Letramento digital em 100% da rede: o caso pioneiro de Poços de Caldas
Programa Ativamente leva tecnologia, recursos didáticos e formação para professores
por Vinícius de Oliveira 17 de maio de 2023
Com experiência de 20 anos em sala de aula, a professora Viviani Miglioranzi, que leciona língua portuguesa no ensino fundamental 2, tem visto seus alunos participarem com maior engajamento das atividades propostas. Na Escola Professor Antônio Sérgio Teixeira, em Poços de Caldas (MG), o projeto de criação de autobiografias chegou ao 8° ano no formato digital. E os estudantes sem acesso a computador e internet em casa passaram a ter a chance de escrever suas próprias narrativas por meio de ferramentas que até pouco tempo eram distantes.
“Agora eles conseguem formatar texto, acrescentar fotos de quando eram crianças e de integrantes de suas famílias”, descreve. Para além da expressão por meio da prática da escrita, Viviani destaca benefícios da atividade que não aparecem no boletim. “Foi uma forma de elevar a autoestima e de resgatar histórias que estavam esquecidas.”
Política de educação digital
Utilizar a tecnologia de forma crítica, significativa, reflexiva e ética é um dos pontos presentes na competência geral de cultura digital da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e um dos objetivos da Pned (Política Nacional de Educação Digital), promulgada no começo de 2023. Diante de um cenário cada vez mais conectado, é primordial que crianças, adolescentes e jovens compreendam conceitos como pensamento computacional e os impactos da tecnologia.
Em sua política pioneira de educação, Poços de Caldas, cidade localizada ao sul de Minas Gerais, na divisa com o estado de São Paulo, tem experimentado em 100% de suas 25 escolas de ensino fundamental, que atendem 12 mil alunos, um novo modelo de inclusão a partir da tecnologia. Por meio do programa “Educação para o Futuro – Projeto Ativamente”, parceria público-privada com a empresa A Recreativa, as unidades escolares recebem, desde o início de 2022, computadores e internet de alta velocidade. Com isso a cidade se tornou o primeiro município do Brasil a incluir no currículo semanal, integrado a outras disciplinas e para todos os alunos do ensino fundamental o letramento digital.
Ao final de cada aula, professores e estudantes respondem a uma pesquisa sobre as atividades apoiadas em tecnologia para tornar ações imediatas em parceria com a gestão escolar. Atualmente, a avaliação está perto de nota nove. Da mesma forma, o programa oferece um canal de suporte pedagógico ao professor, com respostas em até duas horas (a média atual é de 18 minutos) por meio do WhatsApp. “Existe uma preocupação de estar ao lado de tudo, de acompanhar o resultado e desempenho e a percepção de valor dos professores e dos alunos”, diz Rubens Massa, presidente-executivo da empresa A Recreativa, responsável pelo Projeto Ativamente.
É assim que a rede tem vencido barreiras ainda comuns para o bom uso de tecnologia na educação pública no Brasil. Basta olhar os dados da última pesquisa TIC Educação, do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), para entender o cenário. Em 2021, nada menos do que 82% dos professores de escolas públicas do país disseram ter número insuficiente de computadores por aluno e 72% citam a baixa velocidade de conexão à internet nas escolas como empecilhos ao uso das tecnologias digitais em atividades educacionais.
No entanto, o programa realizado na cidade mineira não trata apenas da infraestrutura de internet: ele chega às escolas como um ecossistema, que também oferece material didático e se dedica à formação de educadores em temas como letramento digital e educação midiática. Tudo isso envolvendo aprendizagem criativa e acessibilidade para o uso de ferramentas digitais. No dia a dia em sala de aula, docentes contam com acompanhamento de monitores para aliar tecnologia ao currículo de cada série.
Tecnologia a partir de um ecossistema
Em suas visitas a redes públicas, Rubens diz que há casos de escolas com robôs e dispositivos de última geração e outras com equipamentos defasados ou indisponíveis. “O conceito de ecossistema objetiva justamente sanar essa questão em qualquer um desses cenários. No primeiro cenário, porque otimiza o recurso público já aplicado, pois apenas a ferramenta tecnológica não traz solução alguma”, afirma, ao justificar uma estratégia centrada na prática do professor.
Segundo Rubens, quando não há acompanhamento inicial e contínuo, com formação pedagógica, os recursos tecnológicos acabam sendo deixados de lado, situação que pode acontecer até mesmo agora com a regulamentação amparada em lei para o ensino de cultura digital e computação, como no caso da Política Nacional de Educação Digital.
Nas escolas da rede de Poços de Caldas, o desenvolvimento de competências digitais começa nos 1° e 2° anos do ensino fundamental com atividades desplugadas, que apresentam os principais conceitos da computação em jogos e vivências lúdicas, ainda longe das telas.
A partir do 3° ano, com trabalhos no computador, os monitores apoiam os professores a criar conexão entre a tecnologia e o currículo do dia a dia. Além disso, por meio de um formulário que ganhou o nome de “Baú Mágico”, os docentes podem solicitar materiais adicionais para execução de projetos em classe.
Oportunidade para projetos autorais
É nesse cenário que surgiram projetos como o de produção de mídia na Escola Maria Ovídia Junqueira. As professoras Lilian Bernardes e Cristiane Aparecida Felix demonstram entusiasmo ao falar do jornal elaborado com as turmas de 4° ano.
Por meio do programa de educação digital do município, o trabalho com gêneros textuais conectado ao currículo ganhou a cara de um periódico de notícias, com manchetes sobre bullying e combate às fake news. Além do protagonismo do estudante, a tecnologia também estava presente em sala de aula.
“Quando imaginamos o projeto, era tudo muito novo e tínhamos dúvida sobre como iríamos integrar a tecnologia às nossas aulas. Pensamos no jornal porque conseguiríamos trabalhar vários eixos curriculares e fazer uma homenagem ao Jornal Mantiqueira, publicado na cidade e na região”, descreve Lilian.
Enquanto ganhavam familiaridade com o notebook, ao longo de quatro meses a turma se desdobrou para realizar entrevistas, escrever receitas, fazer pesquisa de campo na escola e na comunidade. O período de isolamento social impactou negativamente a sociabilização, as crianças voltaram mais tímidas e naquele período outro esforço das professoras foi no sentido de tornar a atividade colaborativa.
“Por conta da pandemia, eles tinham muita restrição em trabalhar em grupo”, lembra Cristiane. Também não era tarefa fácil falar com desenvoltura sobre a vida no futuro e a importância da leitura, discutir fato versus fake do que aparecia no noticiário e resgatar a história da escola entrevistando funcionários. “A gente só consegue respeitar quando conhece a história do lugar ou das pessoas. Ninguém chegou ali por acaso”, reforça Cristiane, sobre um dos objetivos da atividade.
“Dizíamos para os alunos que eles não poderiam faltar porque era tudo muito integrado. Fazíamos uma conversa às segundas-feiras e, no dia seguinte, eles usavam os computadores para montar o jornal como desejavam. Foi muito trabalho, mas tudo relacionado ao que acreditamos. Aluno protagonista dentro do mundo da tecnologia”, define Lilian. “É a escola que a gente estudou, fica perto de onde a gente mora. Essa atividade mostra que podemos acreditar na comunidade”.
Já Cristiane, sua colega de projeto, reforça: mais do que o lado acadêmico, professores são responsáveis por criar memórias, e o trabalho ao longo dos últimos meses foi capaz de demonstrar esse poder. Tanto é que a partir desse ano elas conquistaram o apoio de colegas para realizar mais projetos.
Responsável por aproximar o dia a dia da secretaria municipal de educação ao programa desde a metade do último ano, a professora alfabetizadora e arte-educadora Thais Morgana avalia que, em muito pouco tempo, foi possível produzir um projeto de qualidade. “Saímos no jornal da cidade, e as crianças ganharam uma cópia do trabalho. Foi um grande momento do ano. O Projeto Ativamente passou a ser visto como uma ferramenta do professor e esse é o objetivo da secretaria”, afirma.
Um jogo com a cara da cidade
Entre outros exemplos nascidos após a chegada de tecnologia às escolas de Poços de Caldas, está o projeto que desenvolveu pensamento computacional a partir de um jogo digital nas aulas da professora Benita Delgado, da Escola Municipal Antônio Sérgio Teixeira, a mesma da professora Viviani. Em sua turma do 5° ano, ela combinou o offline e o online ao realizar passeios e pesquisas pelos pontos turísticos da cidade. Muitos endereços até foram cenários de novela, mas as crianças não os conheciam.
Em pouco tempo, além da destreza com o teclado e o mouse, os estudantes passaram a acessar ferramentas de design, gravar suas vozes para acrescentar instruções ao jogador e, claro, escrever seus primeiros códigos no Scratch (linguagem de programação com a qual crianças e adultos podem criar animações, jogos e histórias interativas). “A maioria dos alunos não tinha contato com computador. Muitos falavam que só tinham visto computadores em lojas e que não sabiam manusear”, diz.
Com aulas de programação de duas a três vezes por semana, as ideias das crianças rapidamente saiam do papel e ganharam as telas do computador. “Eu não imaginava que uma criança de nove, dez anos, conseguiria mexer sozinha no Canva, fazer um cenário de jogo e fazer um avatar. E eles conseguiram”, diz a professora, sem esconder o orgulho da turma.
Para além da parte visual, foi necessário estabelecer regras de forma coletiva e escolher como seriam os personagens. Como estamos falando de Poços de Caldas, quem virou mascote das atividades acabou sendo a capivara, animal facilmente avistado em parques e nas áreas urbanas da cidade.
“O trabalho foi totalmente feito pelos alunos, sabe? E eu não tive participação… assim, pouco orientei. A ideia do jogo foi toda realizada por eles”, relembra a professora. Na volta ao offline, ela conta que sua maior satisfação foi ver os estudantes apresentando o projeto para suas famílias.