Lei de cotas fortalece os direitos humanos, diz Frei David
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Inovações em Educação

Lei de cotas é instrumento para fortalecer direitos humanos, diz diretor da EducAfro

Em entrevista ao Porvir, o educador ressalta a importância da lei 10.639/03 e o caminho para incluí-la no ensino superior

por Ruam Oliveira ilustração relógio 23 de janeiro de 2024

Para entender que a educação é um direito humano, é preciso investir na própria formação para que essa afirmação faça sentido. Frei David, diretor e fundador da EducAfro, organização focada no acesso de pessoas pretas e pobres à universidade, afirma que a grande maioria das pessoas não faz essa associação de maneira imediata. Para ele, é preciso um trabalho qualificado, principalmente de quem já está envolvido no tema, a fim de que mais pessoas possam fazer essa assimilação. O frei é um dos principais articuladores sobre o debate e pressão que resultaram na lei 12.711/2012, também conhecida como a Lei de Cotas. 

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Em entrevista ao Porvir, o educador ressalta a importância da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos de todas as escolas do país e instituiu o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. Contudo, ele lamenta que a implementação dessa legislação siga aquém do esperado. 

“Diga-me sobre uma lei que beneficie o agronegócio e que não foi implementada rapidamente?”, provoca.. Ele também destaca que a tarefa de trabalhar o letramento racial não deve estar somente sobre os ombros dos movimentos negros, mas principalmente introjetada em ações de Estado, que igualmente precisam ser acompanhadas, para garantir que mudanças de fato ocorram. 

Recentemente, Frei David foi reconhecido como empreendedor social sênior pela Rede Global Ashoka por seu trabalho à frente da EducAfro, pelas mudanças significativas em escala nacional. A EducAfro já facilitou o acesso de mais de 60 mil jovens ao ensino superior e criou mais de 2 mil cursos preparatórios para o vestibular em todo o país. A instituição dirigida por Frei David também criou parcerias com diversas faculdades brasileiras como Insper e Fundação Getúlio Vargas. A Ashoka trabalha, desde sua fundação, identificando lideranças que atuam no enfrentamento de problemas sociais e combate às desigualdades. 

Leia abaixo os destaques da conversa:

Porvir – Como a Lei de Cotas reforça a percepção de que a educação é um direito humano?

Frei David – Essa ideia, infelizmente, só acontece para quem tem esse nível de entendimento. A população em geral, beneficiária das cotas, talvez não consiga pensar nisso. A sociedade também não pensa assim, e falta um trabalho qualificado de todos nós envolvidos em transmitir essa convicção. Portanto, eu Frei David, militante, tenho plena consciência de que a Lei de Cotas é um grande instrumento para fortalecer os direitos humanos no Brasil. Já fizemos contato com mais de dez países do mundo explicando a nossa lei e eu tenho certeza que um e outro deve ter se inspirado na metodologia.

Porvir – Em sua opinião, como trazer para a educação básica um letramento racial cada vez mais presente, de forma a dar consciência a jovens negros a respeito da própria raça?

Frei David – Nós estamos lutando desde 1996 para que todas as escolas de ensino fundamental e médio adotem a obrigatoriedade de incluir conteúdo sobre o povo negro e afro-brasileiro da mesma forma que fazem com o povo eurodescendente e sobre a Europa. Em 2003, antes de Lula ser eleito no primeiro mandato, o Congresso Federal aprovou a lei 10.639, que então foi assinada por ele. Em 2004, depois de uma grande pressão da comunidade, conseguimos que o Conselho Nacional de Educação estendesse essa obrigatoriedade também para o ensino superior. 

Porvir – Como observa o impacto desta legislação?

Frei David – Ora, conquistamos uma lei – que é o máximo que se pode conquistar – e em 2023 celebramos os vinte anos de existência dela. É uma lei que deveria preparar os jovens para ter uma consciência plena da questão racial, mas o que está acontecendo é que nem 10% das escolas públicas e particulares levaram a sério e com qualidade a aplicação desta lei

É um crime da nação querer jogar todo o trabalho da conscientização nas costas da comunidade negra organizada

Diga-me uma legislação que beneficia os bancos e que não foi colocada em prática rapidamente depois ou uma que beneficia o agronegócio… Então, por que uma lei que beneficia o povo negro, que tem a ver com a formação de todo o Brasil, de brancos e negros, não foi colocada em prática para além de 10% em vinte anos? Porque existe um racismo estrutural violento, cruel e destruidor. 

Porvir – Qual deveria ser o papel do Estado?

Frei David – É um crime da nação querer jogar todo o trabalho da conscientização nas costas da comunidade negra organizada. Isso é uma tarefa de Estado, e o Estado está sendo omisso. Além disso, há a omissão consciente dos ministérios públicos federal e estaduais, que são os guardiões da lei. 

A Lei de Cotas seria muito mais eficiente hoje se ela estivesse sendo aplicada em uma sociedade cujo povo entende muito bem a questão racial. Se continuarmos trabalhando com brancos e negros, adolescentes e jovens, que têm uma consciência muito frágil da história do negro na sociedade, vamos sofrer muito até chegar a algum lugar. 

Porvir – A universidade também pode ser hostil às pessoas pretas. Como combater esse cenário?

Frei David – Só existe um caminho: o letramento racial. As universidades inteiras estão sendo omissas também. Estamos entendendo que somente no embate vamos ter alguma mudança. A lei 10.639/03 foi estendida para aplicação nas universidades públicas e particulares e quase ninguém sabe disso.

A universidade vai parar de desrespeitar e excluir o povo negro quando nós, negros organizados, colocarmos os pingos nos is. Aqui eu faço uma autorreflexão sobre mim e as entidades dos movimentos negros: nós somos o movimento que talvez mais tenha ferramentas para lutar, o que nos falta são negras e negros convictos que queiram se jogar na luta com garra e determinação. 

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Na Alemanha, o serviço militar obrigatório pode ser transformado em serviço social obrigatório, em que o jovem pode ficar dedicado por um ano a uma causa social em qualquer lugar do mundo. Já recebi vários jovens alemães na minha igreja. Eu sonho em iniciar um tipo de serviço social obrigatório para brasileiros conscientes, uma opção ao serviço militar. Seria algo bem radical, com o jovem dedicando um ano inteiro de sua vida ao movimento negro.

Porvir – É possível avançar nestas questões sem políticas públicas efetivas? 

Frei David – Na verdade, os afro-brasileiros, teoricamente, são os que mais conquistaram políticas públicas. Mas vou ser um pouco duro conosco. Por falta de militância, as nossas políticas públicas são todas enganosas. A gente não exige botar em prática. Vou te dar um exemplo: no dia 21 de março de 2023, o excelentíssimo presidente Lula criou um decreto obrigando a todos os órgãos públicos a ter que contratar 30% de negros em cargos de confiança. Alguém está fiscalizando isso? Não, deixou solto. O Lula é irresponsável com o povo negro e brinca conosco. Fala coisas bonitas, mas não as coloca em prática. Estou cansado dessa atitude de uso do povo negro pela esquerda e pela direita. É preciso falar abertamente. 


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educação antirracista, ensino superior

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