Vera Eunice e os pedidos de Carolina Maria de Jesus - PORVIR
Alice Vergueiro / Jeduca

Inovações em Educação

Vera Eunice e os pedidos de Carolina Maria de Jesus

Em conversa durante congresso de jornalismo de educação, a filha da escritora Carolina Maria de Jesus disse que escreverá uma nova biografia da mãe

por Ruam Oliveira ilustração relógio 13 de setembro de 2022

Antes de morrer, Carolina Maria de Jesus, a autora de “Quarto de Despejo”, deixou uma série de pedidos por escrito para sua filha, Vera Eunice. Um deles era que ela deveria virar professora. 

“Minha mãe estudou somente um ano e meio. Nunca mais sentou numa cadeira de escola. Mas ela se aprimorou, lia muito… Não passava numa banca de jornal sem ler. E valorizava muito o professor”, disse Vera à jornalista Semayat Oliveira e a um grupo de jornalistas e comunicadores reunidos no Teatro Fecap, em São Paulo, no último dia 12 de setembro, durante o 6º Congresso de Jornalismo em Educação, promovido pela Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação). 

Vera levou o pedido a cabo. Hoje professora de educação básica, por onde passa vê o nome de sua mãe reconhecido. Ela recorda de certa vez em que retornou à favela do Canindé, em São Paulo, cenário de “Quarto de Despejo”, onde Carolina a criou ao lado de dois irmãos: “Minha mãe achava que [a favela] tinha acabado, e eu achei também. Mas não. É menor, mas continua a mesma coisa”. 

Quando Vera retornou à favela do Canindé, depois de crescida, moradores recusaram a entrada da equipe de filmagem de uma emissora de São Paulo que a acompanhava Vera, mas ao ouvirem que quem gostaria de entrar era a filha de Carolina, o cenário mudou.

“A minha mãe muda muito as pessoas, principalmente as pessoas negras”, contou a professora.

Foi quando lá viviam, no final da década de 1950, que a mãe publicou o livro que a tiraria do anonimato. “Diziam que foi o Audálio quem encontrou Carolina, mas eu digo que foi a Carolina quem encontrou o Audálio”, diz  Vera. 

Ela se refere ao jornalista e escritor Audálio Dantas (1929-2018), a quem Carolina deu um jeito de chamar a atenção para que ele lesse seus cadernos. Em 1958, Audálio publicou trechos do diário no jornal Folha da Noite, e, em seguida, na revista Cruzeiro. Para ele, não fazia sentido escrever uma reportagem sobre a favela se os textos de Carolina tinham muito mais propriedade, como lembra Eliane Brum neste texto.  

O jornalista auxiliou a escritora na publicação dos diários que se tornaram o “Quarto de Despejo”, que só na semana de lançamento vendeu cerca de 10 mil cópias. Eles mantiveram contato por longos anos. 

Nas escolas

Vera Eunice lembra que “Carolina Maria de Jesus” dá nome a muitas escolas. Mas confessou que nem sempre se sente confortável em aceitar tais pedidos. 

Um dos mais recentes aconteceu também lá no Canindé. A comunidade se reuniu em um abaixo assinado pedindo que o nome de uma escola local fosse alterado. O diretor entrou em contato com Vera para explicar e lhe pedir autorização. Ela de início recusou, mas aceitou um convite para visitar a escola e conhecer as pessoas. 

E foram essas pessoas que convenceram a professora de que o nome deveria ser mudado. 

“Uma mulher negra bem alta chegou até mim e falou: ‘Nós queremos mudar o nome da escola, porque o Infante Dom Henrique era um homem que separava os filhos das mães escravizadas quando chegavam aqui. A gente não quer isso'”, contou Vera. 

O outro argumento que essa mesma mulher usou foi reforçar que era estudante de geografia, ao mesmo tempo em que ia apontando: “Aquele ali estuda história, aquela artes…”. E nesse encontro Vera percebeu a importância dessa mudança de nome e do impacto que sua mãe ainda tem na vida de pessoas pretas e periféricas. 

A jornalista Semayat Oliveira (esquerda) e a professora Vera Eunice. Foto: Alice Vergueiro / Jeduca.

A Vera professora

“O que faz com que Vera Eunice ame tanto a profissão?“, perguntou Semayat. E ela explicou: “Eu tenho um aluno chamado Nicolas. Ele sempre chegava de manhã na escola chutando e brigando. E reclamando que tinha fome”. A criança somente se acalmava depois de tomar o próprio lanche e o lanche da professora. E isso se repete com outras crianças. 

“Eu me vejo ali nesses alunos”, disse Vera. “Minha mãe costumava dizer que o alimento é o motor do corpo humano, e é verdade. Quem estuda com fome?”, questiona. Ela leciona na Escola Municipal de Educação Infantil na Vila Rubi, em São Paulo.

A fome é um dos principais temas abordados pela escritora de “Quarto de Despejo”.  Vera comenta que, infelizmente, muito do que vê nos livros da mãe continua acontecendo na atualidade

Uma nova biografia

A professora também revelou que não se agrada das duas biografias de sua mãe que foram lançadas. A mais recente delas, escrita por Tom Farias, do ponto de vista de Vera “faltou pesquisa”. Ela não considera uma obra ruim, mas não inteiramente fidedigna. 

Agora, a filha da escritora disse que irá escrever a Carolina “como ela a vê”. A ideia é desmistificar alguns pontos acerca da vida e personalidade da escritora, como, por exemplo, o fato de ela ter sido ou não casada. “Minha mãe não era casada. Ela sempre dizia: ‘Qual o homem que vai querer uma mulher que escreve a noite toda?'”, comentou. 

“Carolina era sensacionalista? Não era. Ela não tinha tempo”, destaca a professora. 

Além do pedido para ser professora, Vera tenta cumprir outras tarefas deixadas pela mãe. “Ela me pediu para propagar a memória dela. E que no túmulo dela tivessem livros e não flores. Me pediu para nunca vender o sítio. Que os inéditos fossem guardados. E que eu fosse atrás dos manuscritos”, relembra. 

Esta tem sido a principal tarefa de Vera em relação à sua mãe. Resgatar a memória da escritora e torná-la conhecida, principalmente para novas gerações. “As pessoas precisam saber como ela escrevia, que ela escrevia num papel de pão”. 

Não se trata de uma tarefa fácil, no entanto. Isso porque Carolina escrevia compulsivamente e, também, entregava seus manuscritos para que outras pessoas lessem e muitos deles não retornavam. 

Atualmente, a editora Companhia das Letras é a responsável pela publicação da obra de Carolina, que faleceu aos 63 anos em um sítio em Parelheiros, extremo sul da capital paulista, esquecida e ignorada pelo cânone literário, que agora se vê na obrigação de trazê-la de volta à circulação, dada sua importância e atualidade. 

Assista à conversa na íntegra (É necessário ter cadastro no site)


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ensino fundamental, ensino médio, literatura

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