O que falta para articular prática e teoria nos cursos de licenciatura
Estudo mapeia o que há de mais atual nos currículos e nas metodologias dos cursos de formação inicial pelo mundo; conheça o exemplo de uma instituição brasileira que se aproxima da Base de Formação
por Maria Picarelli 9 de março de 2021
A experiência internacional aponta para uma tendência de articulação entre teoria e prática como um dos eixos da formação inicial de professores. Em países como o Chile, Estados Unidos e em várias partes do mundo, cursos de pedagogia e licenciatura se ancoram em estágios, muitas vezes, ao longo de toda a formação.
Além disso, nesses locais, a base teórica dialoga com a experiência que os professores em formação têm nas escolas. Esses são alguns dos aspectos da apresentados na nota técnica “Formação Inicial de professores: Uma visão para a construção de propostas pedagógicas orientadas para a prática”, lançada pelo Instituto Península.
O estudo reúne evidências para fomentar o debate sobre um novo olhar para os cursos de pedagogia e licenciatura, alinhado com as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores, aprovadas em 2019 e que devem funcionar como base para a reestruturação dos cursos de pedagogia e licenciatura no país. Antes das Diretrizes, em 2018, foi aprovada a BNC (Base Nacional Comum para a Formação de Professores). Ambas estão alinhadas com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), modo que a formação de professores se articule com o que se espera da formação dos estudantes.
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Nesse sentido, as Diretrizes estabelecem, entre outros pontos, uma carga horária de 3.200 horas, um perfil de egresso baseado em competências e enfatiza currículos baseados na prática e no conhecimento pedagógico do conteúdo (ou seja, como ensinar o conteúdo).
Em contrapartida, no Brasil, os cursos de pedagogia e licenciatura estão distantes desse modelo, pois tendem a enfatizar o conhecimento teórico, muitas vezes desarticulado da prática, como mostram pesquisas coordenadas por Bernadete Gatti. Com base na análise dos currículos de 71 cursos de pedagogia, a pesquisadora mostrou que, em 2010, os fundamentos da educação correspondiam a 27% dos currículos. Em 2015, subiram para 36%.
Para Alice Carraturi, doutora em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e organizadora da BNC, as Diretrizes e a Base da Formação caminham na direção de experiências internacionais bem-sucedidas, especialmente no que diz respeito a uma visão mais profissional do trabalho do professor – diferentemente da percepção de que ser professor é uma vocação, defendida por muitos.
Em outros países, a prática não se resume ao estágio nos moldes dos cursos de pedagogia e licenciatura brasileiros: ela acontece ao longo de todo o curso, a partir do momento em que o estudante ingressa na faculdade, num modelo que se aproxima da residência, praticada nos cursos de medicina.
Em instituições como a Pontifícia Universidade Católica do Chile, destaca Alice, o currículo é voltado para a prática. “O professor precisa aprender o que vai ensinar, como vai ensinar e como o aluno pensa e aprende”, afirma. Nesse sentido, na universidade, as disciplinas teóricas não passam de 15% do currículo, enquanto no Brasil chegam a 75%, comenta a pesquisadora, que participou da elaboração da nota técnica. “Existe um preconceito que a prática não ensina a pensar, como se pensar e fazer fossem atividades apartadas uma da outra”.
Na visão de André Raabe, professor e pesquisador da Univali, em Itajaí (SC), a necessidade de mais prática nos cursos de licenciatura é grande e é um avanço que a base tenha incluído a ênfase na prática. “Tradicionalmente, temos uma formação muito teórica e também temos muita dificuldade na obtenção de estágios, de que os estudantes tenham uma prática transformadora”.
Ele lembra que é um desafio proporcionar estágios de docência a todos, especialmente nos cursos a distância, em que é necessário atender a um grande número de estudantes. “Também é um desafio que a prática não seja desassistida, que tenha intenção pedagógica. Essa relação entre universidades e as redes, especialmente as públicas, precisa ser mais bem regulamentada”, analisa Raabe.
No Chile
Na experiência chilena, a ênfase na prática consiste em permitir que os estudantes tenham vivência da sala de aula e da escola desde o primeiro semestre. “O professor que está em formação precisa ter contato com a atividade real para ser capaz de responder a um problema prático”.
Outro ponto importante é que o estágio é bem orientado, afirma organizadora da BNC. “O professor orienta, o aluno aplica na escola onde faz o estágio e dá a devolutiva do que deu certo ou errado”. Outra característica é a articulação entre o professor que orienta o estágio e o professor da escola onde o estudante faz o estágio. “Os dois são corresponsáveis pela formação”.
Além do Chile, a “experiência da escola real” está presente na formação de professores em países como Israel, Finlândia, Austrália e Estados Unidos. Nos Estados Unidos, o chamado modelo Step, sigla de Stanford Teachers Education Program (Programa de Formação de Professores da Universidade de Stanford), que busca o equilíbrio entre teoria e prática, aplicando a primeira para resolver desafios que surgem no dia a dia, é uma fonte de inspiração para instituições de ensino em várias partes do mundo.
Um caso brasileiro
Trazer abordagem para a realidade brasileira envolve uma série de desafios, como revela a experiência da Faculdade Wlademir dos Santos, em Sorocaba (SP). Desde 2016, a instituição mantém um curso de pedagogia organizado em módulos numa proposta que se alinha com os princípios que nortearam a Base da Formação.
O curso prevê atividades de estágio desde o primeiro semestre, realizadas em escolas privadas e públicas do município e integradas às aulas, no período noturno. Os estagiários recebem uma bolsa.
“Durante quatro anos, nossos estudantes passam de 4 a 6 horas por dia numa escola, vivenciando a realidade como ela é”, conta Maura Maria Moraes de Oliveira Bolfer, coordenadora da faculdade.
Por isso, o curso exige dedicação integral dos alunos. Em contrapartida, a formação articula a teoria e a prática, permitindo que os estudantes compreendam e analisem suas experiências à luz do conhecimento teórico. Maura dá um exemplo: ao analisar um planejamento de aulas do professor da escola onde fazem estágio, os estudantes são instigados a perceber as metodologias de ensino embutidas no planejamento, as concepções de ensino e aprendizagem.
Cada módulo é composto por cinco disciplinas e cada uma delas é ministrada em um dia da semana. Assim, as aulas são mais longas do que o usual, o que favorece a utilização de metodologias ativas e, mais uma vez, a articulação entre teoria e prática.
Os docentes da faculdade são professores ou passaram pela educação básica e têm pós-graduação, ou seja, também eles articulam teoria, pesquisa e prática. “Isso é importante porque os alunos têm nos professores um modelo de como atuar quando estiverem formados”, analisa Maura.
A proposta, porém, esbarra em alguns obstáculos, como por exemplo, o fato de ser período integral, o que destoa da maior parte dos cursos de pedagogia e licenciatura.
Nesse sentido, Raabe destaca que um dos problemas centrais é a cultura estabelecida. Para isso, os professores que atuam nas licenciaturas precisam receber o apoio necessário para oferecer atividades práticas mais conectadas com o sistema educacional.
“Toda mudança precisa ser feita com critério e cuidado, portanto essa incorporação não deve ser de modo radical. Ela deve ser gradativa e de modo que os cursos tenham condições para incorporar as mudanças”, aprofunda Raabe. Tão importante quanto incorporar a prática aos cursos, são os mecanismos de gerenciamento e acompanhamento factíveis e realistas no curto, médio e longo prazo. Em educação as mudanças não acontecem de uma hora para a outra”, conclui.
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