Programa Nêgo Bispo vai financiar 100 cursos sobre saberes afro-brasileiros, indígenas e quilombolas
MEC vai financiar propostas que integrem saberes afro-brasileiros, indígenas e quilombolas à formação de professores. Servidores de Institutos Federais podem inscrever projetos até 16 de outubro
por Ana Luísa D'Maschio
29 de setembro de 2025
A educação brasileira ganhou, em 2025, um programa inédito que reconhece oficialmente os saberes ancestrais como parte da formação docente. Lançado em julho pelo MEC (Ministério da Educação), por meio da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão), em parceria com o IFBA (Instituto Federal da Bahia), o Programa Escola Nacional Nego Bispo de Saberes Tradicionais tem como objetivo integrar conhecimentos afro-brasileiros, indígenas e quilombolas à formação de futuros professores.
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O primeiro edital do programa, publicado em 17 de setembro, está com inscrições abertas até 16 de outubro no site do IFBA. Serão selecionadas até 100 propostas de cursos de extensão voltados à valorização e difusão desses saberes. Cada projeto aprovado receberá até R$ 41,6 mil, totalizando R$ 7,5 milhões em investimentos até 2027.
As equipes devem ser formadas no âmbito de institutos federais e contar com um mestre ou mestra do saber, um assistente e um colaborador. Apenas servidores efetivos das carreiras docente ou técnica podem inscrever propostas, que precisam ser desenvolvidas em parceria com estudantes (preferencialmente de licenciatura), professores da rede pública de educação básica e educadores populares com experiência comprovada.
Mais informações estão disponíveis pelo e-mail: negobisposelecao@ufba.edu.br
Reconhecimento oficial dos saberes tradicionais
“Esse é o edital que a gente queria muito colocar na rua. O Programa Nego Bispo é fundamental para fazer o currículo científico dialogar com os saberes tradicionais”, explicou a secretária Zara Figueiredo, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (Secadi/MEC), durante o evento de 35 anos do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades)
Instituído pela Portaria MEC nº 537, de 24 de julho de 2025, o Programa Escola Nêgo Bispo busca romper com a lógica eurocêntrica ainda presente nos currículos, que considera o modo europeu de pensar, estudar e viver como o mais importante e acaba desvalorizando os conhecimentos de outros povos, como indígenas e africanos. Ao reconhecer mestres de saberes tradicionais como educadores e lhes atribuir o mesma posição acadêmica de professores doutores, o programa valoriza a diversidade de formas de ensinar e aprender
“Mestres e mestras terão o mesmo status – e, portanto, a mesma bolsa – que professores doutores. Essa equivalência é simbólica e prática, e mostra o quanto queremos reposicionar esses conhecimentos na política educacional”, ressaltou Zara.
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Ela reforça: “Não estamos tirando nada do currículo. Não se trata de retirar Drummond ou Guimarães Rosa, ou de substituir a mitologia grega. O que estamos fazendo é instituir outras lógicas cognitivas: o cinema indígena, a arquitetura quilombola, as cosmociências dos povos tradicionais. É ampliar o repertório com contribuições que sempre existiram e foram invisibilizadas.”
Para a reitora do IFBA, Luzia Mota, o programa enfrenta um dos maiores gargalos da formação docente: “Estamos trazendo mestres e mestras para interagir com estudantes da educação básica e com licenciandos. Assim, formaremos novos professores já com a capacidade de retornar às salas de aula com esse conhecimento amadurecido. Hoje, essa ainda é a nossa principal dificuldade para inserir conteúdos afro-brasileiros e indígenas na formação do ensino fundamental e médio.”
O assessor da Secadi, Erin Fernandes, reforçou a construção coletiva: “Conversamos com lideranças quilombolas e estivemos nos territórios para desenhar o programa. É uma ação de baixo para cima, que rompe com ciclos de apagamento e fortalece mestres e mestras como protagonistas.”
| A importância de Nêgo Bispo |
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| Antônio Bispo dos Santos (1959–2023), conhecido como Nêgo Bispo, nasceu no Vale do Rio Berlengas (PI) e se formou com os saberes de mestres e mestras do quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí. Foi o primeiro de sua família a ser alfabetizado, concluiu o ensino fundamental e atuou como lavrador, professor, poeta, escritor e referência intelectual quilombola.Autor de livros como “A terra dá, a terra quer” e “Colonização, quilombos: modos e significações”, Nêgo Bispo elaborou conceitos originais a partir da cosmovisão afro-pindorâmica — termo usado por ele para descrever a forma de ver e viver o mundo dos descendentes de africanos e indígenas no Brasil. A ideia é oferecer uma identidade própria, em vez de aceitar as classificações coloniais que sempre tentaram definir esses povos de fora para dentro. Essa cosmovisão (forma como um povo, grupo ou indivíduo compreende e interpreta o mundo) valoriza a ancestralidade, a oralidade, a relação com a terra, a coletividade e os modos de existir que resistem à lógica da colonização, reconhecendo que há outras formas legítimas de produzir conhecimento e de organizar a vida em sociedade.Nêgo Bispo também definiu a “contra-colonização” como a resistência ativa dos povos tradicionais diante da colonização, um processo de ressignificação cultural que preserva e reinventa identidades. Em suas reflexões, ele distingue o pensamento orgânico, baseado na experiência, na oralidade e na relação com a natureza, do pensamento sintético, ligado ao conhecimento acadêmico de matriz eurocêntrica. Para ele, reconhecer e valorizar o pensamento orgânico é essencial para construir alternativas à lógica colonial e ampliar as formas de produção de conhecimento na educação.Como liderança, atuou na CECOQ/PI (Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí) e na CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas). Também lecionou em iniciativas nas Universidades de Brasília e Federal de Minas Gerais, levando sua reflexão tanto ao ambiente acadêmico quanto aos movimentos sociais. Mais informações na Enciclopédia de Antropologia. |
Novos caminhos para a formação docente
As formações da Escola Nacional Nêgo Bispo estão organizadas em três eixos principais (saberes afro-brasileiros, indígenas e quilombolas) e quatro subeixos. Confira os detalhes:
Artes e Ofícios: práticas criativas que unem teoria e técnica, produzindo objetos, obras e expressões artísticas que combinam utilidade, estética, ritualidade e criatividade, em linguagens como pintura, música, artesanato, dança e vestuário.
Línguas e Narrativas: valorização das línguas originárias e das tradições orais, como mitos, cantigas e provérbios, que transmitem saberes, preservam culturas e fortalecem identidades. Para Nêgo Bispo, a língua é também forma de existência e território simbólico.
Memórias e Oralidade: guardam e transmitem saberes ancestrais por meio de histórias, cantos, rezas e conversas. São formas vivas de conhecimento coletivo, que unem emoção, espiritualidade e ética comunitária, resistindo à lógica colonial.
Cosmociências: saberes ancestrais que articulam a relação entre ser humano, natureza, espiritualidade e cosmo de forma interconectada, valorizando a experiência, a ancestralidade e o território como fontes de conhecimento.
Outras iniciativas da política de equidade
O Programa Escola Nêgo Bispo faz parte de um conjunto de ações da PNEERQ (Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola), entre elas:
- Distribuição, até 2026, do kit pedagógico “A Cor da Cultura” para todas as escolas (material com cadernos pedagógicos, curadoria de acervo audiovisual e outros suportes);
- Disponibilização do Mapa e Informativo Censo Quilombola, em parceria com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística);
- Realização do I Encontro Nacional de Educação Escolar Quilombola e cinco encontros regionais;
- Produção da Enciclopédia de Autores e Autoras Negras;
- Criação do programa “Educação Antirracista em Diálogo”, com a professora Nilma Lino Gomes, disponível no YouTube.
*Com informações do Ministério da Educação e do Instituto Federal da Bahia





