O que a escola pode fazer quando a violência ameaça o direito de aprender - PORVIR
Elza Fiúza/Agência Brasil

Inovações em Educação

O que a escola pode fazer quando a violência ameaça o direito de aprender

Diante da violência que interrompe rotinas e ameaça a aprendizagem, o papel dos educadores é acolher antes de ensinar. Mais do que retomar conteúdos, é hora de ouvir, oferecer apoio emocional e reconstruir o senso de comunidade, ações que reafirmam o direito de cada estudante a aprender com segurança, respeito e dignidade

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 4 de novembro de 2025

Após a chacina nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), que deixou mais de uma centena de mortos e interrompeu o funcionamento de dezenas de escolas, o país volta a se questionar: o que acontece com estudantes, professores e comunidades quando a violência bate à porta das salas de aula?

O desafio é escutar e cuidar das pessoas, afirmam especialistas em educação socioemocional e também estudos de grandes organizações com projetos voltados à proteção de crianças e adolescentes.

Recentemente, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) lançou o e-book “Violência extrema contra escolas: orientações para preparação e resposta”, um material que pode ser consultado não apenas em situações ocorridas dentro da escola, mas também diante de episódios que afetam o ambiente escolar de forma mais ampla, como a atual chacina no Rio de Janeiro. O guia reúne recomendações que auxiliam as equipes escolares a identificar possíveis respostas para essas situações, sem impor orientações padronizadas. O site do Instituto Ame sua Mente também reúne orientações para quem precisa de apoio em saúde mental, assistência social ou atendimento em situações de emergência.

Não há quem permaneça indiferente ao tema. Nesses momentos, o silêncio ou a tentativa de ignorar o assunto não são caminhos possíveis.

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“Diante de uma situação de violência, torna-se difícil falar de processos ideais para o acolhimento de todas as pessoas envolvidas. Ainda assim, organizar respostas é fundamental para garantir o atendimento inicial, o acolhimento da comunidade e as intervenções intersetoriais quando necessário”, explica Cléo Garcia, advogada, doutoranda em Educação pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e especialista em Justiça Restaurativa e Direito Educacional.

Acolher antes de ensinar

Não é possível, nem recomendável, retomar o aprendizado sem antes acolher o sofrimento coletivo. “O primeiro passo é ouvir”, diz Cléo, integrante do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral), entidade responsável pelo levantamento que embasa o e-book do Unicef. O grupo desenvolve estudos em universidades paulistas.

Para esta matéria, o Porvir também ouviu a professora Luciene Tognetta, coordenadora da linha de pesquisa “Convivência na escola: virtudes, bullying e violência”, do mesmo grupo de estudos.

“Neste momento difícil, é fundamental lembrar da importância de escutar os nossos alunos, mesmo aqueles que estão distantes da situação da chacina no Rio de Janeiro”, recomenda Luciene.

Nas primeiras semanas após o trauma, a prioridade deve ser reconstruir o coletivo, com o intuito de criar espaços de convivência, suspender avaliações e flexibilizar tarefas. A proposta, explicam as especialistas, é que os estudantes e os profissionais possam expressar seus sentimentos e recuperar a confiança no ambiente escolar. A escuta ativa ajuda a promover um ambiente de apoio emocional que é essencial para a saúde mental da comunidade.

“Cada aluno vive, de maneira única, as emoções e o impacto de notícias tão trágicas. Ao oferecer um espaço seguro para que expressem seus sentimentos, damos a eles a oportunidade de compreender, validar e processar suas emoções. Dar voz às suas emoções nesse momento é um gesto de solidariedade e cuidado, que fortalece a confiança e o sentido de pertencimento na escola”, aponta a coordenadora.

Atentar aos sinais de alerta

A escola precisa estar atenta aos sinais que indicam sofrimento emocional. Em crianças e adolescentes, eles se manifestam como mudanças bruscas de comportamento, medo de voltar à escola, pesadelos, dificuldade de concentração, queda no rendimento e até sintomas físicos, como dores de cabeça ou de estômago. Entre os adolescentes, podem surgir também apatia ou uso de substâncias.

“Os professores e funcionários também precisam de atenção”, reforça Cléo. “Eles vivem o trauma junto com os alunos. É comum que apresentem sintomas de ansiedade, insônia e desmotivação. São reações esperadas, mas, se persistirem, é fundamental acionar a rede de apoio”, ressalta.

O estudo do Unicef reforça que o acolhimento da comunidade escolar e a superação do trauma exigem ações articuladas entre educação, saúde, assistência social, justiça e famílias.

“Essa não é uma tarefa que possa ser colocada apenas sobre os ombros da escola. O trabalho deve, de fato, envolver a rede de proteção”, reforça Cléo.

Acionar redes de proteção

Encaminhar casos de saúde mental à rede de proteção escolar é importante para promover o bem-estar dos estudantes e criar um ambiente escolar mais acolhedor e seguro, ressalta Luciene, autora do livro “A construção da solidariedade e a educação dos sentimentos na escola”.

“Essas ações garantem que o estudante receba o suporte adequado, ajudando a prevenir agravamentos de problemas emocionais e comportamentais”, diz.

Ao envolver a rede, a escola fortalece seu papel na proteção social, promovendo uma atuação integrada que inclui profissionais como psicólogos, assistentes sociais e outros serviços de apoio. “Isso também reduz o sentimento de isolamento dos professores e demais funcionários, que muitas vezes se sentem desamparados diante do sofrimento vivenciado na escola.”

Essa parceria garante que o estudante se sinta cuidado e acolhido, reforçando que a escola é um espaço de proteção e compreensão. “Além disso, ao trabalhar em rede, todos contribuem para a prevenção de problemas sociais e de saúde mental mais severos, promovendo uma cultura de cuidado, respeito e solidariedade no ambiente escolar”, pontua Luciene.

Fortalecer a educação antirracista

De acordo com as pesquisadoras, é preciso discutir a violência no Rio de Janeiro à luz dos direitos humanos e da história do racismo no Brasil. “A história do país é marcada por desigualdades profundas, muitas delas relacionadas ao racismo estrutural, que perpetua a discriminação, a violência e a exclusão social, especialmente contra os negros e outras minorias”, comenta Luciene Tognetta.

Quando a violência e a injustiça social são naturalizadas, a escola deixa de ser reconhecida como um espaço de proteção e esperança para alunos negros e periféricos.

“Esse jovem só vai acreditar no direito à educação quando perceber que o direito o reconhece, que ele é protegido e que pode se projetar além das fronteiras da exclusão social”, afirma Cléo. Para ela, o primeiro passo é reconhecer essa realidade dentro da escola. “A escola precisa ser um espaço onde ele é visto, ouvido, onde sua cultura e sua história sejam valorizadas. É preciso rever práticas racistas e combater o preconceito.”

Cléo ressalta que a escola precisa fazer sentido na vida real dos estudantes. “Os jovens precisam compreender, e sei que é difícil neste contexto, que o conhecimento liberta. Ele não pode ser apenas uma obrigação.” Ela destaca que projetos que envolvem protagonismo estudantil, arte, esporte e tecnologia são caminhos potentes para ampliar horizontes e fortalecer o sentimento de autoria. “Essas experiências mostram que ele pode ser autor do próprio futuro.”

Luciene acrescenta que a violência que acomete jovens nas favelas evidencia a fragilidade da garantia de dignidade de todas as pessoas no Brasil. Esses jovens, muitas vezes considerados invisíveis ou ameaçados por uma cultura que normaliza a violência, representam um impacto direto dessa estrutura desigual, observa. Para avançar, defende, é preciso caminhar com as futuras gerações, oferecendo a elas oportunidades reais de inclusão, respeito e proteção.

“Nenhuma escola é neutra nesse contexto”, complementa a pesquisadora. “As instituições de ensino carregam uma responsabilidade moral e social de promover o entendimento, o respeito às diferenças e o combate ao racismo. É necessário se posicionar ativamente, promovendo debates, ações pedagógicas e mudanças que contribuam para desconstruir o racismo e fortalecer valores de equidade e justiça social.”

Leia também:
Editorial do Porvir a favor da educação antirracista
Chacina no Rio de Janeiro: qual o lugar da escola nessa tragédia?

Considerar o impacto das violências

O estudo “Educação sob cerco: as escolas do Grande Rio impactadas pela violência armada”, sobre o impacto da violência armada nas escolas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, revelou que 48% dos estudantes da rede pública estão matriculados em escolas localizadas em áreas controladas por grupos armados (facções e milícias). Nessas regiões, mais da metade das unidades escolares (54%) registrou ao menos um episódio de confronto com participação policial em 2022.

Os estudantes das áreas dominadas por grupos armados obtêm desempenhos até 10 pontos mais baixos no SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), o que equivale a cerca de seis meses de defasagem de aprendizagem. Nessas mesmas escolas, as taxas de abandono chegam a 12,5%, quase o dobro das observadas em territórios não dominados.

Um estudo inédito da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), intitulado “O Impacto da Guerra às Drogas na Educação das Crianças das Periferias do Rio de Janeiro”, mostra que a violência, além de causar danos profundos às comunidades, compromete severamente o aprendizado dos estudantes. Nas escolas localizadas em áreas com seis ou mais episódios de violência por ano, os alunos do 5º ano do ensino fundamental aprendem, em média, 65% menos do que o esperado em língua portuguesa e praticamente nada em matemática.

É a primeira pesquisa que considera os relatos de diretores escolares registrados em um aplicativo da Secretaria Municipal de Educação, evidenciando como a guerra às drogas afeta diretamente o direito à aprendizagem de milhares de crianças nas periferias do Rio de Janeiro.

A exposição constante a tiroteios e operações afeta a rotina escolar, interrompe o funcionamento das aulas e aumenta a sensação de medo e insegurança entre estudantes e professores.

“Isso afeta especialmente os estudantes que precisam se deslocar por áreas de risco para chegar à escola. E, claro, também atinge professores, funcionários e toda a comunidade escolar, o que compromete o clima e a qualidade do ambiente educacional. Por isso, precisamos entender que se trata de algo muito maior do que simplesmente a perda de dias letivos ou o cumprimento do calendário escolar”, acredita Cléo.  “Nós temos por obrigação fornecer aos estudantes muito mais do que os 200 dias letivos por ano”, conclui.

Planejar atividades reparadoras

Que tal realizar algumas dinâmicas? A professora Luciene Tognetta sugere três propostas simples que ajudam a expressar sentimentos, reconstruir vínculos e reafirmar o direito à vida e à esperança dentro da escola.

1) O que vejo e o que sinto?
Selecione fotos de jornais para apresentar em slides e espalhe no centro da roda pequenas tiras de papel com palavras que representem sentimentos, como tristeza, saudade, indignação, medo, vergonha, angústia ou decepção.

A cada imagem, os alunos são convidados a descrever o que veem e, em seguida, escolher uma palavra que expresse o que sentem ao observar aquela cena. O exercício estimula a empatia, a escuta e o reconhecimento das próprias emoções.

2) Gaveta dos sentimentos
Disponha três caixas, nomeadas como gaveta da saudade, gaveta da tristeza e gaveta do medo. Ao longo das aulas, os alunos podem visitá-las para guardar, em forma de desenho ou palavras, sentimentos que desejem expressar.

Ninguém lê o que for depositado. O gesto simbólico de “tirar de si” o que faz mal e “guardar fora” ajuda a aliviar emoções e promove autocuidado e autorregulação emocional.

3) Dinâmica da esperança
Peça que cada estudante responda, em um pedaço de papel, à pergunta: “Qual é a esperança que tenho para o futuro?”

Depois, reúna todas as respostas e, em grupo, organize um quadro com as categorias que emergirem. A turma pode então conversar sobre as diferentes formas de esperança e os caminhos possíveis para fortalecê-las juntos.

Saiba mais sobre o e-book

Elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), o e-book “Violência extrema contra escolas:  orientações para preparação e resposta” foi construído com o apoio de pesquisadoras dos grupos GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral), da Unicamp/Unesp, e GEDDEP/IdEA (Grupo de Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp).O material integra a iniciativa “Educação que Protege” e reúne orientações para gestores, professores e equipes técnicas sobre como proceder em situações de violência extrema, oferecendo diretrizes para o acolhimento, a escuta e a reconstrução dos vínculos na comuidade escolar.


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educação antirracista, socioemocionais, violência nas escolas

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Luis Aguiar

muito bom! Amo vocês do Porvir

Cyro

Chacina?
Bandidos mortos em combate ao atirar em policiais no dever da missão.
A educação é um reflexo de “educadores” desse nível. Lastimável.

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