A favor da educação livre
Em artigo, o formador de educadores André Camargo fala da importância de se repensar a formação de seres humanos
por André Camargo 31 de outubro de 2013
A escola de hoje, com todos os seus problemas, é uma conquista da sociedade brasileira. Ampliou enormemente o acesso à educação ou pelo menos a um tipo específico de educação, conteudista, cujo foco é a especialização técnica. Também serve, às vezes, de refúgio para crianças de famílias gravemente disfuncionais, ampliando o círculo de relações dessas crianças e, portanto, a chance de algum acolhimento (ainda que, outras vezes, seja o contrário: a criança provém de família razoavelmente equilibrada e encontra um contexto perturbador e hostil). A expansão da rede de escolas, no Brasil, teve um papel decisivo na redução do trabalho infantil. As conquistas desse modelo precisam ser honradas.
Em contrapartida, o custo humano dessa estratégia de educação – da escola para as massas – é alto. Os sinais falam por si: bullying, variados graus de violência (desde modalidades mais sutis até os tiroteios e assassinatos em massa), evasão de alunos e de profissionais, afastamento por transtornos médicos e psiquiátricos, exclusão social, rótulos, estigmatização, falta de sentido, depressão e suicídio.
Entendo também que há um ‘currículo oculto’ da escolarização, de forte carga ideológica, cujo programa envolve formar rebanhos de pessoas acríticas, anestesiadas do ponto de vista social e, especialmente, político. Seres humanos dóceis, doutrinados desde cedo a abaixar a cabeça diante de autoridades e saberes externos. A criatividade, a singularidade e a paz de espírito são sacrificadas em nome do ajustamento a um sistema maquínico, inumano.
A escola também se coloca como modelo único de educação – o que o sociólogo português Rui Canário chama de ‘naturalização da forma escolar’ – e isso é um equívoco histórico. Outras formas de educar não são ‘alternativas’, mas maneiras diferentes – e com frequência, embora nem sempre, legítimas – de formar seres humanos. O que parecemos esquecer é que a escola de massas é apenas mais uma das formas de educar e, diga-se, uma invenção bastante recente na história da humanidade.
É importante ressaltar que existe uma diversidade considerável entre as escolas brasileiras – especialmente em termos de infraestrutura e cuidado. Existe a escola de rico e a escola de pobre e a distância entre elas é gigantesca. Mas, todas compartilham uma mesma lógica ou, como gosto de pensar, um mesmo sistema operacional: sala de aula, aula, um único professor para muitos alunos, séries, disciplinas, grade curricular, provas, lição de casa. Penso que esse é o ‘núcleo duro’ da escola, que não faz nenhum sentido no período histórico atual, especialmente se levamos a sério a contribuição dos autores que estudamos (e dos que deveríamos estudar) nas faculdades de Pedagogia.
Reformar a escola ou reformar a educação?
Aqui há outro ponto a ressaltar: não é de abordagens pedagógicas, em primeiro lugar, que estamos tratando. Hoje acumulamos uma longa lista de tentativas de reformar a escola e a educação: as teorias comportamentalistas, cognitivistas, histórico-culturais, construtivistas, humanistas e sociais, Freinet, Montessori, Waldorf, Paulo Freire. De um ou de outro modo, as diferentes abordagens foram incorporadas como diferentes softwares para um mesmo sistema operacional. Penso que amadurece de modo acelerado o tempo histórico de suspendermos o debate sobre as diferentes abordagens e passarmos a questionar com seriedade o próprio sistema operacional. É disso que trata, do meu ponto de vista, o movimento mundial de desescolarização.
Considero fundamental enxergar a escola no contexto mais amplo do mundo em que vivemos. A forma que educamos seres humanos, em cada tempo e lugar, é indissociável do modelo de sociedade que construímos; a escola cria a nossa sociedade, ao mesmo tempo em que é criada, como proposta de educação, por essa mesma sociedade. Ela realimenta o sistema com um mesmo programa cultural – uma mentalidade – que vai atravessando gerações de alunos e professores. Mudam os conteúdos, com o avanço da ciência, mas permanece a estrutura de base, o mesmo conjunto de pressupostos. Daí seu caráter essencialmente conservador. Por isso, pela posição que ocupa na rede sócio-cultural, não acredito que a transformação social jamais virá da escola e dos educadores. De fato, é o oposto disso que está acontecendo.
Pessoas que dedicam suas vidas à escola e à educação costumam sentir-se agredidas pela palavra ‘desescolarização’ e isso precisa ser respeitado. Por reconhecer o impacto negativo que a palavra pode causar, tenho preferido usar a expressão ‘Educação Livre’. De todo modo, não se trata de botar abaixo os prédios escolares, obviamente, até porque muitas pessoas se beneficiam da escola do jeito que é. Aliás, se escola não é o local, mas o sistema operacional, trata-se de abrir espaço, na dimensão imaterial da educação, para a possibilidade de desconstruir a lógica industrial, maquínica, desse sistema – e repensar a formação de seres humanos desde os alicerces. Será possível conceber maneiras de educar consistentes, nos dias de hoje, que utilizem outro ‘kit pedagógico’, em substituição a aula, sala de aula, professor, disciplinas, séries, grade curricular, provas e lição de casa?
Na verdade, é um equívoco encarar a ‘desescolarização’ (ou a Educação Livre) como uma nova proposta para a educação; a flexibilização, em maior ou menor grau, do modelo escolar ‘oficial’ não é uma proposta, e sim parte fundamental de uma realidade emergente que ultrapassa o campo pedagógico, fervilha em diferentes contextos e avança a passos largos. Já está acontecendo.
A História se repete
Fico maravilhado toda vez que percebo o privilégio que é estar vivo nos dias de hoje e ter a oportunidade de testemunhar isso tudo acontecendo; penso que se trata de uma mudança de proporções no mínimo tão formidáveis quanto a que acontece na passagem da Idade Média para a Moderna, quando a Revolução Industrial consolida a hegemonia do modo de vida burguês, lançando as bases culturais e materiais para o surgimento de nossas sociedades liberais. A invenção das máquinas a vapor propiciou o surgimento das indústrias (e da lógica da produção em massa), o que por sua vez reconfigurou profundamente o tecido social e levou, entre outras, à passagem da educação em oficinas, pela convivência direta entre mestre artesão e aprendiz, na própria situação de produção artesanal, para a educação confinada em instituições escolares, erigidas à imagem e semelhança das indústrias nascentes.
O que acontece hoje é, em seus pontos fundamentais, um processo histórico do mesmo tipo: novas tecnologias, em particular a emergência de computadores pessoais poderosos conectados em rede mundial, a disseminação das mídias sociais e a previsível popularização da impressora 3D, alteram os hábitos de produção e consumo, reconfiguram o tecido social de modo contundente e lançam as bases culturais e materiais para novos modos de educar(-se).
Uma nova lógica
Se o conhecimento e as possibilidades de formação e desenvolvimento humano (assim como o acesso à própria produção, divulgação e circulação de produtos e serviços sofisticados) são abundantes, e estão cada vez mais disponíveis por todos os lados, não faz mais sentido enfurnar-se por horas intermináveis num mundo à parte, fechado sobre si mesmo, uma instituição de natureza disciplinar, hierárquica, burocrática e massificadora que já não detém o monopólio do acesso à herança cultural humana nem da preparação para o mundo do trabalho. Para as crianças e adolescentes que já nascem no esteio dessa realidade emergente, tudo isso é ainda mais transparente do que para nós, que carregamos a escolarização tradicional nos próprios ossos. Torna-se, portanto, cada vez mais insustentável pretender mantê-los atados aos bancos escolares.
Parece-me que, no atual contexto, os modelos de educação de vanguarda tendem a resgatar elementos da ancestralidade, aproximando-nos do artesanal e, sobretudo, do padrão tribal. Em paralelo, cresce o reconhecimento da importância de cultivar laços comunitários e de ocupar os espaços públicos. Daí o surgimento das propostas de bairros-escola, cidades-escola e congêneres, como por exemplo a Campos Salles, em Heliópolis, e a experiência de trilhas educativas do Cidade-Escola Aprendiz. Ou mesmo, em outro sentido, o Catraca Livre, que realiza curadoria de experiências culturais acessíveis distribuídas pela(s) cidade(s) – transformando o espaço urbano, potencialmente, em um ecossistema aberto de aprendizagem, diretamente na vida e no mundo.
No Brasil, temos o privilégio de contar com o esforço incansável do José Pacheco, disseminando por todos os cantos as sementes de uma educação mais aberta e verdadeira, fundada em valores humanos. O Projeto Âncora, em Cotia, que Pacheco adotou, não tem aula, nem sala de aula, nem professor, nem série, nem disciplina, nem grade curricular, prova ou lição de casa. Embora, oficialmente, seja uma escola, funciona na prática como uma autêntica comunidade de aprendizagem não-escolar.
Sou grato à escola (e, por extensão, à Universidade) pela minha formação intelectual. Não é, porém, o caminho que desejo para os meus filhos. Em meus sonhos mais otimistas, vislumbro as escolas transformadas em Centros Comunitários autônomos, abertos e autogeridos, embora conectados em rede a outros centros comunitários, que integrem o mundo on-line e o offline e sirvam de apoio a pessoas de todas as idades que queiram participar (e não apenas crianças e jovens em idade escolar). Tais pessoas, em essência autodidatas, organizam-se em projetos dedicados à identificação e solução dos problemas da própria comunidade, projetos de criação artística, vivência esportiva, contato com o sagrado, jogos, viagens e fruição das dores e delícias da existência interdependente.
Educação em rede
A aprendizagem e a educação não ocorrerão dentro desses lugares, mas como subprodutos da convivência e da colaboração nos locais onde a vida (e os projetos) acontece – as organizações religiosas, o comércio local, os hospitais e centros de saúde, a delegacia de polícia, os parques e praças, as bibliotecas, os bancos, os cinemas e teatros, a rua, rodoviárias e aeroportos, enfim, todo e qualquer lugar disposto a integrar uma rede de tempos e espaços cotidianos adaptados para receber a contribuição de grupos heterogêneos compostos por pessoas de diferentes gerações, unidas pelo propósito de aprenderem umas com as outras, amadurecerem a partir do contato com as sombras pessoais e coletivas, melhorarem as coisas, cuidarem de ambientes e relacionamentos e, no processo, tornarem-se versões mais inteiras de si mesmas.
Eu entendo assim a Educação Livre: no mundo, pelo mundo e para o mundo. Livre de provas que rotulam e estigmatizam as pessoas, de espaços murados que retiram as crianças do cotidiano de suas famílias e comunidades, e de um acúmulo de tarefas sem sentido que esgotam o tempo de descanso, fazendo chorar crianças de 7 anos obrigadas a escrever de 1 até 1000 duas vezes seguidas. Como se a aprendizagem pudesse ser algo mecânico. Como se a gente pudesse separar viver de aprender. Subscrevo o provérbio africano: “É preciso toda uma aldeia para educar uma criança”. Já está acontecendo.
André Camargo
É pai do Otavio e da Manuela. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem e professor de graduação (em Pedagogia) e pós (em Psicopedagogia e em Educação Infantil). Facilita processos de autoconhecimento e transformação. Participa de projetos, parcerias e consultoria ligados à inovação no campo da educação.