CEERT 35 anos: o legado de Cida Bento e a luta por um futuro antirracista
Debate destacou como a luta do movimento negro construiu saberes, abriu caminhos e segue fundamental para enfrentar o racismo e ampliar oportunidades para as juventudes
por Ana Luísa D'Maschio
24 de setembro de 2025
No palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo (SP), o neto entregou flores à avó e o filho os reuniu em um abraço apertado. De pé, a plateia lotada ovacionou a cena. O espaço, habitualmente dedicado ao teatro, desta vez testemunhou um momento real: a homenagem do pequeno Caetano, ao lado do pai, Daniel, a Cida Bento, logo após sua conferência intitulada “(Orì)entando futuros e o presente da luta! Legados dos Movimentos Negros na Democratização do País”, mediada por Luanda Mayra, coordenadora da área de Juventudes Negras no CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades).
Carregado de emoção, o gesto iluminou a família Bento e simbolizou a ancestralidade e a força das gerações ligadas ao movimento negro. Aquela noite de quarta-feira, 17 de setembro, celebrava a trajetória de 35 anos do CEERT, fundado por Cida.
💬 Tire suas dúvidas e converse com outros educadores nas comunidades do Porvir no WhatsApp
Intitulado “Diálogos Antirracistas – CEERT 35 anos: Construindo um Futuro Ancestral”, o evento reuniu 1,5 mil pessoas durante dois dias de programação, com debates e rodas de conversa sobre juventudes negras, educação, trabalho, justiça racial e justiça climática.

O sonho de um mundo melhor
Cida relembrou os primeiros passos do CEERT. A autora de “O pacto da branquitude”, um dos livros mais importantes quando se trata de entender as relações de poder estabelecidas pela branquitude em áreas como trabalho, educação e saúde, entre outras, revelou que sua saída da Companhia Energética de São Paulo, onde trabalhava na área de recursos humanos, marcou sua militância.
“Foi ali que se acentuou muito meu olhar para a discriminação racial no trabalho. Saí da empresa e fui para o Conselho da Comunidade Negra, o primeiro órgão formalizado no Brasil voltado a esse tema. Mas foi fora do estado que ganhamos autonomia e independência para sermos forjados como militantes e pesquisadores.”
A criação do CEERT, em 1990, esteve diretamente ligada à mobilização democrática em torno da Constituição Federal de 1988. “Aquele tempo era o da Constituinte. Estávamos puxando movimentos e introduzindo a dimensão racial em tudo que se discutia. Foi um período fértil: Geledés (Instituto da Mulher Negra) nasceu em 1988, o CEERT em 1990 e tantas organizações negras despontaram naquele momento.”
Ao revisitar sua trajetória, Cida, eleita pela revista “The Economist” como uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade, ressaltou a motivação que atravessa décadas de atuação. “Quando dizem que eu trabalho muito, eu digo que não parece trabalho. Parece algo para o qual damos nossa energia, nossa vitalidade, porque acreditamos. Está misturado com um sonho: o de um mundo melhor.”
Esse sonho, segundo Cida, está ligado ao bem viver, conceito que orientou a Marcha das Mulheres Negras de 2015 e segue norteando a atuação do CEERT. “O bem viver é pensar num país onde seja possível ser feliz. Não com pouca dor, mas com muitas realizações. É sobre outro país que nós estamos falando.”
Leia também
Qual o próximo passo para melhorar a educação de estudantes negros?
“Não existe aprendizagem sem pertencimento”, diz Cida Bento
10 autores negros que todo professor precisa conhecer
“Educação só é saída se for antirracista”
Diretor-executivo do CEERT e colunista do Porvir, Daniel Bento Teixeira destacou que a trajetória da instituição se inspira no quilombismo, conceito político e cultural formulado pelo intelectual Abdias Nascimento (1914-2011). Ele partia da experiência histórica dos quilombos (comunidades formadas por pessoas negras que resistiram à escravização no Brasil) para propor que sejam referência para a organização da sociedade contemporânea.
Ele se refere, em especial, ao Programa Prosseguir, voltado ao apoio à permanência de estudantes negras e negros na universidade e sua aproximação ao mundo do trabalho. “O Prosseguir é esse lugar de se ver possível. Uma trajetória coletiva ligada à ideia de quilombismo. Esse quilombo de verdade é o que a gente vem construindo.”
Daniel também reforçou que a educação não pode ser vista de forma genérica como solução para todos os problemas sem considerar seu conteúdo. “Sempre ouvimos que a saída é pela educação. Mas depende. Se for uma educação que reproduz o racismo, ela não só não educa, como desumaniza mais da metade da população brasileira. A saída só é pela educação quando ela é antirracista”, afirmou.
A reflexão ganhou um tom pessoal quando mencionou a experiência como pai de Caetano, de 6 anos, e destacou como passado e presente impactam o aprendizado das crianças. Para ele, a ausência de uma educação antirracista prejudica a todos. “A criança negra cresce sentindo-se com menos valor, como se a contribuição civilizatória negra não existisse, enquanto a criança branca é levada a acreditar que é superior. Ambas são formadas de maneira torta.”
O dirigente defendeu que o enfrentamento ao racismo precisa estar presente em todas as áreas da vida social. “O quilombo nunca foi apenas espaço de resistência negra, mas de acolhimento e projeto de sociedade. É uma cosmovisão, uma ecologia de saberes que orienta nosso trabalho em todas as áreas: educação, justiça econômica, trabalho e direitos humanos.”
Ao encerrar, citou a noção de direito à diferença. “Temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza e o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza. Essa é a perspectiva que precisa nortear a luta por igualdade. É isso que queremos levar pelos próximos 35 anos.” transformação”, afirmou.





