Material gratuito traz recomendações para criar uma escola anticapacitista
Em entrevista ao Porvir, Mariana Rosa e Karla Garcia Luiz, autoras de “Como educar crianças anticapacitistas”, reforçam a urgência de o ambiente escolar fomentar a diversidade e o respeito às pessoas com deficiência
por Ana Luísa D'Maschio / Ruam Oliveira 24 de agosto de 2023
Para que a educação seja de fato efetiva, é preciso que ela inclua todas as pessoas. O capacitismo, preconceito direcionado a pessoas com deficiência – seja intelectual, física ou sensorial –, cria barreiras e impede que a educação inclusiva ocorra.
No livreto “Como educar crianças anticapacitistas”, gratuito para download, as educadoras Mariana Rosa e Karla Garcia Luiz apresentam uma série de perguntas que incitam a reflexão sobre como apoiar crianças na construção de um pensamento crítico, livre de preconceitos.
“Nem sempre o capacitismo se manifestará como uma ofensa; ele pode acontecer na tentativa de um elogio, num comentário sem intenção de ofender. ‘Tão bonita, nem parece que tem uma deficiência’ é um ‘clássico’ entre as frases capacitistas”, escreveram.
Realizado pelo Núcleo de Acessibilidade da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina), o projeto tem orientação da professora Geisa Böck. Outras mulheres com deficiência fazem parte da iniciativa, como é o caso da ilustradora Paloma Santos.
Em conversa com o Porvir, Mariana e Karla comentam sobre a maior produção de conhecimento feita por pessoas com deficiência, e como isso impacta positivamente os materiais que podem ser trazidos às salas de aula.
Elas são um exemplo disso. Mariana é uma pessoa com deficiência que possui baixa visão e é mãe de uma criança com paralisia cerebral. Karla também é uma mulher com deficiência física.
Confira abaixo os destaques da entrevista:
Porvir – Por que é importante debater o anticapacitismo?
Mariana Rosa – O capacitismo também é aprendido historicamente e ele permeia a maneira como o mundo está organizado, suas estruturas e relações. Tudo está organizado para que sejamos convidados a classificar e hierarquizar pessoas a partir daquilo que a gente considera ou elege como normal, como padrão. Em algum momento da vida, optamos por chamar de normal ou atípico o que difere ou desvia dessa norma, em uma estratégia de hierarquização das pessoas. E fazemos isso de maneira tão naturalizada, apesar de não ser, que parece que categorizar as pessoas com deficiência é uma consequência natural. O capacitismo faz a gente pensar que se trata de uma ação de causa e consequência: a pessoa possui deficiência intelectual e então é tida com mais dificuldade, ou é considerada incapaz, e não é assim.
Porvir – E como debater o assunto em sala de aula?
Mariana Rosa – O capacitismo impregna as práticas na sala de aula de maneira que as pessoas entendam que a turma é, por exemplo, homogênea, como se isso fosse possível, e sabemos que não é. Precisamos trazer esse tema para a escola para que possamos passar a compreender a experiência da deficiência não como algo essencial da biologia, mas como uma construção social, como aquilo que acontece no encontro entre uma pessoa que tem algumas características que estão no seu corpo ou no funcionamento do seu cérebro e que o mundo não acolhe, nem oferece espaços, tecnologias, comunicação…
Porvir – Como o capacitismo estrutura muitas das relações sociais?
Karla Garcia Luiz – O capitalismo exige que as nossas relações sejam baseadas em capacidades, produtividade e lucro. Assim, tudo é estruturado de modo que alguns corpos, incluindo os de pessoas com deficiência, fiquem à margem. Como as estruturas são capacitistas, não acolhem a diversidade, as relações também vão se estabelecendo dentro desse enquadramento, de padrões de função e estéticos. Por exemplo: você vai ter padronizações relacionadas à capacidade de conhecimento, desempenho e produtividade levando em conta o corpo normativo, e tudo o que escapa desse padrão fica excluído.
Porvir – Isso se reflete na escola, de maneira geral?
Karla Garcia Luiz – A nossa educação é extremamente capacitista. Temos um único jeito de dar aula, às vezes um único meio de fazer avaliação. É muito difícil fazer os profissionais pensarem que a gente pode aferir aprendizagem de outra forma que não seja com prova escrita, por exemplo. Esse tipo de estrutura vai determinar como nos relacionamos com os outros.
Porvir – De que maneira a escola pode atuar para quebrar padrões que reforçam o capacitismo?
Mariana Rosa – A escola quebra padrões ao proporcionar espaços de produção de conhecimento e relações em que as pessoas convivem umas com as outras a partir de suas diferenças e não apesar delas. Ou seja, um convívio na diversidade, a experiência de ter pessoas com comportamentos diferentes dos meus, com modos de se locomover diferentes dos meus, maneiras de se expressar diversas etc. Isso faz com que a gente amplie o repertório, passando a compreender melhor essas pessoas que são mal interpretadas.
À medida em que a escola fomenta essa convivência e faz dela parte do currículo, a discussão se politiza, no sentido de entender quais são as relações que fazem com que uma pessoa, por ter determinadas características, viva uma experiência de desigualdade ou opressão.
Porvir – Na publicação, vocês abordam a curiosidade ingênua e a curiosidade epistemológica. O que isso significa? Como pode ser trabalhado em sala de aula?
Mariana Rosa – Quando a gente trabalha isso desde a infância, a curiosidade – que é quase ingênua – ainda não está contaminada pelos preconceitos do mundo e temos a oportunidade de construir saberes a partir de um outro lugar. Paulo Freire diz que a função do professor e da escola é transformar a curiosidade ingênua em uma curiosidade epistemológica. E como seria esse movimento na educação inclusiva? Se um estudante pergunta: “Ele não anda? Ele está em uma cadeira de rodas?” ou “Por que ele não fala?”, são questionamentos que nos dão a oportunidade de pensar sobre os diversos modos de as pessoas viverem, se comunicarem ou se locomoverem. É o momento de oportunizar isso.
Porvir – Poderia exemplificar?
Mariana Rosa – Trago um exemplo prático: minha filha recentemente fez uma gastrostomia (procedimento cirúrgico para a fixação de uma sonda alimentar). Ela vinha frequentando a escola e se alimentava oralmente. Quando retornou das férias agora em julho, voltou com uma nova condição de alimentação e as perguntas das crianças são um caldeirão de curiosidades. Os professores podem aproveitá-las para uma série de conteúdos: “Por que ela está se alimentando assim?”; “Ela vai sentir o gosto dos alimentos?” ou “Como se escreve gastrostomia?” Dá para pensar em biologia e língua portuguesa, tudo a partir das perguntas das crianças, disparadas pela convivência. Essas perguntas não existiriam se a gente não estivesse vivendo em um tempo em que a escola não é para todas as pessoas, com todos os desafios.
Porvir – Mariana, você diz que com a Karla teve seu primeiro contato com o conceito da ética do cuidado. Como foi esse momento e o que a ética significa dentro da educação anticapacitista?
Mariana Rosa – Nós integramos o coletivo feminista Hellen Keller de Mulheres com Deficiência e Karla comentou comigo sobre sua pesquisa de doutorado, voltada à ética do cuidado, me apresentando o conceito de maneira muito generosa. A ética do cuidado trata da interdependência que a gente precisa ter, ou seja, compreende que todos somos interdependentes e precisamos de cuidado para sobreviver. Nossa vida está sustentada em relações de cuidados. Parece banal lembrar disso, mas tendemos a achar que que só as pessoas com deficiência, que precisam de mediação para se alimentar ou com higiene, por exemplo, é que seriam dependentes. Não é verdade. Pense em um executivo bem-sucedido, quantas relações de cuidado o sustentam na posição que exerce? Alguém que cuida das suas roupas, alguém que faz o serviço de banco ou prepara sua comida, alguém que cuida dos seus filhos… A ética do cuidado reposiciona as nossas necessidades e relembra que todos nós dependemos de cuidado para viver.
Porvir – Onde os professores podem buscar referências para preparar aulas anticapacitistas?
Karla Garcia Luiz – Pessoas com deficiência vêm produzindo coisas interessantes em diversas áreas, inclusive na área acadêmica. Temos tentado articular esse conhecimento da academia com o ativismo e com as experiências cotidianas para que as pessoas possam ver que pessoas com deficiência também produzem conhecimento sobre elas mesmas. Acho que a escola também pode levar pessoas com deficiência para falar sobre o assunto. Sempre que possível, as pessoas com deficiência precisam ser ouvidas. No próprio livreto, por exemplo, além de Mariana e de mim que escrevemos, tivemos a preocupação de que a ilustração fosse feita por uma mulher com deficiência.
Buscar referências de pessoas com deficiência incrementa o seu argumento. Faz mais sentido e é um compromisso ético mesmo, quando você fala de deficiência, buscar referências que sejam de pessoas com deficiência porque a gente está no mundo. A gente também está produzindo arte e conhecimento.
Porvir – Vocês destacam s falam sobre a importância de um cotidiano de interação e convivência com pessoas com deficiência e citam algumas biografias (Frida Kahlo, Maria da Penha) como começo para a primeira infância. Por onde mais os professores e os pais podem seguir? Quais livros e materiais vocês indicariam?
Karla Garcia Luiz – É importante compreender que as pessoas com deficiência estão espalhadas pelo mundo, produzindo coisas muito interessantes para além de suas biografias. A própria Frida Kahlo, por exemplo, é uma das maiores artistas do século passado. E isso não tem a ver com sua deficiência, apenas. Tem a ver com o fato de ter sido uma grande pintora, que viveu a experiência da deficiência – e a retratou em algumas obras, inclusive.
Logo, é possível encontrar referências de pessoas com deficiência em muitos contextos: nas artes, na música, na literatura, no cinema, nas ciências, ou mesmo na produção de conhecimento científico sobre a deficiência, a depender do que se busca. Indicaria a própria Paloma Santos, que ilustra nosso livreto. É uma grande ilustradora e que experiencia a deficiência. Outras indicações são: o documentário “Crip Camp: revolução pela inclusão”, as contas no Instagram do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, do Papo Defiça e da Janela da Patty. Nos livros, indico “O lobo bom e a chapeuzinho vermelho”, escrito pelo Heitor Nuernberg, um garoto autista não-verbal de 12 anos.