Educação financeira: alunos simulam profissões e temas da cidade para gerenciar dinheiro
Alunos do 6º e 7º ano do CEPI Francisco Maria Dantas, em Goiânia (GO), planejam a construção da cidade e assumem profissões da vida real para exercitar o gerenciamento financeiro
por Sonia Alexandre Ribeiro 18 de junho de 2024
A preocupação e a vontade de ensinar educação financeira partiu de minha própria trajetória de vida. Sempre tive bastante dificuldade com essa área, e quando eu ainda estava na escola, não tive a oportunidade de aprender o que eram juros, como poderia organizar minhas finanças ou o que fazer para não me atrapalhar em dívidas.
Isso me impulsionou a colocar em prática o projeto “Cidade inteligente na mente”, uma proposta de construção de uma cidade junto com as turmas do 6º e 7º ano do CEPI (Centro de Ensino em Período Integral) Francisco Maria Dantas, em Goiânia (GO), durante as minhas aulas de matemática. O objetivo da atividade, que dura o ano todo, é que os alunos consigam economizar o suficiente para comprar um lote dentro dessa cidade, que custa entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil.
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Os estudantes começam sem qualquer saldo e vão ganhando um dinheiro fictício a partir das aulas, que valem a partir de R$ 1 – e as quantias mudam todos os dias. Não há um valor estipulado. Eles já estão acostumados com esse processo e logo querem saber o valor de cada atividade. Todos os cadernos são transformados em carteiras bancárias: qualquer movimentação financeira realizada precisa estar registrada ali. Esse extrato bancário é feito à mão, deve ser atualizado corretamente e sempre é validado por mim, que converso com eles sobre todas as transações efetuadas.
O dinheiro é cumulativo e existem formas de ampliar a quantia: quando eles já têm algum saldo, passo a falar que a aula vai valer uma porcentagem: o dinheiro vai render 0,5% em um dia, 1% em outro, por exemplo. Quem faz os exercícios corretamente, não só os de porcentagem, mas todos os demais ligados ao dia a dia da aula (tabuada, geometria, raiz quadrada, números primos, entre tantas atividades ligadas ao currículo), também vê seu dinheiro render. Conto com o apoio de alunos que se candidatam a ajudantes na fiscalização das tarefas, e eles também ganham uma quantia fictícia por mês pelo trabalho.
As aulas ficam gravadas em meu canal no YouTube, para que eles possam rever em casa, mas sempre estou disposta à tirar dúvidas. Caso o aluno não faça a tarefa, ele é multado em 50%. Outro exercício baseado na vida real são os juros bancários e os investimentos, para que entendam que o dinheiro precisa se movimentar.
Os valores também podem ser gastos em atividades. Certa vez, eu me reuni com a professora de artes e combinamos que ela criaria algumas pinturas que poderiam ser adquiridas pelos estudantes. Com o saldo em conta, eles fazem a compra e controlam os próprios gastos. Em outra atividade, criamos uma sessão de cinema: quem quisesse assistir, deveria comprar os ingressos com o dinheiro que tinha. O ingresso de R$ 50 dava direito à entrada e a uma pipoca grande.
A minha proposta é exercitar tudo o que acontece na vida real nesta cidade inteligente. O projeto se chama “Cidade inteligente na mente” porque, inicialmente, não tínhamos um espaço físico e os alunos tinham de elaborar esse território também a partir da própria imaginação. O nome também faz uma referência ao conceito de Smart Cities, as Cidades Inteligentes, que, segundo a União Europeia, são sistemas de pessoas interagindo e usando energia, materiais, serviços e financiamento para melhorar a qualidade de vida.
Com o tempo, construímos uma maquete usando papelão. Aproveitei também esse momento para trabalhar com a turma aspectos relacionados a ângulos e outros conceitos matemáticos. Na elaboração da maquete, trabalhamos juntos como funciona a criação de uma planta da cidade. Além de abordarmos escalas, nós também conversamos sobre como os CEPs são feitos e porque os lotes precisam ser divididos de maneira exata.
➡️ Leia também: Educação financeira: da BNCC para o dia a dia do estudante
Profissões e salários
Todas as atividades da cidade refletem situações possíveis da vida real. Cada estudante desempenha uma função diferente no nosso município imaginário. Eu faço essa escolha e decido quem pode ser o professor, quem será o fiscal, o contador, o delegado, advogado e outros profissionais, que recebem um salário médio de R$ 60 por mês. Depois de um tempo, esse valor pode ser aumentado até R$ 200, mas é preciso considerar o desconto do IRRF (Imposto de Renda Retido na Fonte), de 20% no valor.
Essa é uma oportunidade de explicar as variações salariais, para que eles reflitam que algumas profissões ganham mais que outras e como cada um deve administrar o que recebeu para conseguir alcançar seus objetivos – seja o de comprar um lote na cidade, adquirir um bem ou fazer uma reserva de emergência. É uma maneira, também, de mostrar como os valores arrecadados com o imposto de renda contribuem para os bens públicos. É o nosso dinheiro que vemos quando ganhamos uma camiseta do colégio estadual ou passamos em uma consulta em um hospital municipal.
É interessante a figura do contador nesse projeto. Quando estamos no período de declaração do imposto de renda, ele fica responsável por chamar os estudantes para fazer o documento. Uso alguns períodos do ano também para introduzir temáticas como o momento certo para pagar o IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana) ou entender as taxas do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores).
O projeto dura o ano inteiro. Com essa extensão, consigo apresentar questões como o funcionamento do ciclo do dinheiro, a importância do pagamento de impostos, o que são juros, multas e até mesmo como se prevenir financeiramente. A fim de desenvolver na turma diferentes habilidades e apresentar situações que podem ocorrer na vida de cada um, crio alguns momentos de discussão baseados em algo ocorrido na cidade.
Regras e orientações
Ressalto a importância dos registros: todos eles anotam o quanto receberam e o quanto gastaram em uma caderneta. Aqui temos uma regra, na qual apenas o dono do dinheiro e eu podem fazer alterações e qualquer débito ou ganho deve passar por mim para que eu assine. Esta é uma maneira que encontrei de fazê-los entender a própria responsabilidade neste cuidado financeiro e também na prevenção de possíveis golpes.
Fiz uma simulação surpresa em uma aula, a fim de alertá-los. Selecionei, sem que a turma soubesse, um estudante para atuar como golpista. Ele saiu oferecendo lotes a preços muito competitivos, mas pediu que ele próprio diminuísse na caderneta os valores das transações. Aconteceu que ele retirou muito mais do que o previsto, deixando alguns alunos com saldo negativo.
Para essa atividade, entrou em ação uma aluna-repórter, que fez a averiguação do caso e perguntou a algumas pessoas afetadas se elas foram coagidas ou ameaçadas fisicamente. Nenhuma delas tinha sido. Usei essa simulação para que eles entendessem também um pouco sobre não cair em discursos falaciosos sobre ganhos exorbitantes de maneira rápida e fácil.
Cada acerto e erro deles interfere na pontuação de crédito (índice que mede a probabilidade de uma pessoa cumprir suas obrigações financeiras), e há um fiscal que verifica essa pontuação e se reporta a mim.
Aprendizado contínuo
A cada aula nós vamos aprendendo um pouquinho. Sempre os conteúdos que discutimos com relação à cidade estão atrelados ao que é pedido no currículo. O próprio projeto também se baseia nos 8 objetivos estratégicos da Carta Brasileira para Cidades Inteligentes.
Apesar de ser professora de matemática, tento fazer com que o projeto seja interdisciplinar. Vamos organizar nos próximos dias uma eleição para a escolha de prefeitos e vereadores – aproveitando o ano eleitoral – e, para isso, o professor de história irá nos auxiliar na contextualização do que é um pleito, como funcionam os processos eleitorais e quais impactos eles têm dentro das cidades.
Percebo que, com essa abordagem mais lúdica, os estudantes ficam mais engajados sobre esses temas. Recebo também muitos relatos de como eles acabam conversando sobre isso com suas famílias em casa. Muitos deles vão buscar a pontuação de crédito dos pais, entender por que eles emprestaram o cartão de crédito e outras tomadas de decisão que interferem nas finanças.
Nossa cidade inteligente também está conectada com o mercado de ações. Temos uma bolsa de valores onde os alunos podem fazer investimentos. É neste momento que explico o que é renda fixa e renda variável. Também aproveito para falar sobre a taxa Selic, títulos do tesouro direto e vou aprofundando os assuntos, como se fosse um tema chamando o outro.
Em determinado período do ano, eu diminuo o valor de dinheiro que é entregue para cada um, para que eles possam exercitar a questão do investimento. Além disso, todas as ações que eles desempenham em suas profissões fictícias também lhes proporciona algum rendimento, assim como a realização de tarefas e a apresentação adequada dos trabalhos.
Os erros são permitidos e bem-vindos. Costumo dizer para meus alunos que os erros fazem parte da vida e que nos dão uma nova chance de acertar. Eu dou dicas sobre poupança, sobre tipos de reserva e investimentos, mas também deixo que eles façam suas escolhas e tentem aplicar como acham melhor para si e todas essas situações são momentos de aprendizagem.
Procuro sempre ser muito atenciosa e reparar em quem tem mais dificuldade para saber como trabalhar com esses alunos. Eu tenho TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e, no meu período escolar, tinha bastante dificuldade de concentração, até que entendi que era capaz de entender esses assuntos.
A escola ensina a ter uma profissão e ganhar um salário, mas quem ensina gerenciamento das finanças pessoais? Considero isso muito importante. Esse projeto devolve ao aluno a esperança de que um dia ele será capaz de vencer econômica e pessoalmente, uma vez que ele deixa claro que o aluno tem que escolher um trabalho que goste, não um trabalho por dinheiro. O gerenciamento do que ganha vai fazer toda a diferença.
Sonia Alexandre Ribeiro
Mestranda em desenvolvimento regional, com licenciaturas em pedagogia e matemática, e pós-graduação em docência para o ensino superior. Leciona desde 1992, tanto em escolas da rede pública quanto da rede privada. Comprometida em promover o aprendizado significativo dos alunos, aplica metodologias inovadoras e adaptativas.