Sabedoria ancestral, juventude negra e caminhos acadêmicos em debate
Encontro em SP destacou como a luta do movimento negro construiu saberes, abriu caminhos e segue fundamental para ampliar oportunidades para as juventudes
por Ana Luísa D'Maschio
24 de setembro de 2025
Na celebração dos 35 anos do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), no dia 17 de setembro, a mesa “Circularidade do passado, presente e futuro: a educação como prática política para a juventude negra” reuniu pesquisadores, educadores e militantes para discutir o papel histórico do movimento negro na educação e os desafios contemporâneos para a emancipação das juventudes. O encontro integrou a programação dos “Diálogos Antirracistas – CEERT 35 anos: Construindo um Futuro Ancestral.”
A pedagoga e antropóloga Nilma Lino Gomes, no livro O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação, lembra que, após a abolição, a população negra já compreendia a educação como caminho fundamental para conquistar oportunidades de trabalho.
Essa reflexão inspirou o debate, que relembrou a escola como espaço de disputa desde a Proclamação da República (1889), quando leis e decretos proibiam negros de frequentar a rede pública. Experiências como o Teatro Experimental do Negro, fundado pelo dramaturgo, poeta e escritor Abdias do Nascimento nos anos 1940, foram citadas como exemplos de mobilização comunitária pela alfabetização e contra a exclusão.
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Entre os participantes da mesa estavam Antônio Carlos (Billy) Malaquias, doutorando em Geografia Humana pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do CEERT; Cristina Teodoro, professora da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira); Chindalena Ferreira, educadora e militante; Luanda Mayra, coordenadora da área de Juventudes Negras do CEERT.
A proposta foi valorizar a memória histórica da luta do movimento negro e, ao mesmo tempo, projetar caminhos para o fortalecimento da educação e da justiça social.
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Papel da escola
Billy ressaltou que a educação sempre esteve no centro das pautas do ativismo negro. “O tema da educação sempre foi um tema que o ativismo negro abraçou, priorizou, ainda que de uma maneira crítica no passado. Entendemos que a escola é um lugar de emancipação”, afirmou. Ele também destacou o papel do CEERT em dar visibilidade a práticas pedagógicas inovadoras, como o Prêmio Educar com Igualdade Racial, que reconhece professores, incentiva mudanças escolares e políticas públicas.
A professora Cristina Teodoro destacou o impacto da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Para ela, o marco legal é um divisor de águas, por sistematizar pela primeira vez a discussão sobre relações raciais e seus efeitos educacionais.
“O Estado brasileiro precisa reparar o racismo sofrido pela população negra, e a educação tem um papel fundamental diante disso”, disse.

Políticas atuais e equidade racial
As falas também apontaram para questões contemporâneas, com destaque para a implementação da PNEERQ (Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola), lançada pelo MEC (Ministério da Educação) em 2024.
Rita Maria Zerbinatti Rato, coordenadora da política e técnica da Secretaria de Educação de SP, destacou que, embora recente e ainda com fragilidades, a iniciativa é essencial. Para ela, a efetivação exige mais do que normas no papel: demanda mudança de mentalidade e de cultura. “Sem educação isso não acontece. Sem dialogar diretamente com professores e profissionais da educação, não haverá transformação”, afirmou.
Valéria Olímpio, agente de governança regional da PNEERQ, ressaltou o papel do Mipid (Observatório de Memória, Identidade e Promoção da Igualdade e da Diversidade Étnico-Racial), em Campinas (SP), como espaço fundamental para transformar acesso em pertencimento. Ela relacionou a experiência à chamada “sociologia das ausências”, análise crítica que evidencia como determinados saberes, culturas, práticas e sujeitos foram silenciados e invisibilizados pela lógica dominante (colonial, eurocêntrica e patriarcal).
“Não dá para falar de aprendizagem só em termos de números. É preciso pensar numa escola onde a criança negra se sinta pertencente, onde ela seja vista, percebida e acolhida”, reforçou.
Juventudes negras e novos protagonismos
Luanda Mayra, responsável pelo Programa Prosseguir, destacou como as ações afirmativas abriram portas para novas formas de protagonismo. “As ações afirmativas trouxeram a possibilidade de ocupar outros espaços e de trazer o nosso corpo enquanto matéria de atravessamento. Precisamos construir outros futuros que não sejam tão angustiantes, promovendo o bem viver”, afirmou.
Chindalena Ferreira compartilhou vivências de racismo na escola, como a fala de um colega branco no ensino médio que dizia que negros só poderiam “vencer pela força física ou pela música”. Para ela, essas experiências impulsionaram a busca por formas coletivas de mobilização: “Nós juventudes passamos a nos organizar para reivindicar e criar nossas próprias narrativas.”
A jornalista Alana Barbosa reforçou a importância do Programa Prosseguir como espaço para construir “outras narrativas” e romper com a “educação hollywoodiana” que, por muito tempo, prometeu futuros prontos e idealizados, mas que não dialoga com as realidades, os desejos e as lutas da juventude negra.
O diálogo intergeracional também foi apontado como um dos pilares para sustentar o futuro da luta antirracista. A professora Cristina Teodoro trouxe o conceito africano de Sankofa, que ensina a olhar para trás e resgatar a memória para construir o presente e o futuro. “É necessário compreender de onde viemos, a trajetória das nossas lideranças e as lutas que travaram para que hoje tenhamos direitos”, disse.
Já Billy Malaquias resumiu a importância da persistência: “É preciso continuar a luta, mas também sorrir.”

Políticas estruturantes e futuro
Uma das convidadas do evento, Zara Figueiredo, secretária da Secadi/MEC (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação), sinalizou a importância de consolidar a PNEERQ, como política de Estado.
Ao apresentar os resultados da implementação, ela foi categórica: “A gente não sensibiliza CNPJ. Sensibilização funciona para o CPF, para a pessoa física. Para instituições, é preciso indução”.
Segundo Zara, diante das assimetrias do federalismo brasileiro, apenas atrelar recursos ao cumprimento da política garantiria a adesão das redes. No PAR 2024 (Plano de Ações Articuladas), o MEC incluiu uma trava: redes que não ofertassem formação em educação antirracista ficaram impedidas de executar recursos federais. O resultado foi a adesão de 100% das redes estaduais e 97,5% das municipais.
“Não é que todas quisessem, de imediato, fazer uma política antirracista. Foi a indução financeira, sobretudo no ponto mais frágil das redes, que é o recurso, que garantiu essa adesão quase total. A educação antirracista precisa ser estruturada como política de Estado, não pode depender da boa vontade das redes ou de professores isolados”, reforçou.
Novos recursos e instrumentos
Entre as medidas de apoio, foram lançados dois novos programas: o PDDE-ERER (Programa Dinheiro Direto na Escola para Educação para as Relações Étnico-Raciais) e o PDDE-Quilombola (Programa Dinheiro Direto na Escola para Educação Escolar Quilombola). O modelo transfere recursos diretamente às unidades executoras das escolas, sem necessidade de intermediários. Esses valores podem ser aplicados de forma rápida e flexível, incluindo a destinação de R$ 53 milhões para planos de ação voltados à equidade racial, com repasses proporcionais ao número de estudantes negros matriculados.
Outro destaque da pasta foi o Selo Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, criado para reconhecer redes de ensino comprometidas com práticas antirracistas. Em sua edição inaugural, em 2025, 436 secretarias de educação foram contempladas (428 municipais e 8 estaduais), e 20 programas inovadores receberam apoio financeiro de R$ 200 mil cada.
| O legado de Petronilha |
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Referência intelectual e política na valorização da cultura afro-brasileira, Petronilha nasceu em Porto Alegre (RS) e formou-se em Letras pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Iniciou a carreira como professora de francês no Colégio de Aplicação da instituição e foi docente da UFRGS, da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), onde se aposentou em 2012 e recebeu o título de Professora Emérita. Entre 2002 e 2006, atuou como conselheira do CNE (Conselho Nacional de Educação) e foi relatora do parecer que estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Em 2024, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela UFRGS. |
Saberes tradicionais
Zara também destacou a centralidade da formação de professores para a consolidação da política. Atualmente, existem mais de 262 mil vagas abertas em cursos sobre relações étnico-raciais, em parceria com universidades e institutos federais. Apesar do avanço, ela alertou: “Educação antirracista precisa ser sistêmica. Não pode depender do professor que quer ou não fazer o curso”.
Entre as novidades, citou o Partiu IF, ação afirmativa inédita na educação básica, que já atende estudantes negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência em 640 campi dos Institutos Federais. Também apresentou a Escola Nacional Nêgo Bispo de Saberes Tradicionais, criada para inserir de forma efetiva saberes indígenas, afro-brasileiros e quilombolas nos currículos da educação básica e superior, apoiando mais de 100 projetos em todo o país e fortalecendo a aplicação das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008.
Ao concluir, Zara ressaltou as palavras do pensador Nêgo Bispo, reforçando a ligação entre passado, presente e futuro:
“Assim como a árvore finca raízes na terra, precisamos olhar para o passado sem perder a atenção ao presente. A educação antirracista é tarefa de todos nós, para garantir que cada criança e jovem negro se reconheça, pertença e tenha assegurado o direito de aprender.”





