‘Precisamos olhar para todas as rodas da engrenagem que é a comunidade escolar’
Momento deve envolver escuta atenta, espaços para compartilhar sentimentos e esforço para entender quais eram as expectativas de alunos, professores, famílias e funcionários da escola para o retorno.
por Maria Victória Oliveira 21 de julho de 2020
É consenso entre profissionais que atuam com educação que a retomada das aulas presenciais demandará cautela, paciência e atenção ao estado psicológico não só dos alunos, mas também de professores, coordenadores, diretores, demais funcionários e toda a comunidade escolar. Pensando em auxiliar gestores para um retorno às aulas de forma emocionalmente mais saudável, o LIV (Laboratório Inteligência de Vida) lançou a Jornada do Selo Azul. A iniciativa propõe um percurso a instituições de ensino para refletir como o momento influenciou a saúde mental de crianças, jovens e adultos.
Na primeira etapa do processo, foi apresentado o Guia de Acolhimento na Volta à escola, que explica as quatro paradas da Jornada: raio X da saúde mental, acolhimento, elaboração, e ancorada. As escolas que realizarem a inscrição e percorrerem todo esse processo, ganham o Selo Azul, que simboliza que aquela comunidade escolar reconhece a importância de um olhar consciente para o acolhimento e para a saúde mental neste momento de retomada.
Já o raio X da saúde mental consistiu na criação de infográficos a partir de estudos e pesquisas. O raio X dos professores, por exemplo, indicou que 90% dos docentes ficaram muito ou totalmente preocupados durante a pandemia, sendo que 75% não recebeu qualquer tipo de suporte emocional. Já o material sobre a juventude mostrou que 28% dos jovens pensa em não voltar à escola após a pandemia e 70% relatam piora no estado emocional durante o período.
A terceira etapa da Jornada corresponde à fase de Acolhimento e, para entender sua abordagem e importância, o Porvir conversou com Marcia Frederico, psicóloga e consultora pedagógica do LIV. Confira a seguir.
Porvir: Por que o LIV dedicou uma etapa inteira da jornada para tratar e incentivar o acolhimento não só de crianças, mas de toda a comunidade escolar? Quais são os efeitos práticos desse tipo de ação?
Marcia: O (escritor, palestrante, educador e palhaço) Claudio Thebas, que colaborou na elaboração dessa etapa, traz uma reflexão interessante sobre a etimologia da palavra acolher, que vem de colher, coletar e tem a ver com coletividade. A essência da formação da coletividade é você poder colher esses afetos, essas emoções que estão sendo vividas durante esse período de isolamento.
Nessa pandemia, algo coletivo, cada pessoa vivenciou e está vivenciando os cenários e situações de formas diferentes. Muitas vezes, não sabemos sobre as perdas, lutos, dores, ou até as descobertas, as ressignificações. Então é importante olhar, escutar e compartilhar esses sentimentos nesse primeiro momento, deixando claro que isso não irá se esgotar no primeiro dia. Como qualquer adaptação, teremos sempre períodos de idas e vindas, pode ser que tenham coisas que voltem a ecoar lá na frente, e então temos que parar, acolher de novo e coletivizar aquela experiência.
É importante que isso não aconteça apenas com os alunos ou professores. Partindo da visão sistêmica, precisamos olhar para todas as rodinhas da engrenagem. Antes de mais nada, é preciso entender como estão os funcionários, os colaboradores da escola, os professores, e como estão encarando essa nova situação. Lá no começo, os professores enfrentaram o desafio de passar para a aula online de uma hora para outra. Agora que as coisas estão mais ou menos encaixadas, vai ter uma outra etapa: essa mescla de presencial e online. Então é necessário ouvir os medos dos docentes, porque são eles que irão recepcionar os alunos.
Porvir: Na primeira temática dessa etapa, o reencontro, o guia menciona a importância de entender as expectativas e como é possível reconhecer e celebrar o momento da volta às aulas respeitando as recomendações sanitárias. De que modo isso pode ser feito?
Marcia: Muitas pessoas cultivaram, durante a esse tempo de espera da quarentena e do mantra ‘vai passar’, uma expectativa, muitas vezes, de um reencontro festivo, com abraços. Quando se fala na volta às aulas, ainda estamos presos a uma lembrança do passado, onde era possível e permitido termos reencontros com esse “embolado de gente”. Faremos uma volta cheia de amarras, protocolos e regras. Não será algo livre, como soltar todo mundo no pátio da escola. Isso é importante de ser alinhado para evitar frustração e decepção, principalmente com crianças. Devemos entender que são essas regras, na verdade, que estão possibilitando minimamente que voltemos a nos ver. É nesse sentido que devemos realizar uma desconstrução do imaginário de todo mundo.
No início da pandemia, por exemplo, durante atendimentos das escolas parceiras do LIV no programa socioemocional, ouvi professoras e outros atores das escolas falando sobre os planos que tinham para a retomada das aulas, que iriam cozinhar com as crianças, abraçar os alunos e fazer festa. Quando vemos que nada disso será possível, é importante pensar em um jeito de descobrir outros símbolos, outras formas no nosso corpo, na nossa expressão e no gesto que mantenham a intensidade da nossa emoção e felicidade de estar se revendo, mas que não precise ser nessa explosão corporal que impulsivamente teríamos. Devemos repensar, reeducar e reorganizar as nossas emoções, gestos e símbolos, para que o reencontro não fique apenas em uma idealização frustrada.
Porvir: Você menciona que as regras vieram para reaproximar e possibilitar que a comunidade escolar vivencie o mesmo espaço novamente de forma segura. Na segunda temática da fase do acolhimento, o guia traz atividades lúdicas que podem ajudar na hora dos combinados, principalmente para crianças menores. Como adotar atitude semelhante com alunos mais velhos?
Marcia: Com certeza. Quando falamos que a ênfase é para os menores, é porque essa é a linguagem deles quase total. Também elaboramos vídeos para concretizar algumas noções como a importância de lavar as mãos e como o contágio acontece, que para nós já estão claras. Mas os maiores têm outros recursos simbólicos, de linguagem e de compreensão. A ideia de pintar a máscara, por exemplo, e fazer outras coisas juntos, de acordo com cada etapa, idade e compreensão, faz uma força de união, porque no momento que estamos construindo juntos algo que vai nos identificar, é muito positivo. A forma com que eu pinto e significo a minha máscara, permite que eu me individualize mas, ao mesmo tempo, faça parte desse coletivo. Às vezes é difícil dar voz a tudo isso, mas acho que a expressão do individual, mesmo estando no coletivo, é uma forma de significar esse período histórico e inédito que todos estamos passando juntos, mesmo que dentro das nossas diferenças.
Porvir: Na temática sentimentos precisam ser acolhidos, o guia menciona que uma das atividades possíveis é a recepção das famílias. Como pais, mães e responsáveis, juntamente com a escola, podem fazer essa parceria e ajudar na retomada das aulas presenciais?
Marcia: Ouvir as famílias é fundamental para entender os cenários que cada uma viveu nessa situação, poder entender as perdas que tiveram, não só econômicas, mas também perdas de vida que podem ter enfrentado. Um filho é um reflexo da família e vice-versa. Muitas vezes, há um choque de ideias no ambiente familiar, uma pessoa acha que é positiva a volta, a outra acha que é só perigo. Então realizar essa escuta e poder apresentar que aportes a escola está preparando para que possa ter o máximo de rigor nas questões sanitárias e de cuidado, é importante para passar essa segurança para a família, para que ela passe essa sensação de ‘acho que dá para ir para a escola’ para seus filhos. Por isso todos deveriam estar ligados em uma comunicação comum, com clareza.
Esse é um tema, aliás, que vem de antes da pandemia. A comunicação família-escola já vem deficitária há muito tempo. Não é de agora que as escolas reclamam que famílias evadiram e não frequentam reuniões, principalmente quando os filhos crescem, ou deixam para a escola essa pasta de educar de forma integral, ao passo que a escola se sente sobrecarregada. Nesse momento que a aula passa a acontecer dentro de casa, de alguma forma a família volta a estar afetada, incluída ou participando.
Ao mesmo tempo, foi preciso retomar para a família a questão da educação integral dos filhos. O isolamento foi um momento no qual muitas coisas puderam ser vistas, revistas, redimensionadas, reconversadas. Eu imagino e espero que as famílias estejam muito mais atentas a seus filhos, já que tiveram esse tempo para estar mais perto e presente. Acho que alguns laços devem ter sido aprofundados e até mesmo resgatados.
Porvir: Professores e especialistas dizem que o momento abre a oportunidade de rever currículos. No caso do acolhimento, também é possível repensar a importância dessa fase e dos momentos de escuta e compartilhamento de sentimentos? Isso pode deixar um legado?
Marcia: Eu espero que isso seja sem volta, daquelas coisas que torcemos para que as pessoas realmente entendam o quanto foi importante para manutenção dos vínculos. Costumamos falar que é diferente um professor que, mesmo no virtual, dá bom dia e pergunta genericamente como a turma está, daqueles que dedicam um período para saber de verdade como os alunos estão. Com certeza esse professor vai ter muito mais condições de ter outro tipo de envolvimento do aluno na própria disciplina, na parte cognitiva, do que aquele que fica mais focado em dar o conteúdo.
Apesar dos hemisférios do nosso cérebro responsáveis pela parte racional e emocional serem iguais em termos de tamanho, proporção e importância, parece que não conseguimos acessar o lado cognitivo quando estamos com o nosso emocional perturbado. Então é muito importante cuidar de forma intencional do lado emocional com um tempo dedicado e com pessoas preparadas. Não é que nunca mais teremos momentos de ansiedade na vida, mas sabendo como lidar e reequilibrar o nosso emocional, conseguimos nos reestruturar.