Por que falar de escolas resilientes para enfrentar as crises climáticas? - PORVIR
Marx Vasconcelos / Porvir

Inovações em Educação

Por que falar de escolas resilientes para enfrentar as crises climáticas?

Confira o conceito explorado na série de reportagens "Escolas Resilientes" produzida pelo Porvir e fruto do 6º edital de Jornalismo de Educação da Jeduca

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 11 de dezembro de 2024

Em um cenário no qual as mudanças climáticas são uma ameaça crescente para o planeta, a educação assume um papel insubstituível. Nas salas de aula, as futuras gerações adquirem as ferramentas e o conhecimento necessários para entender os desafios ambientais e mitigar seus impactos.

Catástrofes na natureza decorrem de uma combinação de diversos fatores, incluindo a falta de políticas públicas de moradia e segurança.

As escolas resilientes tornam-se, portanto, fundamentais para garantir que essa preparação aconteça de forma eficaz. O conceito se baseia em três eixos: 

  • infraestrutura adaptada para resistir a desastres ambientais; 
  • currículo adaptável e transdisciplinar que aborda riscos climáticos e possibilidades de desenvolvimento sustentável;
  • apoio socioemocional para lidar com os impactos dessas catástrofes.

Comuns em países afetados por tsunamis, terremotos e outras calamidades, as escolas resilientes ganharam destaque nacional após as devastadoras chuvas entre 27 de abril e 2 de maio deste 2024 no Rio Grande do Sul, que causaram a maior tragédia já registrada do estado. Foram 180 pessoas mortas, 2 milhões de atingidos e mais de 1,8 mil escolas estaduais e municipais impactadas. Em resposta, o governo decidiu adotar o modelo resiliente para a reconstrução da rede. Em qual estágio o Brasil está no que se refere às escolas resilientes?

A resposta vem nesta série especial de reportagens. A pauta, uma das vencedoras do 6º edital da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação), proporcionou ao Porvir quase três meses de investigação, durante os quais conversamos com gestores de secretarias de educação e escolas das regiões Norte, Nordeste e Sudeste. Buscamos exemplos de escolas que já adotam o modelo e encontramos algumas experiências bem interessantes, mas a nossa apuração não identificou nenhuma instituição que atende integralmente aos três pilares.

As reportagens que fazem parte desta série mostram os avanços e desafios encontrados em quatro escolas:

Logo na abertura de cada texto, um selo identifica suas características dentro do conceito de escola resiliente.

Contexto geral

Os eventos climáticos extremos evidenciam a vulnerabilidade de escolas em áreas de risco. Um levantamento federal apontou que 1.942 municípios brasileiros enfrentam riscos de deslizamentos, enxurradas e inundações. Em Salvador, onde metade delas está em áreas ameaçadas. Situações similares ocorrem em Vitória e Recife, conforme dados do Instituto Alana e da Fiquem Sabendo.

O relatório “Índice de Risco Climático das Crianças”, do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), aponta que mais de 40 milhões de crianças e adolescentes no Brasil estão ameaçados por riscos climáticos. A despeito da classificação “natural”, esses desastres são intensificados pela ausência de políticas públicas adequadas de moradia e segurança, por exemplo.

Na tentativa de superar esses desafios por meio da educação, o Brasil implementará a Lei 14.926, que incluirá mudanças climáticas no currículo escolar a partir de 2025. Além disso, o país sediará a COP30 (30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas), que debate soluções para os desafios climáticos globais.

Por que ainda não há uma escola resiliente no Brasil?

O termo “escolas resilientes” ganhou força nos anos 2000, com o aumento de catástrofes na natureza. Organizações como o Unicef, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e o Banco Mundial enfatizam a necessidade de as escolas se estruturarem para resistir aos impactos de desastres causados pelo clima, e assegurem um ambiente seguro, a continuidade das atividades educacionais e o fortalecimento socioemocional de alunos, equipes e comunidades.

No Brasil, a legislação incorporou práticas de educação para a redução de riscos desde 2012, com a Lei 12.608, reconhecendo o preparo da comunidade escolar para enfrentar emergências. Essa função torna-se ainda mais evidente em situações de desastre, quando as escolas frequentemente são usadas como abrigos provisórios devido à sua infraestrutura e aos serviços básicos oferecidos, o que também facilita o trabalho das equipes de resgate e de apoio humanitário.

Em maio de 2024, mais de 800 escolas estaduais do Rio Grande do Sul (do total de 2.338) serviram como abrigo para a população atingida pela maior catástrofe climática do estado. As aulas foram suspensas por mais de 70 dias, afetando mais de 400 mil alunos. A secretária de educação do Rio Grande do Sul, Raquel Teixeira, anunciou que será preciso construir escolas resilientes em resposta aos impactos das enchentes que deixaram 16 escolas completamente destruídas.

“Desde 2023, o estado enfrentou eventos climáticos graves, incluindo ciclones, enxurradas e enchentes, e um ciclone extratropical em junho, fenômeno incomum que destruiu várias escolas”, diz. “Nós tomamos ações emergenciais, mas não é possível reagir assim toda vez que isso acontecer porque esses eventos vieram para ficar. Vem daí a ideia da escola resiliente, que entendemos como uma instituição capaz de resistir, absorver impactos e garantir a qualidade da educação mesmo em cenários adversos”, define.

Raquel concedeu entrevista ao Porvir em outubro, na mesma semana na qual interditou para reforma a Escola Estadual de Ensino Médio Almirante Barroso, localizada às margens do Rio Jacuí, na Ilha da Pintada, uma das áreas mais atingidas pelas enchentes na capital gaúcha. À época, as águas ultrapassaram um metro e meio de altura. Mesmo reaberta parcialmente após o desastre, o prédio de dois andares ficou comprometido com rachaduras nos pilares da estrutura. Os 450 alunos terminaram o ano letivo em outra instituição.

De acordo com Raquel, os trabalhos devem transformar a Almirante Barroso no primeiro protótipo de escola resiliente do Brasil. O projeto vertical tem áreas essenciais localizadas no último andar, como ginásio, refeitório e banheiros, para garantir segurança e conciliar aulas e estrutura de abrigo, caso necessário. “Há caminhos e soluções possíveis dentro da própria infraestrutura da escola para conciliar caso seja absolutamente essencial que tenham de funcionar como abrigos”, diz.

Ao ser questionada sobre o fato de as escolas, quando se tornam abrigos, serem as últimas a voltar ao normal e qual seria a solução para o entrave, Raquel se mostra enfática: “Minha opinião radical é: não usem escolas como abrigos. Tivemos muito trabalho quando isso aconteceu. As pessoas não queriam sair do abrigo, pois não havia para onde ir. As prefeituras não estavam resolvendo a situação, e os pais e alunos pressionavam pelo direito de voltar às aulas. É uma situação muito difícil e intensa.”

Esse panorama, segundo Raquel, destaca ainda mais a necessidade de as escolas se fortalecerem como espaços resilientes, especialmente em um momento em que todos precisam se preparar para enfrentar as alterações climáticas. Estamos aprendendo a conviver com tempestades, deslizamentos, enxurradas, enchentes. São fenômenos distintos, com impactos diferentes para nossas comunidades.”

Quando o conceito chegou ao país?

Se o ano de 2024 entra para os livros de história brasileiros pela enchente devastadora no Rio Grande do Sul, a maior tragédia ambiental do país foi registrada em 2011, na região Serrana do Rio de Janeiro, quando um deslizamento de terra, provocado pelas intensas chuvas, matou 918 pessoas e deixou 300 desaparecidas. Petrópolis foi uma das cidades mais afetadas. Na época, a Defesa Civil Nacional identificou o evento como um divisor de águas para políticas públicas voltadas à redução de riscos em comunidades vulneráveis.

Rodrigo Xavier D’Almeida, atualmente diretor de projetos da Secretaria de Proteção e Defesa Civil de Petrópolis, explorou o tema em sua tese de doutorado intitulada “Escola resiliente: práticas colaborativas para redução de riscos no ambiente escolar”. Em 2013, ele liderou a criação do Programa Escola Resiliente em Petrópolis, reconhecido pela Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres (UNISDR, na sigla em inglês) como pioneiro no Brasil.

A iniciativa é baseada no Quadro Integral de Segurança Escolar da ONU, e conta com alguns pilares. O primeiro é a infraestrutura das escolas locais e qual a capacidade de resistir a

uma situação adversa. A gestão de risco no ambiente escolar compõe o eixo dois e, o terceiro, foca na educação para resiliência climática e sua inclusão no currículo.

A despeito de o Brasil ainda não contar com uma legislação abrangente relacionada ao ensino para resiliência, Rodrigo enxerga a urgência de uma educação adaptada às mudanças climáticas.

No e-book “Escola Resiliente”, feito pela prefeitura de Petrópolis, estão detalhados os passos do projeto petropolitano, com recomendações a outros governos. O contexto escolar pode ser integrado ao currículo, por meio de disciplinas ou de forma interdisciplinar, e também por meio de atividades extracurriculares, como simulações de emergência, evacuação e palestras sobre desastres, incêndios e outros riscos.

Em 2015, a iniciativa foi implementada em 23 escolas de alto risco, ganhando prêmios e reconhecimento internacional. Dois anos depois, a cidade de Petrópolis foi nomeada uma cidade resiliente pela ONU, por traçar um plano de contingência para combater os incêndios florestais durante o período de estiagem. Naquele ano, a cidade foi indicada, ao lado de Niterói, como “potencial de se transformar em modelo mundial para redução de riscos de desastres”. 

Contudo, foi após o depois do desastre de 2022, considerado o maior da história de Petrópolis, que os projetos de prevenção e atividades de conscientização passaram a ser replicados nas 79 escolas municipais. Hoje, todas contam com grupos que simulam semanalmente a evacuação da escola em casos de emergência, orientados pela Defesa Civil.

Você encontrará detalhes dessa história na reportagem “Em Petrópolis (RJ), escola se torna refúgio para superação de desastres ambientais”

Modelos e recomendações internacionais

A convite de entidades internacionais, como a própria ONU e a ONG Save The Children, Rodrigo realiza palestras nas quais apresenta os resultados do Projeto Escola Resiliente. “Tenho tido a oportunidade de viajar por alguns países para mostrar a metodologia. Notei que o Brasil vive numa bolha, porque os países vizinhos da América Latina, como Colômbia, Bolívia, Equador e Peru, por exemplo, têm projetos de gestão de risco na escola de uma forma muito completa.”

Esse panorama é refletido em iniciativas como o Roadmap for Safer and Resilient Schools (Roteiro para Escolas Mais Seguras e Resilientes), desenvolvido pelo Banco Mundial. O programa oferece um guia detalhado para apoiar governos de países em desenvolvimento expostos a riscos naturais, com estratégias de intervenção e planos de investimento para tornar as escolas mais seguras e resilientes em larga escala. O Peru e a Colômbia já adotam o material para aplicar o conceito em suas redes, evidenciando a urgência e a necessidade de implementação em nível global.

De acordo com Fernando Ramirez Cortes, cogerente do projeto, a metodologia será integrada ao próximo projeto financiado pelo Banco Mundial no Brasil, o “Mato Grosso Resilient, Inclusive, and Sustainable Learning Project” (“Projeto de Aprendizado Resiliente, Inclusivo e Sustentável de Mato Grosso”). Ele reforça que a instituição conta com uma área temática intitulada “Escolas Mais Seguras”, voltada para o apoio governamental e aberta a parcerias. 

Para o especialista, o primeiro passo político para investir nas escolas resilientes é reconhecer que a crescente frequência e intensidade dos riscos climáticos exige medidas urgentes. “Adiar as ações até que os desastres ocorram não é apenas custoso, mas também ineficiente, especialmente para as escolas, onde milhões de crianças enfrentam risco devido à infraestrutura inadequada. Isso é um chamado à ação para os formuladores de políticas educacionais, gestores e comunidades escolares em todo o mundo.” 

O papel das políticas públicas

As mudanças climáticas transformaram a gestão de risco de desastres de uma preocupação exclusiva de cientistas para um aspecto fundamental da política e da prática de desenvolvimento sustentável. É um tema que chegou ao cotidiano do cidadão comum e, claro, não pode ficar fora das escolas, afirma Fernando.

“Ao integrar a resiliência climática no planejamento, design e operação das instalações escolares, podemos resguardar o ambiente educacional e garantir a segurança e o bem estar dos alunos”, aponta o especialista.

O Banco Mundial vem apoiando 35 países em seis regiões, em seus esforços para construir escolas mais seguras e resilientes. Ao total, são alcançados mais de 120 milhões de estudantes em cerca de 564 mil escolas.

Quando perguntado sobre a necessidade de políticas públicas para direcionar recursos a escolas resilientes, Fernando afirma que o primeiro passo é otimizar os investimentos atuais. Ele exemplifica: anualmente, desastres como terremotos e tempestades tropicais causam perdas econômicas de 3 a 4 bilhões de dólares. “Globalmente, 35 mil salas de aula são destruídas por terremotos a cada ano. Em vários países africanos, o número de salas afetadas por inundações supera o número de novas salas construídas.”

Reduzir a vulnerabilidade da infraestrutura escolar em larga escala exige financiamento amplo, o que é desafiador em um horizonte de restrição orçamentária, pondera Fernando. “A infraestrutura escolar, muitas vezes, compete com outras prioridades, como salários e materiais, mas felizmente a atenção dada ao impacto do ambiente físico nos resultados educacionais tem aumentado.”

Por isso o papel dos educadores merece destaque, complementa Fernando. “A resiliência é uma construção coletiva. Quando as crianças aprendem a valorizar e cuidar do meio ambiente, isso se torna um fator duradouro para a sustentabilidade e resiliência. Os educadores, ao transmitir esses conhecimentos, têm um papel fundamental na formação de uma geração mais apta a enfrentar os desafios da mudança climática e contribuir para um futuro mais resiliente”, finaliza. 

Considerações-chave para uma escola resiliente

Baseada nas experiências das equipes do Banco Mundial na implementação de escolas seguras e resilientes em países em desenvolvimento, a metodologia RSRS (Escola Resiliente e Escola Segura) busca criar ambientes educacionais que protejam não apenas a infraestrutura, mas também promovam o bem-estar emocional e social dos alunos.

Há dois anos, a UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) conta com a pós-graduação “Escolas Resilientes e Educação para a Redução do Risco de Desastres”. Gratuito e a distância, o curso é voltado para professores e diretores escolares e tem o apoio da Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres.

A seguir, apresentamos recomendações do e-book “Roteiro para Escolas Seguras e Resilientes” e do curso de pós-graduação de escolas resilientes na UFJF, com sugestões, objetivos e ações práticas para os eixos fundamentais de uma escola resiliente.

1. Currículo

  • Objetivo: Incorporar questões climáticas ao currículo e garantir sua flexibilidade, possibilitando a continuidade do aprendizado durante e após desastres.
  • Ações-chave:
    • Desenvolver planos de recuperação que integrem atividades educativas alternativas, como ensino remoto ou materiais didáticos para situações de emergência.
    • Fortalecer a capacidade institucional com treinamento contínuo para professores e gestores, com estratégias que adaptem o ensino em contextos pós-desastre e integrem educação sobre riscos e resiliência ao currículo escolar. 
    • Debater a temática das mudanças climáticas de maneira interdisciplinar, com um debate amplo e conectado entre diferentes áreas do conhecimento.

2. Infraestrutura

  • Objetivo: Assegurar que a escola tenha a infraestrutura e os processos de gestão adequados para resistir a desastres e se recuperar rapidamente.
  • Ações-chave:
    • Investir em infraestrutura que resista a desastres naturais e siga padrões de segurança e construção adequados.
    • Elaborar planos de recuperação rápidos para garantir a mínima interrupção nas atividades escolares após desastres.
    • Implementar estratégias para minimizar o tempo de inatividade, possibilitando o retorno das atividades escolares o mais rapidamente possível.
    • Desenvolver planos de emergência detalhados para a prevenção, com diretrizes claras para evacuação, abrigamento e a continuidade das aulas.
    • Priorizar a manutenção regular da infraestrutura escolar para evitar a deterioração.

3. Socioemocional

  • Objetivo: Apoiar o desenvolvimento emocional de alunos, professores e da comunidade escolar, especialmente em tempos de crise.
  • Ações-chave:
    • Engajar as comunidades locais no processo de planejamento e implementação das ações de resiliência, criando um ambiente seguro e de apoio.
    • Garantir financiamento sustentável para programas de bem-estar, apoio psicossocial e suporte emocional para alunos, professores e famílias, especialmente após eventos traumáticos.
    • Promover a coesão social e fortalecer os laços comunitários, contribuindo para um ambiente emocionalmente seguro, que favoreça a recuperação pós-desastre.

➡️ Confira o e-book “Roteiro para Escolas Seguras e Resilientes” (disponível apenas em inglês e espanhol)

Edição: Tatiana Klix e Vinícius de Oliveira

*A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação, da Jeduca e da Fundação Itaú


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competências para o século 21, crise climática, educação ambiental, educação climática, Série Escolas Resilientes, socioemocionais

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