Mitologias ensinam outras formas de viver o tempo e o mundo
Historiadora explica por que aproximar mitologias africanas e gregas em sala de aula é um gesto pedagógico e político que valoriza a diversidade cultural do Brasil
por Luan Silva / Ana Luísa D'Maschio
20 de maio de 2025
O mito é uma das primeiras formas pelas quais as sociedades humanas organizaram a percepção do tempo. Mais do que simples narrativas, essas histórias carregam símbolos, valores e modos de entender o mundo, refletindo as culturas que as criaram.
Foi com esse objetivo de explorar o tempo como construção cultural que o professor César Augusto Mendes Cruz, da rede pública estadual de Ilhabela (SP), levou para suas aulas do 6º ano o mito africano de Iroko, que representa o tempo como entidade espiritual, e a figura grega de Cronos, conhecido por devorar os próprios filhos para evitar ser destronado.
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Doutorando em história, César também recorreu a obras de arte e a canção “Oração ao Tempo”, de Caetano Veloso. No entanto, após críticas ao material pelas famílias e por um vereador, o professor se viu pressionado e acabou optando pela demissão.
Para discutir esse contexto e o uso pedagógico da mitologia, os limites da liberdade docente e os marcos legais como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), a Lei 10.639/03 e as Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-Raciais, convidamos a Mãe de Santo Lume Watanabe.
Formada pela USP (Universidade de São Paulo) e mestranda em história social, Lume pesquisa a constituição da Umbanda no Sudeste do Brasil no século 20. É também líder e dirigente do Terreiro de Umbanda Urubatão da Guia, reconhecido pelo acolhimento à população LGBT.
Nesta entrevista, ela fala sobre:
- A importância dos mitos na educação;
- A inclusão da diversidade cultural nos currículos;
- A construção de ambientes escolares verdadeiramente plurais e inclusivos.
Lume também lembra como o caso expõe um cenário mais amplo: a precarização da docência. Professores enfrentam jornadas exaustivas, condições estruturais precárias e cobranças sociais – além de perseguições e censura. O resultado é um adoecimento silencioso. Confira!
Porvir – O professor utilizou o mito africano de Iroko e a figura grega de Cronos para discutir o tempo como construção cultural. Pode nos explicar essa abordagem?
Lume Watanabe – Essa proposta é extremamente rica porque vai ao encontro de algo essencial no ensino contemporâneo: a valorização da pluralidade de saberes. Ao colocar o mito de Cronos em diálogo com o itan de Iroko – uma narrativa tradicional iorubá, que integra o conjunto de histórias sagradas conhecidas como itãs – o professor oferece aos alunos a possibilidade de compreender que o tempo, tal como conhecemos, não é uma verdade absoluta, mas sim uma construção simbólica e histórica. Trata-se também de uma forma de reconhecer a influência das culturas de matriz africana, como a iorubá, na formação do Brasil e na maneira como entendemos o mundo.
Cronos, na mitologia grega, representa um tempo linear, marcado pela sucessão, pela cronologia e, muitas vezes, por uma visão impositiva do progresso. Já Iroko, na tradição africana, está ligado a um tempo ancestral, que se dobra sobre si mesmo, que se enraíza no território, na espiritualidade e na coletividade. Esses dois mitos, quando apresentados juntos, provocam uma reflexão profunda: será que existe apenas uma forma de organizar a vida e o tempo?
Essa aula se alinha perfeitamente com o que orienta a BNCC (Base Nacional Comum Curricular, documento que orienta os currículos da educação básica no Brasil) e com o que defendem a ANPUH (Associação Nacional de História) e a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), principalmente no que diz respeito à liberdade pedagógica e à necessidade de formar sujeitos críticos.
Porvir – Qual é o papel dos mitos nesse processo de construção cultural?
Lume Watanabe – Os mitos são estruturas narrativas fundamentais. Eles organizam o modo como os povos compreendem a origem do mundo, o sentido da vida, as relações humanas, a morte, o tempo. São, muitas vezes, o que há de mais profundo e estruturante numa cultura.
No caso do tempo, por exemplo, as sociedades desenvolveram mitos que explicam sua passagem, seu início e seu fim. Seja o mito cristão da criação em sete dias, seja o mito de Cronos ou os itãs africanos (“história” ou “relato”, uma forma de transmitir saberes ancestrais que explicam como o mundo foi criado) como o de Iroko, tudo opera numa chave simbólica e revela muito sobre os valores daquela cultura.
Quando o professor traz esses mitos para a sala de aula, ele está dizendo: “olhem quantas formas diferentes de entender o mundo existem”. Isso é uma lição de humanidade, de respeito, de complexidade.
Porvir – Qual a importância de apresentar narrativas africanas junto à mitologia greco-romana?
Lume Watanabe – É absolutamente essencial. A escola brasileira, por muito tempo, foi profundamente eurocentrada. O que se ensinava nas aulas de história, literatura, filosofia e arte vinha quase exclusivamente da tradição europeia, como se o conhecimento legítimo só pudesse surgir de lá.
Quando um professor coloca uma narrativa/mitologia africana lado a lado com uma narrativa/mitologia grega, ele está fazendo um gesto pedagógico e político. Ele está dizendo que há outras formas de conhecimento e que essas formas também têm valor. E mais do que isso: ele está colocando os alunos em contato com a diversidade cultural que constitui o Brasil.
Incluir essas vozes é uma forma de reparar silenciamentos históricos. E é também uma forma de criar reconhecimento dos estudantes negros, indígenas e periféricos, seus modos de vida e suas ancestralidades e como eles também fazem parte da história do conhecimento humano.
Porvir – A BNCC respalda esse tipo de trabalho?
Lume Watanabe – Sim, e de maneira muito clara. A BNCC propõe que a escola desenvolva competências como o pensamento crítico, o respeito à diversidade e a valorização das diferentes culturas. Ela também afirma que a educação deve preparar os estudantes para viver em uma sociedade democrática e plural.
Ou seja, quando um professor traz para a sala de aula narrativas que vêm de outras matrizes culturais, ele está cumprindo uma exigência legal, mas, mais do que isso, está cumprindo um compromisso ético com a formação integral dos seus alunos.
| O que dizem as Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-Raciais |
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“É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntricomarcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e europeia. É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido à Lei 9.394/1996 provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas.” Acesse o documento. |
Porvir – A Lei 10.639/2003 torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas. Como isso respalda o uso de mitologias africanas?
Lume Watanabe – Essa lei representa uma conquista histórica do movimento negro brasileiro. Ela surgiu da necessidade urgente de combater o racismo estrutural dentro da escola — um racismo que se manifesta não só em atitudes e falas, mas também na ausência de conteúdos que valorizem as contribuições dos povos africanos e afro-brasileiros.
Quando a escola trabalha com mitos africanos, como o itan de Iroko, ela está fazendo exatamente o que a Lei propõe: oferecendo aos estudantes uma visão positiva das culturas negras e reconhecendo a profundidade dos conhecimentos africanos.
É importante lembrar que mitos, cosmogonias e religiosidades são ferramentas para compreender o mundo. Se ensinamos sobre a criação no cristianismo, o Gênesis, os santos católicos, por que não ensinar também sobre os Orixás, os Nkisis e os Voduns? Isso não é doutrinação religiosa. É alfabetização cultural, é reconhecimento da diversidade, é promoção de equidade.
Porvir – E como esse conteúdo pode ser abordado com respeito e profundidade?
Lume Watanabe – O primeiro passo é a formação dos professores. Muitos docentes tiveram pouco acesso a esses conhecimentos durante a graduação, então é fundamental investir em formação continuada.
Depois, é preciso entender que trabalhar com as culturas africanas vai além de falar sobre escravidão. Segundo a própria lei 10.639/2003 é necessário apresentar os aspectos positivos, filosóficos, espirituais, artísticos e científicos dessas culturas. Mostrar, por exemplo, como as religiões de matriz africana organizam o tempo, o espaço, as relações humanas. Como elas propõem outras éticas, outras lógicas de pensar o mundo.
Ao fazer isso, o professor contribui para a construção de um ambiente escolar mais justo e para a valorização das identidades de todos os estudantes.
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Porvir – A aula do professor foi criticada por apresentar mitologias e elementos da cultura afro-brasileira. Esse tipo de reação ainda é frequente?
Lume Watanabe – Infelizmente, sim. A gente está vivendo um momento de intensificação desses ataques, especialmente por parte de grupos que veem a diversidade como ameaça. Existe hoje um movimento organizado, muitas vezes ligado a setores religiosos conservadores ou a discursos de extrema-direita, que tenta sistematicamente silenciar professores e censurar conteúdos que saiam da lógica hegemônica, eurocêntrica, cristã e branca.
A crítica à aula do professor César não é um caso isolado. Ela faz parte de um projeto maior de desmonte da escola pública como espaço plural, democrático e crítico. Quando se ataca o conteúdo de uma aula que propõe discutir o tempo a partir de diferentes culturas, o que se está dizendo é: “só uma visão de mundo é válida”. Isso é muito grave.
Porvir – A obra “Saturno devorando um filho”, de Goya, também foi alvo de críticas. Qual o papel da arte no ensino de temas complexos?
Lume Watanabe – A arte sempre foi um campo de disputa, porque ela nos obriga a pensar. Uma obra como a de Goya não é feita para ser confortável. Ela é provocativa, densa, simbólica, e exatamente por isso é potente do ponto de vista pedagógico. Quando o professor usa essa imagem com mediação, com contextualização, ele está ajudando os estudantes a desenvolverem repertório estético, capacidade crítica e sensibilidade histórica.
A crítica à pintura de Goya é, na verdade, uma crítica à própria ideia de educação crítica. E ela revela um paradoxo: os mesmos grupos que defendem violência armada, punição severa, militarização das escolas, são os que se dizem “protetores da infância” quando uma obra de arte os confronta.
Porvir – Algumas pessoas disseram que a obra era inadequada para crianças. Como avaliar esse tipo de julgamento feito fora do contexto pedagógico?
Lume Watanabe – Esse tipo de julgamento é extremamente problemático, porque desconsidera o planejamento pedagógico e a capacidade profissional do docente. A escola não é um espaço de improviso: um professor que escolhe uma obra como essa para trabalhar com estudantes não está “jogando uma imagem” na tela aleatoriamente. Ele está fazendo isso com um objetivo didático, com uma estratégia de mediação, considerando a idade dos alunos, o momento da aula, o repertório da turma.
O problema é que, nas redes sociais ou nos debates públicos, muitas vezes esses contextos são ignorados. A imagem é retirada do plano de aula, da sequência didática, do projeto pedagógico, e passa a circular sozinha, como se fosse um “flagrante” de abuso. E isso fragiliza o trabalho docente, abre espaço para perseguições e leva a uma pedagogia do medo.
Porvir – Como situações como essa impactam a saúde mental e o cotidiano dos professores?
Lume Watanabe – Impactam de forma brutal. A gente já está falando de uma profissão extremamente precarizada. Os professores da rede pública trabalham jornadas excessivas, muitas vezes mais de 60 horas por semana, acumulam cargos, enfrentam condições estruturais precárias nas escolas e lidam com uma cobrança social enorme. E, além de tudo isso, ainda têm que lidar com perseguições, censura e ameaças.
Esse cenário gera adoecimento físico e mental. Os índices de depressão, ansiedade e burnout entre professores são altíssimos. E o mais cruel é que, muitas vezes, esse sofrimento não é visível. A sociedade naturaliza a sobrecarga docente como se fosse “parte do ofício”. Mas não é. Isso é violência institucional.
Porvir – Como a escola pode se fortalecer diante dessas pressões? É possível envolver a comunidade nesse processo?
Lume Watanabe – Sim, e isso é fundamental. A escola precisa estreitar o diálogo com a comunidade, não de forma defensiva, mas propositiva. Explicar o que está sendo ensinado, por que está sendo ensinado, quais leis e diretrizes sustentam aquele trabalho. Quando as famílias entendem o propósito da aula, o que está por trás da escolha de um texto, de uma imagem, de uma atividade, a resistência tende a diminuir.
Claro que nem sempre isso é possível, especialmente quando lidamos com grupos que não querem o diálogo, que atuam de forma autoritária, tentando impor uma visão única de mundo. Mas mesmo nesses casos, a escola precisa se posicionar. Precisa afirmar que seu papel é garantir uma formação plural, diversa e laica, como determina a Constituição.
Porvir – Que mensagem você deixa para os professores que buscam inovar e promover mitologias e conteúdos diversos, mesmo diante de tantas dificuldades?
Lume Watanabe – Eu quero dizer, com toda a força, que o trabalho de vocês importa. Cada aula que desafia o senso comum, que inclui vozes historicamente silenciadas, que apresenta outras formas de ver o mundo é um ato de resistência.
Eu, enquanto criança trans, criança de terreiro, cresci numa escola onde nunca me vi representada. Aprendi sobre reis da Europa, sobre guerras coloniais, sobre um mundo que não falava comigo. E eu teria sido uma outra pessoa se tivesse tido aulas como a do professor César.
Então, quando você, professor ou professora, coloca Iroko ao lado de Cronos, quando você mostra que existem outros tempos, outras espiritualidades, outras lógicas — você está oferecendo às suas turmas não só conhecimento, mas também possibilidades de existência.
Por isso, eu digo: não desistam. Por mais que tentem nos calar, por mais que a censura avance, sigam firmes. A educação é território de disputa, sim — mas é também território de esperança. E é essa esperança que a gente carrega quando entra na sala de aula e diz: “a educação é uma ferramenta para mudar o mundo”.
Luan Silva
Designer Gráfico e de Experiência do Usuário (UX), é professor e trabalha como designer no Porvir. Pessoa preta e LGBTQIAPN+, impulsionador da inclusão e equidade em todos os espaços, tem graduação em Tecnologia do Design Gráfico e certificado como profissional de UX pelo Google.





