Seminário do MEC defende uso crítico de tecnologia e atenção às diversidades regionais - PORVIR
Geovana Albuquerque/Agência Brasília

Inovações em Educação

Seminário do MEC defende uso crítico de tecnologia e atenção às diversidades regionais

Especialistas reforçam a necessidade de integrar a tecnologia de forma significativa e eficaz no ensino, com atenção à realidade na qual as escolas estão inseridas e ao currículo voltado para o uso crítico da educação digital

por Vinícius de Oliveira ilustração relógio 11 de março de 2024

A primeira edição do ciclo de seminários e oficinas “Educação Digital: Caminhos Inclusivos para a Transformação Curricular na Educação Básica”, promovida pela Secretaria de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação), revisou as recentes diretrizes sobre o uso de tecnologia nas escolas e detalhou objetivos de políticas públicas. Ao longo dos painéis, sobressaiu o discurso de que agora o foco se expande não só para conectar as escolas à internet, como também à realidade em que estão inseridas e que existe um direcionamento do esforço para que currículos estejam comprometidos com o uso crítico das tecnologias.

Com a participação de representantes do governo federal, do CNE (Conselho Nacional de Educação) e de secretarias de educação, o evento destacou a importância de integrar o ensino de computação aos currículos escolares ao mesmo tempo que ponderou que redes precisam ter suas especificidades atendidas, dadas as enormes lacunas de conectividade, acesso a dispositivos e dificuldade de professores em adotar recursos digitais para a aprendizagem. 

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Objetivo das políticas públicas

Alexsandro Santos, diretor de políticas e diretrizes da educação integral básica do MEC, abriu o evento destacando a necessidade de se integrar a educação digital aos currículos, enfatizando que a tecnologia é fundamental para preparar os alunos para os desafios do futuro.

Em sua fala, Alexsandro afirmou que é imperativo garantir conectividade de qualidade em todo o território brasileiro, especialmente em regiões com grandes disparidades. “Quando a gente desenha uma política de escolas conectadas como essa que estamos propondo, se temos o compromisso em construir uma nação justa, equitativa, soberana, precisamos pensar como essa agenda enfrenta desigualdades ao invés de reproduzi-las.” 

O representante do MEC também mencionou que é importante que se tenha uma visão flexível para a implementação. “Não basta colocar algo na lei para que isso se torne realidade no dia seguinte. É muito mais interessante, pelo menos as pesquisas mostram isso, que a gente construa as capacidades institucionais onde a política será implementada, respeitando a autonomia e a flexibilidade que uma realidade tão diversa como a nossa exige.”

Alexsandro lembrou que o modelo de ensino atual não pode ignorar a educação com tecnologias. “Não se trata mais de uma educação para as tecnologias; essa fase já passou”, disse. “Agora, é uma educação com as tecnologias, sem medo delas, pois também já tivemos uma época em que a discussão pedagógica enxergava as tecnologias como uma ameaça ao processo pedagógico ou à relação professor-aluno, imaginando que essa relação pudesse ser prejudicada ou alterada pela emergência das tecnologias”. A realidade se impõe de outra forma, segundo o representante do MEC. “Nunca houve tanta necessidade de bons professores e professoras, especialmente para auxiliar os estudantes a compreender as relações éticas, políticas e técnicas com as tecnologias.”

O esforço do CNE (Conselho Nacional de Educação) e outros atores do ecossistema de educação para integrar a educação com as tecnologias nos documentos nacionais de orientação curricular, incluindo a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), também foi destacado por Alexsandro. Um dos princípios da política para o uso de tecnologias, segundo ele, precisa ser a abordagem inclusiva que considera a diversidade de experiências e necessidades dos estudantes. “Se a nossa sociedade é marcada por desigualdade socioeconômica, a educação com as tecnologias precisa dizer como vai lidar com esse dado. Se ela é marcada por desigualdades regionais, como vai lidar com esse dado e como ajuda essa agenda de equidade educacional a avançar com força.

O representante do MEC lembrou recentes regulamentações, como a Política de Inovação e Educação Conectada, de 2021, o anexo do Currículo de Computação à BNCC e, mais recentemente, em 2023, a Pned (Política Nacional de Educação Digital), que demandam estruturações, mas que apontam caminhos a serem seguidos por lideranças educacionais nos mais diversos níveis.

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Histórico da legislação em tecnologia

Em uma fala que destacou o processo de formulação dessas recentes leis que impactam o ensino e a aprendizagem nas escolas de educação básica, Ivan Siqueira, professor titular na UFBA (Universidade Federal da Bahia), doutor e mestre em Letras pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador nas temáticas de educação e inteligência artificial, descreveu seu papel como relator e o regime de colaboração desenhado para que a BNCC Computação ganhasse forma. “Trabalhamos com mais de 150 profissionais ao longo desse período, de todas as cinco regiões do país, envolvendo mais de 40 municípios, desde 2016”.

Ivan lembrou que desde os anos 1970, o Brasil desenvolveu uma tradição em educação e pós-graduação em computação. Diante de avanços recentes da sociedade e as novas demandas do mercado de trabalho, especialistas chegaram a um consenso de que a formação em tecnologia deveria começar na educação básica, o que deu origem à BNCC Computação. Segundo Ivan, o grupo de profissionais que incluiu a Sociedade Brasileira de Computação, acadêmicos de diversas disciplinas e universidades trabalhou na análise de programas educacionais tecnológicos desenvolvidos ao longo das últimas três décadas. Esse trabalho coletivo resultou na elaboração de um documento inicial, submetido ao escrutínio público. O projeto, apoiado por instituições internacionais e baseado no estudo de experiências em pelo menos 20 países (como Inglaterra, Estados Unidos, Colômbia e Argentina), visava não apenas estabelecer normas, mas oferecer exemplos práticos e referências para a implementação efetiva da tecnologia na educação, algo que não estava presente nas diretrizes anteriores.

“A recente discussão não se limitou apenas aos especialistas em Computação e Pedagogia, mas se estendeu a profissionais de diversas áreas, incluindo representantes de redes públicas e privadas de todo o espectro educacional brasileiro”, descreve. Entre as áreas que ainda precisam de melhoria, o professor da UFBA destaca as orientações relacionadas às modalidades educacionais, com seus diferentes contextos sociais e culturais. 

“Alexsandro destacou com acerto a importância de desenvolver soluções tecnológicas para questões indígenas, um movimento observado internacionalmente em locais como Nova Zelândia e Austrália, onde programas envolvem as populações indígenas no desenvolvimento de aplicativos para a preservação de línguas sem escrita, resultando em empoderamento”, disse Ivan, que vê nestes exemplos a justificativa para que políticas de tecnologia educacional se adequem às necessidades de quilombolas, populações ribeirinhas e encarceradas, entre outras, respeitando as singularidades regionais e as respectivas disposições legais.

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Cuidados na implementação

Em sua participação, Luiz Roberto Curi, presidente do CNE, defendeu que a implementação de políticas de tecnologia não deve ser impositiva. Uma diretriz não é uma simples ordem e sua aplicação pode variar entre as redes de ensino e até mesmo dentro das escolas de uma mesma rede. Por conta da complexidade de sua implementação, Luiz Roberto destaca a importância de políticas institucionais adaptáveis nas escolas. Para ele, é ingênuo pensar que as escolas funcionarão meramente como extensões das secretarias de educação, sem considerar suas características únicas de gestão e formação de professores, além de expectativas distintas.

Ao analisar o debate atual em torno da educação da necessidade urgente de integrar a tecnologia de forma significativa e eficaz no ensino, o presidente do CNE lembrou as dificuldades que professores enfrentam o desafio de adaptar suas metodologias para incluir o aprendizado digital. Por isso, sugere uma reflexão sobre a formação continuada de docentes que deve estar alinhada às diretrizes das escolas e redes de ensino, considerando a diversidade de realidades educacionais. Gerenciar esse contexto é particularmente desafiador. Por isso, Luiz Roberto enumerou alguns questionamentos: 

“Essa heterogeneidade precisa ser bem gerida e administrada para que haja impacto significativo. Por que esse esforço todo? Para modernizar? Por que todo esse empenho para simplesmente atualizar os estudantes, assim como foi feito no passado com as compras de equipamentos? Qual o impacto real no aprendizado? Qual o impacto na progressão do estudante, da alfabetização ao ensino médio, mencionou que 40% dos estudantes não chegam ao ensino médio. Nesta etapa, 40% desistem de estudar logo no primeiro ano. E dos que se formam, somente 20%, em média, prosseguem para o ensino superior.

Segundo Luiz Roberto, ao discutir a implementação de novas políticas para tecnologia também é imperativo que gestores não limitem seus esforços à aquisição de equipamentos, mas que busquem melhorar os resultados educacionais para todos os estudantes, especialmente aqueles de baixa renda.

“Queremos que o aluno aprenda mais, mas que aprenda de acordo com os requisitos contemporâneos de inserção na sociedade e com uma ampla base cultural. Isso porque a digitalização é também uma expressão cultural e deve ser inserida na escola dessa forma”, afirmou.

“Se existe esse divórcio entre educação e cultura, e se os alunos não percebem que aprender biologia é, de certa forma, aprender sobre a realidade da sustentabilidade natural de um país, a ecologia e as perspectivas positivas da diversidade da vida, então há um problema. Se eles não associam o aprendizado em história com arqueologia e sociedades antigas, ou não veem a geografia sob a perspectiva de ocupação dos mares e seu impacto na economia, como a digitalização inserida na disciplina poderá ser eficaz? Poderá até fazer com que aprendam mais rápido ou com mais conforto, mas qual será o impacto disso quando saírem da escola, ou mesmo durante sua educação, junto às suas famílias e comunidades?”, argumentou.

A política de educação com base tecnológica será bem-sucedida quando não apenas sirva de suporte à leitura e a decodificação de símbolos desde a infância até o ensino superior, mas também promova uma compreensão profunda dos textos. Por isso, o líder do CNE argumenta que a digitalização precisa ter um propósito e impacto bem definidos, visando a efetividade. 

Lucas Fermim/Secretaria Estadual de Educação do Paraná Horizonte de políticas de conectividade deve considerar o impacto na vida do estudante, em sua família e comunidade.

Currículos de tecnologia na prática

Luiz Miguel Martins Garcia, dirigente municipal de Educação de Sud Mennucci (São Paulo) e representante da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), resgatou uma pesquisa realizada pelo CIEB (Centro de Inovação para Educação Brasileira) realizada em parceria com a Fundação Telefônica Vivo e a Undime. Com 1.665 respondentes, o levantamento demonstra a necessidade de compreensão e utilização dos recursos das tecnologias digitais e o conhecimento sobre educação digital e conceitos digitais. “Precisamos iniciar essa discussão quebrando o paradigma de que a conectividade é indispensável para o desenvolvimento de trabalhos, especialmente considerando a educação infantil, onde defendemos que quanto mais distantes das telas as crianças estiverem, melhor”, disse Luiz Miguel.

Os achados da pesquisa caminham no sentido de mostrar e reafirmar as desigualdades e a necessidade de equidade, permitindo mapear e identificar lacunas e demandas. “Um dado alarmante é que uma em cada cinco redes municipais no Brasil não inclui ensino de tecnologia e computação em seus currículos dos anos iniciais. Destaca-se a importância de não pensar a formação apenas no uso de software, mas voltar ao processo conceitual e ao desenvolvimento que isso pode trazer aos alunos”, afirmou.

Diana Daste, cientista social colombiana que ocupa o posto de diretora de Educação e Cultura e de vice-presidente do British Council, uma agência do Reino Unido presente no Brasil desde 1945 atuando nas áreas de arte, educação e cultura, trouxe exemplos do que foi feito na Inglaterra e na Colômbia para a inserção da tecnologia nos currículos escolares.

A experiência britânica em educação digital considera o letramento digital e a tecnologia da informação como pilares fundamentais. Desde 2014, o currículo integra o pensamento computacional, promovendo a resolução de problemas desde a infância. A avaliação de 2018 pela Royal Society (sociedade científica e a academia nacional de ciências do Reino Unido) apontou para a necessidade de um maior foco na implementação e na formação de professores. Na ocasião, também foi identificado que o acesso desigual à educação, especialmente à digital, persiste, influenciado por raça, gênero e localização geográfica. Nesse cenário, equipamentos públicos além da escola, como museus, foram incorporados à política com o objetivo de reduzir essas desigualdades.

Na Colômbia, que assim como o Brasil também registra um déficit de profissionais em tecnologia, o currículo educacional permite grande autonomia regional. No país vizinho, a colaboração entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Educação focou no letramento digital para atender à demanda do mercado de trabalho e promover a igualdade de gênero nas carreiras STEM (sigla em inglês usada para designar o campo do conhecimento composto por ciências, tecnologia, engenharia e matemática). O programa “Coding for Kids” concentrou-se na formação de professores e no desenvolvimento de materiais didáticos. Entre seus resultados, foram observadas melhorias na confiança e no conhecimento dos docentes, especialmente entre as professoras.

E como esses exemplos podem inspirar o Brasil? Para a representante do British Council, a interação com a BNCC sugere a importância de tomar decisões baseadas em evidências, uma vez que a pesquisa é vital para identificar metodologias eficazes para ensino e aprendizagem. “Apesar da falta de um currículo nacional e dos desafios por diretrizes mais claras, há oportunidades na autonomia para fomentar a criatividade na prática. No Reino Unido, o processo de desenho e adaptação curricular é contínuo, com ênfase na formação de professores, considerada chave para o aprendizado dos estudantes”, declarou. 

Já Roni Miranda, secretário de Estado da Educação do Paraná e representante do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) no evento, destacou que a discussão sobre adoção de tecnologias educacionais é feita hoje de forma bem abrangente, incluindo a integração de sistemas educacionais, formação de professores em competências digitais e utilização de tecnologia na educação em parceria com o MEC e parceiros da sociedade civil.

No exemplo do Paraná, o secretário cita a incorporação de pensamento computacional como componente curricular, focando em programação e robótica. A rede também realiza um trabalho de formação continuada que tem como premissas a identificação de professores com habilidades digitais para atuarem como multiplicadores entre seus pares.

Ao falar sobre a importância de respeitar as diferenças regionais e culturais na educação, o secretário defendeu o trabalho a partir de uma matriz curricular unificada para evitar desigualdades. “Nós temos indígenas e quilombolas entre nossos estudantes, e respeitamos essa diversidade. Partimos de uma matriz curricular, de um currículo de estado, de unidade de rede, para chegar ao ponto de trabalhar com tecnologias. Pense, se eu deixasse isso como autonomia de cada escola, das 2100 escolas, 500 estariam trabalhando com tecnologia. As escolas do campo já ficariam de fora, assim como as quilombolas e as indígenas, e isso começaria a gerar desigualdades dentro do sistema educacional da própria rede do estado do Paraná”, explicou.


O ciclo de seminários e oficinas promovido pela Secretaria de Educação Básica do MEC será realizado entre março e junho. Os eventos contarão com duas vias de trabalho, sendo uma informativa (online) e outra colaborativa, para a construção de caminhos de implementação da educação digital nos currículos das redes de ensino. De acordo com o MEC, isso será feito em parceria com técnicos das áreas de tecnologia, currículo, avaliação, formação de professores e materiais didáticos das secretarias de educação. 

Os seminários e as oficinas contarão com especialistas, pesquisadores, professores e gestores das redes de diferentes regiões do Brasil. Eles vão discutir, dialogar e apresentar contribuições a serem sistematizadas para orientar as redes de ensino na implementação do eixo de educação digital escolar, da Política Nacional de Educação Digital e da BNCC Computação, que complementa a Base Nacional Comum Curricular. As oficinas serão organizadas em parceria com a Undime nos encontros regionais. 


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currículo, tecnologia

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