O papel da escola na luta contra a crise climática
Em entrevista ao Porvir, a cientista de mudanças climáticas Luciana Gatti destaca o papel fundamental das árvores na manutenção do clima e na tentativa de redução da temperatura global
por Ruam Oliveira 10 de fevereiro de 2023
Conteúdo atualizado em 14/02/2023
No Brasil de 2021, aproximadamente 18 árvores foram desmatadas por segundo; 189 hectares por hora. Amazônia e os biomas Cerrado e Caatinga respondem por 96,2% da área atingida neste período.
Os dados, presentes no Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, divulgados no ano passado pelo MapBiomas (rede colaborativa de mapeamento ambiental, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia) reforçam o cenário de degradação e urgência a respeito do meio ambiente e das questões climáticas.
São dados alarmantes, que seguem impressionando até mesmo quem está mergulhado nos estudos sobre o tema. A cientista de mudanças climáticas Luciana Gatti, pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), coordenou um estudo que revelou que as emissões de gás carbônico na região amazônica dobraram entre 2019 e 2020.
Sua pesquisa, em colaboração com 18 pesquisadores brasileiros e estrangeiros e publicada na revista inglesa Nature, uma das mais prestigiadas publicações científicas do mundo, mostra como uma parte da floresta, em vez de absorver o gás carbônico da atmosfera, tem se tornado fonte de CO2 por causa das queimadas. “Estamos acabando com nossa fábrica de chuvas”, definiu ao portal Infoamazônia.
Em entrevista ao Porvir, ela conta que ser cientista do clima é ter consciência de que a humanidade caminha a passos largos para um colapso. Ao mesmo tempo que isso a deixa desesperada, em suas próprias palavras, ela ressalta que essa noção a faz querer alertar ainda mais e disseminar as informações que têm encontrado em suas pesquisas.
Na conversa, ela pontuou como as escolas podem – e devem – incluir a temática em seus currículos, entendendo que se trata de um problema urgente que já afeta toda a população mundial nos dias de hoje.
Leia a entrevista:
Porvir: O assunto mudança climática é algo do futuro ou um tema que está entre nós e, por isso, deve ser incluído na sala de aula?
Luciana Gatti: Essas mudanças já começaram. Observamos no Brasil, em 2021, uma tempestade de areia que é um fenômeno de deserto. Isso não é normal, isso não existia. Quando a gente observa o número de tragédias que estão acontecendo, com chuvas extremamente volumosas em um período curto e que causam desbarrancamento, um monte de gente morre ou perde tudo, rios que inundam e vão inundar as casas, entendemos que as mudanças climáticas já chegaram. Há mais de um século a ciência vem dizendo que elas iam ocorrer
Os primeiros artigos já mostravam que a gente usando o petróleo, combustíveis fósseis e enchendo a atmosfera com compostos que são capazes de absorver energia na forma de calor, nós iríamos esquentar a Terra. Na época, falávamos sobre o aquecimento global. Agora, não escutamos mais esse termo, e sim mudanças climáticas.
Porvir: Por quê?
Luciana Gatti: Antes, a gente sabia que enchendo mais a atmosfera de compostos que absorvem energia na faixa de calor, o planeta iria esquentar e a temperatura subir. Por isso a gente chamava de aquecimento global. Mas conforme os modelos climáticos foram evoluindo, e junto com as observações de eventos extremos, foi-se entendendo que o pior dessa história não era aumentar a temperatura. Pior do que aumentar a temperatura é o momento dos eventos extremos que causam tragédias para um enorme número de pessoas. É importante entender que já começou e o aumento disso é exponencial, não é linear. A cada ano é pior.
Porvir: Que tipo de perguntas devem ser feitas para gerar reflexão sobre esta questão e qual a melhor etapa de ensino para começar a tratar do assunto?
Luciana Gatti: Devemos perguntar o que nós estamos fazendo de errado para que isso esteja acontecendo e como podemos nos corrigir. E esse é o principal motivo de ser tão importante ensinar o assunto desde os primeiros anos da escola fundamental.
Na verdade, a gente tem que se reeducar. As mudanças climáticas são consequência do jeito em que a gente vive neste planeta. Está errado, a gente tem de mudar. Temos que entender que quem mantém o clima é a natureza.
Porvir: O que falta para essa compreensão?
Luciana Gatti: Árvores são fábricas de água. Árvores são fábricas de chuva. Por que eu digo em duas frases separadas? Porque a árvore do lado do rio preserva o rio, do lado das nascentes preserva nascentes, no meio da floresta ajuda a fazer chuva, reduz a temperatura evapora… Como nós temos uma cultura de desprezar a natureza e de não nos entendermos como parte dela, estamos desmatando, desmatando e desmatando. Cada vez estamos destruindo mais a natureza ao ponto do ser humano ter mudado o planeta. O ser humano já mudou tanto a natureza que ela está sendo dominada pelos efeitos dessas mudanças. Nós mudamos o clima.
Porvir: Como ter contato direto com esse tema por tanto tempo te afeta?
Luciana Gatti: Eu me desespero. Às vezes, choro quando falo do assunto. Ser um cientista climático é entender que a humanidade está caminhando cada vez mais rápido para um colapso. Apesar de todo mundo saber disso, reduziu alguma coisa? Não! Pelo contrário: quando você olha as emissões globais, elas só aumentam.
Sinceramente, acredito que em cinco anos estaremos todos desesperados por essa mudança [de mentalidade] para ontem. Porque os eventos extremos estão aumentando exponencialmente. I
Porvir: Como seremos impactados?
Luciana Gatti: A cada ano que passa, mais pessoas vão morrer de eventos extremos. Você já observou como em outros países queimadas incontroláveis estão chegando nas cidades?Eu fico desesperada de ver a gente caminhando para um abismo, mas cada vez tenho mais garra e gana de fazer ações, de chamar atenção, de propor mudanças. Acho que se estamos vivos é porque esse é o desafio colocado para nossa geração. É o nosso desafio evolutivo como ser humano.
Porvir: O desmatamento tem grande peso dentro dessa discussão. Dentro do atual contexto, o que é preciso priorizar?
Luciana Gatti: A gente tem que supervalorizar as árvores. Temos que fazer uma campanha por árvores. Quanto mais árvores você tira, mais a temperatura aumenta e quem promove o evento extremo é essa diferença gigantesca de temperatura entre uma frente fria que está chegando e a temperatura superquente que está na superfície cada vez mais desmatada.
Creio que precisamos criar s vídeos explicativos, mostrando o papel da árvore e da floresta na manutenção do clima, para facilitar esse entendimento.
Referências |
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No livro “Nós somos o clima”, o jornalista norte-americano Jonathan Safran Foer elenca uma série de informações que dialogam com a realidade brasileira quando se pensa no avanço do uso de áreas verdes para criação de gado e agronegócio. Em determinado momento, ele cita: “Permitir que terras tropicais usadas para o gado sejam revertidas em florestas poderia, no momento, mitigar mais do que metade de todos os gases de efeito estufa antropogênicos”. Essa não é uma realidade unicamente brasileira. Em outro ponto do livro, o autor aponta que aproximadamente 80% do desmatamento “ocorre para preparar terreno para pasto ou plantar espécies vegetais para ração de gado”. O aumento do desmatamento influencia diretamente no clima. Um estudo da Scientific American mostrou que “o desmatamento de florestas tropicais libera mais dióxido de carbono na atmosfera do que a soma de todos os carros e caminhões nas estradas no mundo”. |
Porvir: Por que o clima está mudando tanto?
Luciana Gatti: São dois os motivos: a gente usa combustíveis fósseis. Nós temos que reduzir essas emissões, esse é o primeiro ponto. Em segundo lugar, temos que restaurar a natureza, minimizar o estrago que a gente tem feito na cobertura do solo.Desmatamos mais do que podia. Hoje a palavra de ordem é restaurar os ambientes florestais, plantar árvores.
Porvir: Entender as mudanças climáticas requer uma mudança de comportamento de que maneira?
Luciana Gatti: A gente está fazendo tudo errado. Um monte de gente percebeu isso durante a pandemia e está voltando para o campo, aprendendo agrofloresta, bioconstrução… A pandemia fez muita gente acordar, isso é um movimento muito bonito. É um movimento evolutivo.
Porvir: Por onde os professores podem começar a pensar em projetos com essa temática?
Luciana Gatti: Eu diria que a gente pode começar com o mais básico, que é fazer um levantamento de nascentes que secaram, do nível do rio que desceu. Aí é possível ver o quanto a vegetação reduziu na região. E então propor um projeto que vai valorizar o papel das árvores de um jeito muito palpável. A partir disso, também é possível entender por que o clima está mudando e gerar motivação na turma.
Porvir: Qual o maior desafio em retratar o que têm visto na Amazônia e chamar a atenção das pessoas?
Luciana Gatti: O maior desafio é as pessoas entenderem que nós temos alternativa de geração de renda. Porque elas estão destruindo a Amazônia por conta de um modelo antigo que mostrou ser o errado, que desmata tudo: 90% da Amazônia é gado. E 10% é só de milho. O governo Bolsonaro impulsionou muito o garimpo… Esse é um modelo destrutivo, mas já existem inúmeros outros modelos de geração de renda com a floresta em pé, baseado em semente, nos frutos, nas árvores…
Porvir: O que diria para meninas e jovens estudantes que desejam ser cientistas e inclusive trabalhar com questões climáticas?
Luciana Gatti: Eu diria que elas têm tanta competência como qualquer menino, como qualquer pessoa. Eu sou uma cientista brasileira e fui uma menina como qualquer outra: brinquei, fiz tudo. Hoje estou indo para o meu terceiro artigo a ser publicado numa das revistas de maior impacto da ciência como primeira autora.
Eu diria a elas: vocês podem fazer qualquer coisa, eu não sou especial. A dica que eu dou é: invistam naquilo que têm prazer em fazer, que sentem alegria em fazer porque, com certeza, vão fazer bem feito. Sempre acreditem em vocês .
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Conteúdo atualizado em 14/02/2023