Expressões racistas na escola: além de bani-las, é preciso refletir sobre suas origens
Especialistas ouvidas pelo Porvir destacam que só excluir determinadas expressões não é suficiente e que é preciso incentivar o pensamento crítico dos estudantes
por Ruam Oliveira 3 de dezembro de 2024
Para aqueles que estudam linguística, o entendimento de que a língua é viva e se transforma ao decorrer do tempo está sempre presente. Palavras e expressões antes ditas podem, atualmente, ter outra conotação. A língua portuguesa falada no Brasil, por exemplo, possui marcas de muitos povos, como igualmente acontece na própria sociedade. Infelizmente, o idioma contém, também, resquícios do período da escravização e do racismo.
Há expressões que deveriam ser banidas do vocabulário pelo seu teor preconceituoso e racista? Como a escola deve se ater a essas questões?
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“O conceito de racismo linguístico surgiu para agregar e problematizar, ao mesmo tempo, as concepções de língua e linguagem que habitam a cabeça das pessoas, o que vai além de palavras como itens acabados. O termo denegrir, por exemplo, nos serve de metáfora. Ele existe desde antes da escravidão, quando o latim denigrare já expunha a ideia de manchar”, escreveu Gabriel Nascimento, linguista, escritor e professor na da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) na Revista E. Ele é autor do livro “Racismo linguístico – os subterrâneos da linguagem e do racismo”.
O termo “denegrir” é um exemplo que vem sendo revisitado dentro dessa perspectiva de extinção, visto que ele está associado a aspectos negativos e por sua proximidade com o termo “negro”, que está sendo resgatado pelos movimentos negros em uma proposta de valorização de identidade. Por muito tempo essa palavra foi utilizada com viés pejorativo como, por exemplo, nas expressões “mercado negro” ou “ovelha negra”.
O mesmo acontece com escravos e escravizados. O termo “escravo”, por exemplo, refere-se a uma condição natural. Já “escravizado”, que denota uma situação imposta por outras pessoas, deve ser a expressão utilizada. O mesmo ocorre com “escravidão”. De acordo com a professora de história Erika Rocha, esse termo pode ser substituído por palavras como “escravização” ou “escravismo”, que estão mais diretamente relacionadas à prática de um sistema econômico que prevaleceu durante o período colonial. Ao substituir “escravo” por “escravizado”, diz ela, subentende-se um processo histórico em que uma pessoa passou pela escravização – sendo sequestrada da África e trazida para o território que hoje é o Brasil.
Na sala de aula
Muitas expressões com conotação racista e preconceituosa foram naturalizadas e passaram a fazer parte do dia a dia das pessoas. Na sala de aula, elas podem também aparecer, o que significa que os docentes devem estar atentos à maneira como tratar o tema e educar a partir do que foi dito.
Larissa da Silva Fontana, doutoranda em Linguística na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em São Paulo, e integrante do grupo de pesquisa Mulheres Em Discurso, aponta que “os professores precisam estar preparados para oferecer aos alunos uma educação linguística crítica, antirracista e emancipatória. Isso significa mostrar para os estudantes que a língua não é estável. Ela é mutável e vai se transformando ao longo do tempo por causa de como as pessoas a utilizam”.
Do ponto de vista de Larissa, não é preciso extinguir termos, mas sim fazer com que os estudantes entendam que a língua pode causar divisões. Para ela, compreender o contexto é tão – ou mais – importante do que eliminar uma palavra.
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“O importante é que os estudantes consigam identificar nos contextos se os termos estão sendo empregados de forma a produzir sentidos racistas, de forma a subjugar as pessoas negras. Isso é uma educação linguística crítica que dá autonomia para os estudantes identificarem termos e expressões racistas”, afirma.
Dentro dessa ideia de contexto, ela trouxe o exemplo da palavra “neguinho”, que em famílias pretas pode ser entendida como demonstração de afeto e carinho, mas que também é usada como ofensa.
Ela também pontua que banir expressões não é suficiente. “Do que adianta as escolas, por exemplo, banirem determinados termos se elas não estão olhando para a gestão, se não têm professores e coordenadores negros, não tem referenciais teóricos e livros de autores e escritores negros na biblioteca?”, questiona.
Olhar histórico e contextualizado
Shirley Pimentel, pesquisadora quilombola e assistente de pesquisa no AfroCebrap, núcleo de pesquisa, formação e difusão sobre a temática racial vinculado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, pontua que esses termos devem ser tratados pedagogicamente dentro de um trabalho mais amplo de combate ao racismo.
Ela também acredita que é preciso educar para o entendimento das razões que estão por trás dos termos do ponto de vista histórico.
“É evidenciar a raiz racista dessas palavras, a história racista delas. Isso é um passo importante para fazer essa revisão linguística do nosso vocabulário. A lógica é que a linguagem não seja violenta para determinados públicos, para que as pessoas que não estão ali pensadas dentro de um padrão ou ideário não sejam violentadas também pelas expressões linguísticas”, destacou.
A lógica é que a linguagem não seja violenta para determinados públicos
Shirley Pimentel, pesquisadora quilombola
As especialistas ouvidas pelo Porvir destacaram a necessidade de mostrar o contexto histórico das palavras, antes mesmo de decidir por extingui-las ou não. Shirley destaca que deixar de dizer termos e expressões pura e simplesmente não vai trazer uma reflexão profunda “para entender o peso que aquela palavra tem sobre as pessoas negras e indígenas e a carga histórica que aquela palavra traz”.
Ela cita como outro exemplo, a palavra mulata, entendida por muitos linguistas como uma expressão diretamente relacionada à miscigenação ocasionada por meio da violência sexual e objetificação de mulheres negras.
“Se a gente pegar, por exemplo, algumas propagandas antigas de Bombril que associavam um Bombril com o cabelo de mulheres negras, você não vai ter lá uma palavra explicitamente racista, mas o modo como a língua está empregada produz sentidos racistas e é esse tipo de análise linguística que a gente precisa conseguir ensinar para os nossos alunos e alunas”, reflete Larissa.
Em seu artigo para a Revista E, Gabriel Nascimento também destaca que o racismo não vai acabar pela língua. Contudo, ele ressalta que “é seguramente na língua que ele se reproduz de maneira mais ligeira e disfarçável”, por isso a importância de que a escola aborde, de maneira crítica, o que cada termo pode representar, como afirmam as especialistas ouvidas pela reportagem.
“Ao passar dos anos, vemos como as pessoas buscam repugnar o racismo e passam a disfarçar o seu racismo na língua. Mesmo que elas não usem termos que lembrem a escravidão e o horror que as fizeram chegar nesse mundo em que pessoas negras continuam marcadas pela linha da morte, os gestos supratextuais, paralinguísticos ou etnolinguísticos demonstram que os gestos também compõem as formas de linguagem, em que pese a mudança nas palavras”, escreveu o linguista.
Ser antirracista não é necessariamente só parar de falar determinados termos
Larissa da Silva Fontana, dourotanda em linguística
A sugestão de Larissa para trabalhar essas questões em sala de aula é pela via interdisciplinar e pela pesquisa, de forma a promover a valorização da comunidade, da cultura e da população negra no Brasil.
“Ser antirracista não é necessariamente só parar de falar determinados termos, é adotar práticas que combatam o racismo e que promovam mais equidade e valorização da cultura afro-brasileira, que é uma cultura historicamente marginalizada no nosso país”, conclui.