Jogo criado na UFRGS promove aventura pela história da química
Capitaneado por professor, projeto conta com a participação de alunos de diferentes cursos da universidade pública
por Camila Leporace 4 de abril de 2018
Uma viagem pelas Américas Central e do Sul para, junto com os povos que habitavam essas regiões antes dos espanhóis, conhecer os elementos químicos e as suas transformações. Essa é a proposta narrativa de um jogo capaz de tornar o estudo da química e de sua história muito mais divertido, leve e contextualizado. Para além de uma memorização desconectada, que muitas vezes vira “decoreba”, “Ferreiros e Alquimistas” usa recursos de narrativa e design, despontando como um recurso pedagógico multidisciplinar.
O jogo foi desenvolvido por um grupo pertencente ao NAPEAD (Núcleo de Apoio Pedagógico à Educação a Distância da UFRGS), dedicado a produzir infográficos, vídeos e outros materiais audiovisuais para serem usados nos cursos de educação a distância da instituição. Capitaneado por Marcelo Eichler, professor de química na UFRGS, o time conta com os alunos da graduação da UFRGS e bolsistas do núcleo Lucas Corrêa, 24, Gabriel Machado Figueiredo, 24, e Christian Severo Garske, 28. Lucas, game designer do projeto, estuda design de produto; Gabriel estuda ciências da computação, enquanto Cristian cursa design visual.
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A imersão no mundo dos elementos químicos começa na primeira fase, chamada Tumbaga, que aborda o processo metalúrgico capaz de gerar a liga de mesmo nome, composta por ouro e cobre. Essa era a liga mais usada entre os ourives pré-hispânicos do território colombiano. A personagem comandada pelo jogador precisa realizar uma série de tarefas enquanto recolhe o material necessário para produzir a liga. Cada ação se dá em um determinado local: lagos, montanhas, cavernas e a vegetação ao seu redor.
Todas as tarefas se desenvolvem no contexto de três objetivos que precisam ser cumpridos para que a fase se complete: a produção de um espelho de tumbaga, a partir da coleta e do polimento do ouro e do cobre para que o material se torne reflexivo; a confecção de um colar de tumbaga, repetindo os processos de pegar ouro e cobre mas também coletando cera de abelha; e a produção de uma escultura de tumbaga, para a qual o jogador precisa ir atrás de uma referência visual, coletar cobre e ouro, a cera e ainda argila, para fazer um molde. Para que a personagem saiba o que precisa fazer, ela conversa com um ancião que habita o local. As instruções são lidas também pelos jogadores.
A inspiração para esse roteiro vem do povo Tayrona, o qual ocupou várias regiões ao norte da Colômbia e manipulava a liga de tumbaga, cuja composição contém 95% de cobre e 5% de ouro. Na mistura dos dois elementos, ela parece ser feita apenas de cobre, dada a pequena quantidade de ouro em sua formação. Mas os tayronas descobriram que, se levassem o material a uma infusão feita com uma planta chamada chulco, a liga metálica teria a sua superfície corroída e acabaria perdendo os átomos de cobre. Restando uma predominância dos átomos de ouro no exterior do material, o resultado era um reluzente tom de dourado. Assim, ao chegar à Colômbia, os espanhóis perguntavam-se de onde havia surgido tanto ouro, até que descobriram que não era disso que se tratava – o que, aliás, os deixou bem irritados com o povo local. E é por isso que a liga é conhecida como “ouro de tolo”.
Como o professor Eichler ressalta, essa história é contada no Museu do Ouro, em Bogotá. Ele visitou o local e, na ocasião, pensou que ela seria bastante interessante e bonita para ser contada. Além do museu, o livro também intitulado “Ferreiros e Alquimistas”, de Mircea Eliade, serviu de inspiração para a linha narrativa do jogo. O autor trazia o conceito da alquimia como uma protociência da química moderna, envolta em uma série de mitos que, desde a antiguidade, eram usados para justificar as transformações materiais químicas entre os ferreiros, os artesãos que trabalham com ferro, aço, toda essa metalurgia – conta o professor, que pensou então que seria interessante apresentar a história do surgimento da alquimia ligada aos ferreiros. “A ideia inicial foi produzir um jogo que tivesse uma determinada história e fosse apresentando algumas coisas relacionadas à história da química”, explica.
Os criadores do jogo contam que o seu formato foi pensado para que a dificuldade vá crescendo, em etapas, para dar conta do aprendizado. Assim, uma parte importante da dinâmica, como Lucas e Gabriel destacam, é que o jogador só pode coletar um elemento químico de cada vez. Isso leva o jogador a associar o elemento à ação e ao ambiente em que a busca pelo material aconteceu. Se for preciso encontrar o elemento novamente, é necessário refazer todo o percurso, o que reforça a dinâmica e a aprendizagem.
“Discutimos o que leva a pessoa a lembrar de um processo, em vez de decorar fórmulas”, ressalta Gabriel. Além disso, enquanto desbrava ambientes diversos em busca de elementos químicos, a personagem do jogo vai anotando em um caderno virtual os processos de produção que realiza – o que introduz mais um elemento de narrativa ao jogo. Nas próximas fases, o plano é que o caderno com as anotações seja mantido, para servir de guia e evidenciar a aquisição de conhecimento pela personagem – e também pelos jogadores.
Atualmente, a equipe de “Ferreiros e Alquimistas” está trabalhando na próxima fase do jogo. Dentro da dinâmica de fuga e captura que faz parte também da estrutura, a personagem Tayrona – que ao final do primeiro capítulo é aprisionada e levada para uma ilha do Caribe – viverá novas aventuras nessa ilha, onde outro tipo de metalurgia será tratado, envolvendo armamentos feitos com ferro. O professor Eichler, brincando ao dizer que se trata de um “spoiler”, diz que a segunda fase deverá se chamar Siderito, e que nela a personagem aprenderá metalurgia com ferro vindo de um meteoro.
Em outro dos capítulos que a equipe planeja desenvolver, seguindo a ideia de volta ao mundo que também compõe a narrativa, a personagem vai chegar à Europa, onde fará uma iniciação para se tornar alquimista – já que, por enquanto, ela é uma ferreira. E as ideias não param por aí: a partir de uma inspiração buscada em São Cosme e São Damião, que eram boticários (ou hiatroquímicos, os precursores da ciência que elevou à química orgânica), a personagem deverá aprender a fazer medicamentos e venenos.
Ainda não se sabe quantas fases ou capítulos o jogo terá ao todo, o que depende de financiamentos, buscados através de editais. Em 2015, o financiamento veio do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul); em 2017 veio da própria universidade e, para 2018 em diante, ainda está em aberto. Em 2017, o game foi finalista em Curitiba da SBGames (Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital), que acontece todo ano, na categoria jogos educativos. Na ocasião, os criadores perceberam que tanto crianças como adolescentes se demonstravam interesse em jogar, por isso consideram-no acessível a todas as idades, desde que os usuários sejam capazes de interagir utilizando o computador e lendo as informações que aparecem na tela enquanto a aventura se desenvolve.
Como o professor e idealizador destaca, o jogo pode ser usado como um recurso multimídia não apenas por professores de química, mas de história, por exemplo. A multidisciplinaridade está, aliás, na mira da equipe, que pretende investir em conceitos da astronomia, física, geometria, da observação das estrelas feitas antes dos equipamentos óticos como lunetas, enfim: criatividade certamente não falta.
Para jogar, acesse o site da UFRGS.
Experiência anterior
Antes de ser idealizador de “Ferreiros e Alquimistas”, o professor Eichler já havia se envolvido na criação de um jogo com fins educacionais, há cerca de quatro anos. Em parceria com Gabriela Perry, do NAPEAD, desenvolveu o XeNUBi, um jogo casual focado na tabela periódica.
O projeto foi um impulso para que diversos departamentos da universidade começassem a investir juntos em projetos inovadores; enquanto isso, o NAPEAD ampliava sua experiência com games. A ideia do novo projeto, de “Ferreiros e Alquimistas”, foi ir além dos casual games, considerados mais simples, envolvendo mais os jogadores e por mais tempo, e sem apresentar conceitos formais em química, como átomo ou molécula.
Vídeo mostra alguns momentos do jogo: