo Grande (MS).

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educação mão na massa, ensino fundamental, Finalista Prêmio Professor Porvir, Prêmio Professor Porvir, socioemocionais

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