Entre rios, brincadeiras e saberes, 'Do Colo da Terra' retrata as infâncias indígenas e suas lições - PORVIR
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Inovações em Educação

Entre rios, brincadeiras e saberes, ‘Do Colo da Terra’ retrata as infâncias indígenas e suas lições

Disponível gratuitamente no Itaú Cultural Play, o filme celebra a sabedoria e a beleza das infâncias indígenas, revelando as tradições de quatro povos originários e oferecendo um material pedagógico que inspira educadores a colocar em prática a Lei 11.645 nas escolas

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 22 de outubro de 2025

Como é o cotidiano das infâncias indígenas? O que revelam meninos e meninas que vivem longe dos ritmos urbanos, aprendem com a natureza e convivem em harmonia com suas comunidades e tradições?

Essas respostas estão reunidas em “Do colo da Terra”, disponível gratuitamente na plataforma Itaú Cultural Play. A câmera dos diretores Renata Meirelles e David Vêluz atua como um personagem invisível, registrando com delicadeza e sem interferências o som noturno da floresta, o fluir dos rios, as brincadeiras das crianças e os rituais sagrados dos povos Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva, Baniwa e Kĩsêdjê. A filmagem mostra como a infância floresce em cada território. O filme integra o projeto Território do Brincar, uma iniciativa do Instituto Alana.

Para muitos povos indígenas, a criança não é vista apenas como um ser em formação, mas como alguém que participa ativamente da vida comunitária. Desde cedo, ela é reconhecida como sujeito de direitos e responsabilidades, aprendendo com o cotidiano por meio da observação, da imitação e da convivência.

Entre os Guarani, por exemplo, a infância é o tempo do nhanhembo’é, período de aprendizado espiritual e formação integral, em que corpo, mente e espírito se desenvolvem em harmonia com a comunidade e a natureza.

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📽️ Assista ao trailer:

Novo filme do Território do Brincar retrata a infância de quatro povos indígenas (Baniwa, Khisetje, Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva) e convida a aprender com modos de vida em harmonia com a natureza.

A presença das crianças é central em rituais, brincadeiras, trabalhos coletivos e aprendizagens do cotidiano. De modo geral, para os povos originários, proteger as crianças é também proteger a Terra, a floresta e a água.

“Nos quatro povos apresentados, as crianças vivem em profunda conexão com a natureza, sendo reconhecidas como parte da continuidade do mundo. Cuidar dessas infâncias é também cuidar da natureza que elas habitam e protegem”, afirma a diretora.

“Do colo da Terra”: um convite ao reencantamento

Na sessão de lançamento do filme, em São Paulo (SP), a urgência de reconectar a humanidade à Terra foi tema do debate mediado pela cineasta indígena Natália Tupi, com a participação do educador Gersem Baniwa, do ambientalista e liderança indígena Ailton Krenak e do pesquisador Anastácio Peralta, do povo Guarani Kaiowá.

A metáfora “Do colo da Terra”, para Gersem, sintetiza a relação entre os povos originários e a natureza. “Não há outra palavra que poderia expressar melhor nossa relação com a natureza do que a ideia de colo”, afirmou. “A gente ouve muito falar em ‘cuidadores da Terra’, mas é o contrário. É a Terra que nos alimenta, que nos cuida e nos dá sentido.”

Esse retorno, segundo ele, é mais do que uma escolha. “Nós só temos um futuro possível: exatamente esse retorno ao colo”, afirma. Para o educador, voltar ao colo significa resgatar a sensibilidade, a integração e o pertencimento à Terra, valores corrompidos pela modernidade e pelo consumo desenfreado.

“Para mim, esse filme é um convite ao reencantamento”, complementou Natália Tupi, ao provocar os participantes a refletirem sobre como cada pessoa, mesmo vivendo nas cidades, pode reencontrar essa conexão. “Desejo que esse filme seja uma flecha que toque muitos corações e leve as pessoas a voltarem para o colo da Terra”, finalizou.

Em sua fala, Anastácio Peralta destacou o valor espiritual da Terra e a profunda relação que seu povo mantém com o território. “A Terra é mãe, ela nos alimenta, amamenta. Cuidar da Terra é cuidar da nossa alma”, disse. Ele também relembrou o alerta dos anciãos: “A Terra está com febre. É o aquecimento global, e os nossos políticos ainda não perceberam”.

A Terra é mãe, ela nos alimenta, amamenta. Cuidar da Terra é cuidar da nossa alma

O poder das histórias e o sentido do pertencimento

Para o diretor David Vêluz, contar histórias é também um ato de cura. “As histórias são remédios poderosos. Algumas ferem, outras curam. Tratar humanos e não humanos como parentes, como parte integral de quem somos, é a única saída que temos”, afirma. Ele também alerta para o apagamento das narrativas, observando que “quando líderes enaltecem a conquista e silenciam os sobreviventes, ainda não aprenderam o significado do parentesco”.

Ailton Krenak vê nas imagens do filme um gesto de esperança. “Esses meninos espiritados me dão esperança. Eles vivem a experiência radical de estar no Colo da Terra, dentro de uma cosmovisão que articula corpo, espírito e aprendizado. Nenhuma escola consegue reproduzir isso.”

Cosmovisão é a forma como um povo compreende e se relaciona com o mundo, integrando natureza, tempo e espiritualidade. Nas culturas indígenas, essa visão une todos os elementos da existência, sem separar o humano do ambiente nem o material do espiritual. Pessoas, animais, rios, florestas, espíritos e astros fazem parte de uma mesma rede de vida e interdependência.

Quatro povos, quatro modos de viver a infância

Guarani Kaiowá – vivem no sul do Mato Grosso do Sul, em municípios como Dourados e Amambai, próximos à fronteira com o Paraguai. Enfrentam há décadas conflitos fundiários e a perda de territórios tradicionais.

Guarani Nhandeva (ou Ñandeva) – localizados também no Mato Grosso do Sul, com comunidades no Paraná, São Paulo e no litoral sul e sudeste. Compartilham laços culturais e linguísticos com os Kaiowá e Mbya.

Baniwa – habitantes do noroeste do Amazonas, nas margens do rio Içana, afluente do Rio Negro, especialmente em São Gabriel da Cachoeira. Integram a Terra Indígena Alto Rio Negro, uma das mais preservadas do país.

Kĩsêdjê (ou Suyá) – vivem no Parque Indígena do Xingu, no norte do Mato Grosso, às margens do rio Suiá-Missu. Falam uma língua da família Jê e são reconhecidos por sua tradição musical, seus rituais de canto e dança e por uma relação profunda com a floresta e os ciclos naturais.

Educação e território: práticas para a sala de aula

“Do Colo da Terra” nasceu da escuta e da convivência com as comunidades. De acordo com a diretora, o material pedagógico que o acompanha segue essa perspectiva, convidando educadoras e educadores à reflexão e à criação de práticas significativas em sala de aula.

O recurso busca ampliar o alcance do documentário como ferramenta educativa, fortalecendo a implementação da Lei 11.645/2008, que estabelece o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas.

Mais do que uma obrigação legal, a Lei é considerada uma reparação histórica. Busca romper a invisibilidade dos povos originários, combater o racismo e valorizar seus saberes sobre natureza, saúde e cultura. Também propõe que o tema seja tratado de forma transversal, presente em todas as disciplinas e não apenas em datas comemorativas.

Um aspecto fundamental abordado pelo material didático é a relação entre infância e território sagrado. Para esses povos, a luta por território é também a luta pela continuidade da vida e da cultura. A criança é vista como importante para alegrar a Terra e garantir a renovação da existência.

O conceito de bem viver, chamado de Tekó Porã entre os Guarani, propõe um modo de vida baseado no equilíbrio e na reciprocidade entre seres humanos, natureza e espiritualidade.

A distinção entre educação indígena e educação escolar indígena também é central: a primeira ocorre de forma tradicional, integral e comunitária, em todos os espaços da vida; a segunda, bilíngue e intercultural, atua como ponte com o mundo não indígena, sem substituir os saberes ancestrais.

Na cosmovisão indígena, o território é a principal sala de aula. A floresta, o rio e a roça são espaços de aprendizado, onde as crianças aprendem a caçar, plantar, cantar e rezar em contato direto com a natureza. Essa visão, orientada pelo bem viver, reafirma uma ética de cuidado e reciprocidade entre pessoas, territórios e seres vivos.

Um exemplo é o plantio da roça, que reúne saberes de biologia, história, matemática e espiritualidade. Nessa lógica, proteger o território e os biomas é também proteger a infância e o futuro.

Diversidade, juventude e presença dos povos indígenas no Brasil

O material pedagógico também apresenta dados do Censo Demográfico de 2022, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que ajudam a desconstruir a ideia dos povos indígenas como um grupo homogêneo.

O Brasil tem 1,69 milhão de pessoas indígenas, o equivalente a 0,83% da população nacional, um aumento de quase 90% em relação a 2010. São 305 povos e mais de 270 línguas faladas em todo o país. Embora mais da metade viva em terras indígenas, cerca de 324 mil residem em áreas urbanas. Quase metade dessa população tem menos de 20 anos, o que reforça a centralidade da infância e da juventude para o futuro desses povos.O material pedagógico também apresenta dados do Censo Demográfico de 2022, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que ajudam a desconstruir a ideia dos povos indígenas como um grupo homogêneo.

O que as infâncias indígenas ensinam à educação de hoje

  • Autonomia e protagonismo: a criança é agente ativa do aprendizado.
  • Brincar é aprender: o conhecimento nasce da convivência e do contato com a natureza.
  • Troca entre gerações: todos ensinam e aprendem, sejam crianças, jovens ou anciãos.
  • Território como mestre: o rio, a roça e a floresta são espaços de ensino.
  • Integralidade: corpo, mente, espírito e natureza são dimensões inseparáveis.

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cinema, educação indígena, educação infantil, uso do território

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