Professora da educação infantil convida crianças a investigar seu lugar no mundo por meio da arte
Por meio da escuta, da arte, de passeios virtuais e da criação de uma cidade coletiva, crianças de 5 e 6 anos investigaram o que significa pertencer a diferentes espaços, da barriga da mãe ao planeta Terra
por Alcioline Rachel Ferreira Paes
24 de outubro de 2025
A barriga materna é a nossa primeira morada. Depois dela, passamos a habitar muitos outros lugares: o corpo, a casa, a escola, a cidade, o planeta. A partir dessa ideia simbólica e afetiva, nasceu o projeto “Meu lugar no mundo”, desenvolvido com quase cem crianças de 5 e 6 anos das duas unidades da Escola Crescimento, em São Luís (MA).
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A proposta buscou despertar nas crianças a compreensão de que todo espaço que habitamos, seja ele físico, emocional ou social, faz parte da nossa história e ajuda a construir quem somos. Durante um semestre, embarcamos juntos em uma jornada de descobertas para compreender melhor os espaços que ocupamos e o verdadeiro sentido de pertencer a nós mesmos, ao outro e ao mundo que compartilhamos.
Ao longo do percurso, as crianças compreenderam que estão conectadas por laços de afeto, cultura e convivência. Em cada etapa, foram convidadas a escutar, observar, investigar e se expressar, desenvolvendo autonomia, empatia e um olhar mais curioso e sensível sobre o mundo ao seu redor.
Escuta sensível
O ponto de partida foi uma atividade de escuta sensorial. Em uma sala ambientada com luz suave, as crianças ouviram sons de batimentos cardíacos, respiração, elementos da natureza e o som do choro de um bebê. O ambiente, preparado para favorecer a concentração e a imaginação, possibilitou que cada uma criasse imagens mentais a partir dos sons percebidos.
Na roda de conversa, surgiram hipóteses curiosas: algumas crianças disseram que o som parecia vir do coração de um bebê dentro da barriga da mãe, enquanto outras o relacionaram ao nascimento e ao primeiro choro. A partir dessa reflexão, conversamos sobre a barriga materna como a primeira moradia e sobre os laços que nos conectam à nossa origem.
Durante o desenvolvimento do projeto, minha mediação procurou instigar a curiosidade e o pensamento reflexivo das crianças por meio de perguntas que ampliassem suas observações e conexões com o tema. Questões como “De onde vêm esses sons que estamos ouvindo?”, “Será que todos os seres vivos produzem sons parecidos?” e “As pessoas que falam nesses áudios são importantes para você? Por qual motivo?” ajudaram a promover a escuta atenta e o raciocínio sobre a origem e o significado dos sons.
Laços familiares
Na sequência, propusemos às famílias que enviassem áudios com mensagens carinhosas. As crianças ouviram atentamente e tentaram identificar vozes. Durante a escuta, surgiram perguntas mediadoras como “Você reconhece quem está falando?” e “Essa pessoa é importante para você? Por quê?”, que estimularam o reconhecimento afetivo e o fortalecimento dos vínculos familiares.
Esse momento foi essencial para aproximar pais e responsáveis do processo pedagógico e reforçar o papel da escuta como ponto de partida para o desenvolvimento socioemocional. A cada nova mensagem, as crianças compartilhavam lembranças e sentimentos, construindo pontes entre casa e escola.
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Diversidade e autorretratos
O passo seguinte foi o olhar para si e para o outro. Começamos com a pergunta: “O que você tem de especial?” Em rodas de conversa, as crianças refletiram sobre suas qualidades e observaram características dos colegas.
Durante as produções artísticas, surgiram comentários como “Me empresta o lápis cor de pele?” Essa fala se transformou em uma oportunidade de aprendizado. Criamos um ateliê de misturas de tintas, para que as crianças descobrissem a multiplicidade de tons de pele. Elas se dedicaram a criar cores únicas e, com elas, produziram autorretratos e retratos dos colegas, utilizando também o aplicativo Picture Puzzles, expressando-se com liberdade e autenticidade.
Essa atividade favoreceu o respeito às diferenças, valorização da diversidade e expressão da identidade, além de desenvolver a coordenação motora e a criatividade.
Representação de uma casa
Dando continuidade às reflexões, as crianças foram convidadas a representar suas casas e os moradores que vivem com elas. Com palitos de picolé, papéis coloridos, tinta guache e outros materiais, desenharam e montaram maquetes simples. Em casa, as famílias participaram elaborando a árvore genealógica, que foi apresentada em sala e utilizada para construir um registro gráfico coletivo com o número de moradores de cada residência.
Esse exercício permitiu explorar noções de quantidade, comparação e registro de dados, de forma lúdica e significativa. Paralelamente, lemos o poema “A Casa”, de Vinicius de Moraes, que inspirou reflexões sobre o significado simbólico do lar e sobre o que torna um espaço acolhedor. As perguntas “Como era a casa que Vinicius de Moraes descreveu?” e “Seria possível alguém morar nela?” ajudaram as crianças a refletir sobre o imaginário e a função de um lar.

Diferentes culturas
O escopo do projeto se expandiu para o mundo. As crianças participaram de passeios virtuais com o uso do Google Earth e óculos de realidade virtual, explorando moradias de diferentes países e climas. Esses tours virtuais permitiram observar construções, paisagens e modos de viver, despertando curiosidade inerente à diversidade cultural.
A visita de um engenheiro, pai de aluno, trouxe um olhar técnico e cultural sobre como as casas são construídas em locais distintos, com materiais e formatos que se adaptam às necessidades e às tradições de cada comunidade.
Também lemos o conto “Os Três Porquinhos”, comparando as casas de palha, madeira e tijolos, e discutimos o que faz uma moradia ser segura. Perguntas como “Como será que as casas são construídas em lugares muito diferentes do nosso?” e “O que muda e o que continua igual?” ajudaram a incentivar a comparação entre culturas e realidades diversas.
Cuidado com a natureza
Para ampliar a percepção sobre o conceito de moradia, investigamos os ecossistemas onde vivem os animais. A visita de uma apicultora foi um dos momentos mais marcantes do projeto. Ela apresentou o funcionamento da colmeia, a organização das abelhas e a importância da preservação ambiental.
As crianças construíram maquetes de ninhos, tocas e colmeias, comparando com as casas humanas. A partir disso, surgiram conversas sobre responsabilidade coletiva e sustentabilidade, guiadas pela pergunta “Se a Terra é a nossa grande casa, o que cada um de nós pode fazer para cuidá-la melhor?” Essa etapa reforçou a ideia de que o planeta é a casa de todos os seres vivos e que cuidar do meio ambiente é cuidar de nós mesmos.

Construindo uma cidade
Com os conhecimentos adquiridos, as crianças passaram à etapa de criação coletiva de uma cidade. Cada uma apresentou a casa que havia construído, explicando suas ideias e escolhas. Em grupo, as construções foram reunidas em um grande painel, formando um mapa urbano e rural.
Usamos materiais recicláveis, como caixas, tampinhas, papelão, palitos e tecidos, para criar ruas, praças, lixeiras seletivas e diversos tipos de moradias. A cidade se organizou em setores com casas de veraneio, áreas de condomínios, palafitas, áreas de frio, bairros residenciais, zona rural e a casinha dos animais, incluindo a colmeia das abelhas.
Esse processo permitiu que as crianças visualizassem a diversidade de moradias e a estrutura de uma cidade, além de aprofundarem a reflexão sobre os cuidados necessários com o ambiente e com todos os moradores, humanos e animais. O trabalho coletivo potencializou a colaboração, a escuta e o planejamento conjunto, fortalecendo o senso de pertencimento e de responsabilidade coletiva.

Diário para as descobertas
Durante todo o processo, mantive um diário de bordo com transcrições das falas, hipóteses e descobertas das crianças. As produções artísticas, fotografias e textos coletivos foram reunidos em um portfólio individual, entregue às famílias ao final do semestre. Esse material evidenciou o desenvolvimento das aprendizagens e possibilitou que os responsáveis acompanhassem o percurso dos filhos.
Registrei avanços significativos em autonomia, pensamento crítico, expressão oral e artística. As crianças passaram a fazer escolhas conscientes sobre materiais, levantar hipóteses, comparar realidades e refletir sobre as próprias ações. A cada atividade, novas perguntas surgiam, sinalizando que o conhecimento estava sendo construído de forma viva e significativa.

Fundamentos e ajustes
O principal objetivo do projeto foi fortalecer a identidade e o senso de pertencimento, ajudando as crianças a reconhecer suas próprias histórias e a valorizar as diferenças entre as pessoas e os modos de viver.
A proposta dialogou com o PYP (Primary Years Programme), do Bacharelado Internacional, e com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) da Educação Infantil, envolvendo de forma interdisciplinar os campos de experiência “O eu, o outro e o nós”, “Corpo, gestos e movimentos”, “Traços, sons, cores e formas” e “Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações”. Entre as habilidades desenvolvidas, destacam-se o autoconhecimento, a expressão oral, a investigação, a representação artística e a convivência.
Durante o percurso, surgiram desafios que exigiram flexibilidade e mediação. Um exemplo disso foi a dificuldade em representar tons de pele, que se transformou em uma oportunidade para discutir diversidade e promover o uso criativo das cores.
Já a compreensão sobre as diferentes moradias (humanas e animais) demandou o uso de recursos visuais, vídeos, visitas e conversas guiadas, o que contribuiu para um aprendizado mais concreto e significativo. Esses ajustes imprevistos enriqueceram o projeto e ampliaram o olhar das crianças para além de suas próprias realidades.

Lugar das crianças
Ao final do projeto, as crianças compreenderam que habitar o mundo é mais do que ocupar um espaço físico: é fazer parte dele com responsabilidade e afeto. Reconheceram que a barriga da mãe foi sua primeira moradia e que o planeta é a grande casa de todos.
O trabalho promoveu aprendizagens significativas, integrando linguagem, artes, matemática, ciências e valores humanos. As crianças desenvolveram autonomia, empatia, colaboração e respeito às diferenças, além de habilidades cognitivas e expressivas.
Para a escola, o projeto inspirou práticas interdisciplinares, fortaleceu os vínculos entre professores, famílias e estudantes e deixou como legado uma cultura de escuta e protagonismo infantil, reafirmando que as crianças aprendem de forma mais profunda quando partem de suas próprias experiências e curiosidades.
Alcioline Rachel Ferreira Paes
Graduada em pedagogia e pós-graduada em metodologia do ensino de matemática, atua na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental desde 2003, com foco em planejamento, práticas pedagógicas inovadoras e desenvolvimento socioemocional. Em 2023, foi finalista do Prêmio Educador Transformador com o projeto “Uma viagem espacial”.





