110 anos de Carolina Maria de Jesus: Como a autora pode inspirar planos de aula - PORVIR
Carolina Maria de Jesus. 27 de maio de 1952. Foto de Norberto Esteves. Coleção Arquivo Público do Estado de São Paulo, Fundo Jornal Última hora, São Paulo, ⓒFolhaPress.

Inovações em Educação

110 anos de Carolina Maria de Jesus: Como a autora pode inspirar planos de aula

A obra da escritora mineira segue dialogando com o Brasil. O Porvir conversou com Tom Farias, autor de "Carolina – uma biografia", para entender como levar este legado para a sala de aula

por Redação ilustração relógio 13 de março de 2024

Em 14 de março de 2024, a escritora Carolina Maria de Jesus completaria 110 anos. Com forte teor social, nem todos os escritos da autora viram a luz do dia. Conhecida pela obra “Quarto de Despejo – diários de uma favelada”, famosa em diversos cantos do mundo e traduzida para 14 idiomas, entre eles chinês, japonês, alemão, francês e italiano, Carolina transitou entre gêneros como poesia, autoficção e romance. 

Estima-se que existam, pelo menos, seis romances inéditos, os quais Vera Eunice, filha mais nova de Carolina, junto com um comitê de pesquisadores, busca publicar. 

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Tom Farias, jornalista e autor de “Carolina – uma biografia” (Editora Malê, 402 páginas), argumenta que trazer a obra da escritora mineira, nascida em Sacramento em 1914, pode servir de inspiração para que outras “Carolinas” surjam no país. “A Carolina quebra o conceito de cânone no país”, afirmou o escritor em conversa com o Porvir. É conhecido como cânone literário todas as obras consideradas como as mais valiosas, que fazem parte da alta cultura. 

O estilo dela, contido em uma escrita baseada na maneira como pensava e falava, para Tom mostra às pessoas que se interessar por literatura não é algo só para quem tem uma família estruturada ou acesso aos grandes clássicos. Como exemplo, cita que, nas turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos), a obra de Carolina possibilita que os estudantes se vejam em outros lugares, exercendo funções que antes não viam como possíveis. 

Tom advoga que a escritora deve ser uma referência, mas não deve ser posta como a única escritora negra brasileira. Confira destaques da conversa: 

Porvir – A obra de Carolina Maria de Jesus está em listas de leituras obrigatórias em vestibulares e também no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Qual o peso disso para o conhecimento histórico da figura e obra dela?

Arquivo Pessoal O jornalista Tom Farias. Foto: Acervo Pessoal.

Tom Farias – Primeiro, nós precisamos tirar algumas camadas. Quando a gente fala desse lugar da Carolina, talvez a gente não falasse isso para autores como Clarice Lispector ou Jorge Amado. Ainda encaramos como um espanto [ter a obra dela como leitura obrigatória]. É como se a Carolina não fosse uma escritora e a gente estivesse empurrando-a para ser alguma coisa, entre elas, ter o ofício de escrever.

De alguma maneira, é uma forma de reparação atrasada que o Brasil tem com pessoas como a Carolina. Fico imaginando, no universo de 51% de mulheres que esse Brasil tem, se só existe uma Carolina para contar essa história… Eu fico pensando em quantas Carolinas já enterramos e deixamos de fora desse processo. 

O reconhecimento dessas instituições de ensino superior faz com que se mexa um pouco nessa ideia elitista brasileira na qual as pessoas só podem ser escritoras se vierem de uma família estruturada, burguesa ou branca e não a pessoa que foi moradora de uma favela, que pertenceu a família cuja origem era escravidão brasileira, sabe? Nós do movimento negro, que pensamos a questão racial a partir de nossa africanidade, ficamos muito felizes com essa abertura, mas Carolina não pode ser a única, ela tem que ser referência para outras pessoas. 

Porvir – Os tempos atuais, com grandes esforços dos movimentos negros e a criação de leis voltadas para isso, ampliam a presença de autores e autoras negras? Como isso impacta também a obra de Carolina?

Tom Farias – O contexto social brasileiro não permite isso, nós furamos a bolha. A estrutura social não vai dar margem para que nenhuma pessoa negra se desenvolva, e aí não adianta só o nível superior, porque os acessos são controlados. 

Ou seja, o sistema – tanto pela branquitude quanto pelo processo de proteção que eles têm e que é histórico no Brasil – não permite que você faça isso, mas como a gente não quer esperar, a gente fura a bolha. 

A Carolina demandou essa mensagem lá atrás, nos anos 1960, sendo quase uma “escritora improvável”, como diria o Joel Rufino dos Santos na biografia que ele fez. Improvável para o Brasil, sim, dentro dessa ótica. 

Porvir – De que maneira a obra de Carolina Maria de Jesus explica o Brasil? Como a escola pode se valer disso?

Tom Farias – O que podemos trazer primeiro é que a Carolina quebra o conceito do cânone no Brasil. Ninguém poderia imaginar que uma mulher da origem dela – temos que destacar aqui que se trata de uma mulher negra, mãe de três filhos, sem marido, pobre e vivendo numa favela – pudesse escrever um livro tão impactante como “Quarto de Despejo”, ainda hoje um dos livros mais lidos de uma mulher negra no mundo, na faixa de 6 milhões de exemplares vendidos, publicado em 11 países ao mesmo tempo… 

Um livro de 1960 impacta ainda hoje porque traz questões fundamentais que a sociedade empurra para debaixo do tapete, como o racismo, a violência e o analfabetismo, coisas que os livros didáticos nem sempre trazem.

Levar isso para a rede pública e colocar esse conteúdo nas mãos dos alunos faz com que eles leiam e reflitam sobre o país. Na formação de leitores, há a formação do cidadão, ou seja, da brasilidade e civilidade, e para isso é importante conhecer os dois lados. Não só conhecer os clássicos. 

Porvir -Existem biografias dela para crianças e adolescentes e também outros títulos que a aproxima desse público, como o “Procura-se Carolina”, do Otávio Júnior. Por que Carolina deve ser uma inspiração desde cedo e como os professores do infantil e fundamental podem trabalhar sua obra?

Tom Farias – Você pode contar a história da Carolina do ponto de vista que atinja essas crianças que estão na fase de alfabetização ou no primeiro letramento. É possível contar essa história de uma maneira didática – a pedagogia pode ajudar nesse sentido. Com as pessoas de maior idade eu penso que dá para aprofundar mais. 

Ainda se tem uma imagem da Carolina da favela do Canindé, porque só leem “Quarto de Despejo”. Então quando vocês veem imagens da Carolina é aquela onde ela está em uma situação de pobreza absoluta e de mendicância. Mas existem imagens fantásticas dela, sobretudo quando ela lançou o livro em São Paulo e no mundo inteiro. 

Dentro do aspecto que você falou, alguns livros infantis são muito interessantes, que contam a história de Carolina de um jeito bacana e que podem ser levados para a sala de aula. Quando eu lancei a biografia dela, em 2018, vi algumas crianças vestidas de Carolina, com lencinho na cabeça e tudo, isso me emocionou muito. Fiquei pensando na Vera Eunice, filha mais nova da Carolina, e o quanto ela acompanhava a mãe em todos os seus processos. Ela diz que aos 10 anos ajudava a mãe a corrigir algumas coisas do diário e outros textos que escrevia, porque já tinha uma compreensão de quem era a mãe e todo esse convívio acabou a contagiando. Acho que a infância pode ser contagiada dentro desse aspecto. 

Porvir – Carolina deixou um pedido específico para Vera Eunice, sua filha mais nova: que ela se tornasse professora. Como a autora via a educação?

Tom Farias – Ela chegou a ter uma experiência como professora. Tinha dois meninos na favela do Canindé e começou a dar aula para eles. Foi uma experiência muito rápida… 

A Carolina devotava tudo à educação, isso fez a diferença não só no período da favela do Canindé, como fora de lá. A educação marcou a Carolina quando ela tinha sete anos de idade, em Sacramento (MG), quando ela entrou no Colégio Allan Kardec. Embora fossem apenas dois anos de frequência na escola, ela se contagiou a partir dali e viu a importância da educação, transferindo isso para os filhos. 

A luta da Carolina foi muito grande para manter os filhos na escola. Quando pensamos na questão da educação nos anos 1950 e 1960, podemos imaginar o quanto ela se desdobrou entre o que comer e o que não comer e levar os filhos para a escola. 

A Carolina tinha uma obsessão muito grande pelo estudo e, como ela não pode estudar, transferiu isso para os filhos. Gradativamente viu na Vera Eunice a possibilidade de ser aquilo que ela não conseguiu: uma professora. E a Vera levou isso para a vida. Hoje é professora da rede pública municipal e estadual. Se a Carolina estivesse viva ela ficaria muito feliz com o destino que a filha teve.

Porvir – O que Carolina Maria de Jesus escreveu pode ser utilizado em diferentes idades. Pensando nas turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos), de que maneira a obra dela pode influenciar esse segmento na possibilidade de se tornarem ou não escritores?

Tom Farias – Eu acho que a Carolina abre também uma possibilidade muito grande sobre a ideia de ser escritor. Nossa noção de intelectualidade é subvertida quando a gente começa a ler a obra dela, porque ela escreve como pensa e fala, e isso não quer dizer que seja inculta ou iletrada, pelo contrário, o que é escrever correto? 

Temos que pensar no preconceito pedagógico no Brasil. Ele é fundante do racismo entre nós. Ao tomarem conhecimento do que a Carolina deixou, essas pessoas também vão ter coragem para contar sua própria história. Isso quebra um pouco a muralha de conceitos que o Brasil antes estabeleceu sobre quem pode ser escritor, quem pode ser intelectual ou quem pode estudar no país. 

Porvir – O que educadores têm a ganhar introduzindo os textos de Carolina em suas práticas diárias? 

Tom Farias – Eu penso que os educadores têm tudo a ganhar com autores como Carolina, que falam diretamente a linguagem do povo. A Carolina disse para a Clarice Lispector que ela escrevia muito elegante, e a Clarice respondeu: “Eu posso escrever elegante, mas só você escreve a verdade.” 

Nós estamos precisando da verdade na literatura. A obra de Carolina Maria de Jesus vai trazer elementos para os professores pensarem um pouco fora da caixinha, instituírem uma prática de leitura não pela capa, como aconteceu agora com “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório. Se a gente for ver lá atrás, o Aluísio de Azevedo, com “O Cortiço”, “O Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha, “A Carne” de Júlio Ribeiro… Há séculos nós temos tido livros que propagam essa questão que não é questão do sexo, mas outra… 

Ao terem contato com a obra da Carolina, os educadores podem ampliar os horizontes. A obra dela está aí sendo cada vez mais difundida, com um trabalho maciço dos movimentos negros e de pessoas que estão nas universidades para que ela seja realmente aceita como escritora, não só como uma escritora negra, a escritora de “Quarto de Despejo”, a mulher favelada… Ela conseguiu derrubar muitos muros e ultrapassar muitos preconceitos. O professor poderia também atravessar esses preconceitos e começar a adotar a Carolina como leitura diária.


TAGS

educação antirracista, ensino fundamental, ensino médio, ensino superior

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