Projeto sobre trabalho escravo leva direitos humanos à aula de inglês - PORVIR
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Diário de Inovações

Projeto sobre trabalho escravo leva direitos humanos à aula de inglês

Em São Luís (MA), projeto de educação antirracista conta com apoio da OAB e do Tribunal de Justiça para abordar direitos humanos, leva alunos ao cinema e resulta em jogo de tabuleiro para dialogar com a comunidade.

por Marcélia Leal Silva ilustração relógio 3 de outubro de 2023

Por muitos anos, meus alunos do Centro de Ensino Lucia Chaves, escola de área periférica e rural de São Luís, no Maranhão, não viam propósito em estudar uma segunda língua. Comecei a conectar o conteúdo com a realidade deles, tornando o inglês um idioma atrativo, com aulas que ampliam o protagonismo juvenil.

A Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, e sempre busco aplicar atividades da língua inglesa ligadas à educação antirracista. E o projeto “Escravidão? Aqui, não!” nasceu desse contexto, com atividades voltadas para a turma do 1º ano do ensino médio. É fundamental que os estudantes aprendam desde cedo a história da população negra, e entendam como as violações de direitos precisam ser combatidas.

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Por que falar sobre trabalho escravo

A escola está localizada em uma área de vulnerabilidade social agravada pela oferta precária de emprego, onde muitos jovens da localidade são ludibriados por uma falsa melhoria da situação econômica Vi a necessidade de levar informações para a comunidade escolar sobre trabalho escravo e oferecer a esses alunos informações sobre a temática pode diminuir consideravelmente o uso de mão de obra escravizada na região. Contei com o apoio dos educadores Lidiane Aguiar e Chuelay Nascimento durante o processo.

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Um dos primeiros passos foi distinguir “escravo” e “escravizado”, sendo o último, de acordo com o antropólogo Kabengele Munanga, o termo correto a ser usado. Escravizado indica a situação pela qual a pessoa passou, que a colocou nessa situação. São expressões que precisam fazer parte do aprendizado. E sabemos que o maior número de pessoas escravizadas no Brasil é de pele negra: a cada cinco trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão entre 2016 e 2018, quatro eram negros.

Inclusive, o nome inicial do projeto era “Escravidão? Aqui, não!”. Mas depois entendi que, igualmente ao termo escravo versus escravizado, a palavra “escravidão” concorda com o termo escravo, ignorando os processos históricos sofridos por quem viveu sob esse regime.

Por ser um tema mais voltado às leis trabalhistas e aos direitos humanos, convidamos palestrantes do Tribunal Regional do Trabalho, do Tribunal de Justiça e da Ordem dos Advogados aqui do Maranhão para conversas com os estudantes. Falamos sobre direitos trabalhistas, características do trabalho escravo e fizemos um encontro com a comunidade escolar sobre o tema.


Apoio musical

Para unir o tema ao inglês, escolhi “Redemption song”, de Bob Marley, que faz um paralelo entre a escravidão moderna e tradicional. A atividade exercitou a habilidade oral (pronúncia) e vocabulário. Música é uma ferramenta de grande aceitação por parte dos alunos, por trazer um conhecimento amplo dos aspectos linguísticos e culturais. 

Fizemos também um comparativo entre o inglês falado na Jamaica, terra natal de Bob Marley, e o inglês norte-americano. O patoá jamaicano, ou jamaicano, é uma língua crioula de base inglesa, e conhecer esse idioma trouxe aos alunos a compreensão de sua riqueza linguística e cultural. Também estudamos, em inglês, um texto sobre os diversos tipos de escravidão, a fim de ampliar o vocabulário e a compreensão da temática, destacando tempos verbais, palavras cognatas e, por fim, fizemos uma nuvem de palavras relacionadas à escravidão. 

Cinema como inspiração

Para que o enriquecimento cultural adquirido fora de sala aula fosse contemplado, recebemos o apoio do instituto “Da cor ao acaso”, com a doação de 100 ingressos para os alunos assistirem ao filme “Pureza”, que traz a história de uma personagem interpretada pela atriz Dira Paes, que arruma um emprego em uma fazenda e testemunha o tratamento brutal aos trabalhadores rurais escravizados. O enredo é baseado em fatos reais de uma família maranhense. 

Trailer do filme “Pureza”, disponível para assinantes do Globoplay

O impacto foi imenso para os estudantes, pois muitos deles sequer tinham saído do bairro para outros momentos de socialização – além de morar uma zona rural, eles não têm condições de fazer esse deslocamento e, por isso, não têm acesso à cultura com facilidade. Eles se sentiram valorizados com o convite. Ao término do filme, vimos os alunos chorando, angustiados por saber que aquilo é tão real e por sentirem a emoção de estar dentro do cinema compartilhando as mesmas emoções com pessoas diferentes da sua cor.

Exposição fotográfica

Partindo do enredo do filme, pensamos em produzir um ensaio fotográfico. Eles sugeriram que as fotos, feitas pelo professor Chuelay, fossem feitas na própria comunidade, na Associação do bairro, local aberto, espaçoso e próximo à escola. Os alunos decidiram ser fotografados como se estivessem em diferentes situações: tráfico de mulheres, trabalho infantil, lavoura, trabalho doméstico análogo à escravidão. 

A turma também visitou uma carvoaria e essas imagens foram feitas por uma aluna em seu celular. Os alunos protagonizaram o momento, a fim de não expor qualquer trabalhador. Algumas imagens envolvem o Ministério Público no resgate dos trabalhadores escravizados e isso partiu da própria turma por meio do aprendizado em sala de aula: eles sabiam quem era o órgão responsável pelo resgate.

As fotos foram expostas no pátio da escola, ao lado de painéis com dados estatísticos sobre regiões do Brasil que mais empregam mão de obra escravizada, perfil e porcentagem das pessoas mais vulneráveis ou escravizadas e tipos de trabalho escravo. Os dados e informações foram retirados do InPACTO (Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo) e do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). 

Jogo de tabuleiro

Os alunos pensaram em uma forma de alcançar a comunidade local e propuseram a construção de um jogo de tabuleiro que servisse de aprendizado e posicionamento crítico às diversas situações análogas à escravidão que, muitas vezes, ocorre dentro da comunidade e por falta de conhecimento não sabem identificá-las.

Para que esse material fosse produzido, realizamos uma rifa de uma cesta básica de alimentos para que fossem custeados os gastos, pois não temos apoio financeiro para nenhum projeto. Isso reforçou o papel de cada aluno na construção do conhecimento e no compromisso com o tema.

Trouxemos para o tabuleiro características do trabalho escravo, o ciclo da escravização, possíveis vítimas e o silêncio de muitas pessoas em relação ao assunto, a fim de despertar as pessoas para uma realidade invisível, que às vezes está ao nosso lado. Em sala de aula, a turma desenvolveu perguntas e respostas.

O jogo simula um ciclo difícil de escapar para quem é escravizado como o ciclo de escravização, aprofundando a situação a cada rodada. O jogo possui 35 casas, incluindo a chegada. Podem participar até quatro jogadores na rodada. Cada jogador escolhe um pino, podendo ser vermelho, verde, preto ou amarelo, joga o dado e vai avançando ou recuando (dependendo do que aparece no jogo). Ao atingir as casas vermelhas, o jogador precisa ler a orientação apresentada no próprio tabuleiro. Só avança quem tiver contribuindo para o fim da escravidão. Quem contribui para a disseminação e a manutenção do trabalho escravo, recua. O vencedor é quem chega primeiro à casa final, de cor preta.

Reprodução Jogo de tabuleiro criado em sala de aula

Faça o download do jogo

Alcance das atividades

Quando os alunos são estimulados a construir seu aprendizado e o dos demais, há um retorno positivo. O estudo de qualquer componente curricular só ganha sentido se eles se enxergarem dentro daquele espaço. Raramente um projeto aborda questões sociais dentro do contexto da língua inglesa, e as reclamações frequentes tendem a desqualificar o processo de aprendizado, que muitas vezes é reduzido ao estudo do verbo “to be”. O que busquei foi apresentar outras estratégias e a possibilidade de aprender inglês em escola pública.

A língua inglesa passou a ser valorizada pela forma que foi trabalhada e se tornou significativa, e mostra a necessidade que os alunos têm de se perceber dentro da sala de aula. A turma que desenvolveu o projeto vem apresentando um elevado nível de organização e envolvimento em todas as atividades propostas, o que incentivou com que outros projetos fossem desenvolvidos, tais como o combate à violência doméstica, combate às drogas e o protagonismo negro dentro do espaço escolar.

A prática acima descrita recebeu o prêmio do Tribunal de Justiça do Maranhão por ser o melhor projeto de escola pública do estado em 2023. Fomos convidados a falar sobre o projeto do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão. 

Ribamar Pinheiro/TJMA Entrega do Prêmio Luiz Alves Ferreira “Luizão” de Promoção à Diversidade e Combate à Discriminação 

Levar os alunos a diferentes lugares, como cinemas, bibliotecas e fóruns de justiça, evidenciou o quanto eles estavam alheios a esses espaços, não se reconhecendo como parte da sociedade e jamais imaginando a possibilidade de alcançar profissões de destaque no meio social: viam-se destinados a serviços subalternos. Mostramos que é possível mudar essa realidade, pois o acolhimento recebido de juízes, desembargadores e advogados fez toda a diferença. Eles se identificaram com essas personalidades negras e compreenderam as referências apresentadas. Isso os levou a construir uma nova narrativa: agora sabem que têm o apoio de uma escola, uma equipe e a comunidade externa.

Tudo isso tem fortalecido nosso compromisso de contribuir para uma sociedade justa e igualitária.


Marcélia Leal Silva

Formada em Letras-Inglês pela UESPI (Universidade Estadual do Piauí), atua desde 1996 como professora de inglês. É concursada na rede pública do Maranhão e trabalha com projetos desde 2002. Em 2020, ficou entre os 50 melhores educadores do Prêmio Educador Nota Dez com projeto voltado às questões raciais.

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educação antirracista, ensino médio, Finalista Prêmio Professor Porvir, Prêmio Professor Porvir

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