Participação da comunidade muda escola conhecida como ‘Carandiru’
Gestão democrática e mudança na relação de alunos, professores e familiares com espaço escolar fizeram com que instituição conseguisse desconstruir estigma negativo e fosse reconhecida pelo MEC como criativa e inovadora
por Camila Leporace 25 de outubro de 2016
Até quatro anos atrás, a Escola Municipal Professor Souza Carneiro, no bairro da Penha, Rio de Janeiro, era conhecida como “Carandiru”. A referência ao antigo presídio localizado em São Paulo (SP) se devia a uma série de características que a escola, fundada em 1971, foi adquirindo a partir dos anos 90. Quando a diretora Eliane Ferreira chegou para assumir a instituição, em 2012, encontrou conflitos, desordem, paredes escuras e cinzentas, grades para todos os lados. Muitos dos alunos eram considerados “problemáticos”. Mas, no final do ano passado, a escola foi reconhecida pelo MEC como exemplo de inovação e criatividade na educação básica.
Essa transformação tem por trás um trabalho de muita dedicação capitaneado por Eliane que teve a participação da comunidade escolar. A diretora, que trabalhava no Complexo da Maré antes de chegar na Souza Carneiro, não se conformou com o apelido dado à instituição. Com quase 20 anos de experiência em educação, começou a apurar de onde vinha realmente aquele sentido tão carregado de negatividade que marcava o local. Conversou com professores, alunos, pais e funcionários, procurando entender como poderia realizar um trabalho de desconstrução daquele estigma.
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Eliane percebeu que era necessário criar condições para que a escola voltasse a ser um espaço adequado à construção do saber. “A escola precisava fazer uma mudança de dentro para fora, pois ela mesma havia criado aquela estigmatização. Os professores tratavam os alunos de forma diferente. Os alunos e professores produziram aquele ‘Carandiru’, e as outras escolas também, quando mandavam o que consideravam os ‘piores’ alunos para a escola (a Souza Carneiro)”, conta Eliane, explicando que era comum as escolas no entorno “enviarem” alunos tido como complicados ou “casos perdidos” para aquela que era conhecida pelo nome de um complexo penitenciário.
Para reverter a situação, a diretora lançou mão de uma gestão democrática. Começou a colocar a comunidade escolar da Souza Carneiro para trabalhar pela escola, em vez de continuar contribuindo para o seu declínio. Um processo em espiral começou a acontecer, de forma orgânica. “O que eu fazia era provocar, para que as pessoas se ouvissem. As práticas, a partir daí, começaram a mudar. Mudaram as relações com o espaço, com os recursos. A escola foi mudando não a partir de um único projeto, mas sim a partir da provocação das pessoas e do momento em que elas começaram a acreditar, e o projeto começou a ser não meu, mas de todo mundo”.
Novo estímulo
Um dos pontos cruciais da transformação implementada por Eliane foi a renovação física do espaço. O refeitório, para ela, é um símbolo do “antes” e “depois”. “O teto era cheio de feijão, comida, ovo; a escola era toda gradeada. O ambiente precisa ser mais alegre, mais inspirador. O refeitório, para mim, era emblemático. Parecia refeitório de presídio, os alunos não cabiam nas mesas de alunos de primário, era tudo cinza”. Nesse processo, o envolvimento dos alunos foi fundamental. Segundo Eliane, trazê-los para promover a mudança é a chave para que eles, em vez de destruir, passem a defender os espaços reconstruídos. “Eles estão assumindo as rédeas da escola, e quando isso acontece é difícil partirem para a depredação”, enfatiza.
Essa é uma máxima que o professor Marcel Henriques Maciel, de Educação Física da escola, conhece bem. Ele liderou os alunos na reforma da quadra da escola, aproveitando o clima das Olimpíadas que se aproximavam. Depois de ouvir os alunos reclamarem da quadra de paredes azuis muito escuras e dizerem que o local não era convidativo à prática esportiva, o professor pediu à diretora tintas e material para melhorar o espaço. Quando se deu conta, havia mais de 60 alunos de várias turmas envolvidos na transformação da quadra. “O aluno sente falta desses cuidados, isso tem desdobramentos educativos, porque eles passam a tomar cuidado e pedir que os outros não destruam”, conta Marcel.
O professor tem procurado, ainda, conscientizar os alunos quanto à importância de deixarem um legado para aqueles que ainda virão a estudar naquele espaço. Muitas vezes, morando em comunidades com pouco saneamento, infraestrutura deficiente e pouco planejamento, fica difícil que os jovens absorvam esse conceito. “Eles, muitas vezes, não entendem como deixar algo para alguém, se não deixaram nada pra eles. Eles precisam aprender noções de conservação, manutenção. Eles não vivem isso no dia-a-dia; muitas vezes, morando em favelas, não pensam no futuro”.
Mudanças físicas e pedagógicas
Quando questionada sobre o principal fator que teria levado a escola a ser considerada inovadora, com sua resposta Eliane gera uma reflexão. “Não temos um elemento inovador materializado; onde é que está a inovação? Se eu tivesse que definir, diria que ela está no novo modo de ser e olhar para a escola, e não necessariamente na montagem de um laboratório novo. Até o laboratório ser montado e a horta ser revitalizada, houve um processo longo”.
A horta à qual ela se refere é um símbolo do renascimento da escola, que voltou a ser querida e a receber alunos de vários locais, inclusive oriundos da classe média local – como acontecia antes dos anos 90. Criada por uma professora de Ciências agora aposentada, a plantação surgiu com a intenção de estimular os alunos a realizar uma atividade fora de sala de aula, ligada à natureza e à revitalização do local. Quando a horta começou a ser construída, ainda houve a aposta de que ela não duraria “nem uma semana”, baseada em episódios anteriores vividos na escola quando ela era marcada pelo descaso, pela falta de apreço pelo espaço. Mas a horta permanece e, hoje, os estudantes cuidam dela e a preservam.
Eliane conta que, até começar a incentivar as transformações, algo assim era impensável, até porque os professores estavam desestimulados e desacreditados. Foi por isso que ela não considerou dissociar a melhoria do espaço físico de qualquer alteração com foco pedagógico ou na dinâmica das aulas. Aos poucos, os professores passaram a ousar, o que refletiu no planejamento. As aulas começaram a mudar, os professores começaram a fazer seminários, aulas conjuntas, a promover certos tipos de encontros que eles não conseguiam fazer antes, por não acreditarem que dariam certo.
Entre os resultados das reformas estruturais pelas quais a escola passou está uma sala de estudos, onde são disponibilizados computadores conectados à internet. O espaço foi uma demanda dos alunos, que pediram um local para fazer trabalhos em grupo e pesquisas. É também nessa sala que o grêmio da escola faz reuniões. Os computadores que compõem a sala já existiam na escola, mas essa foi uma forma de aproveitar os recursos de uma maneira nova. Em tempos de muito debate sobre educação e tecnologia, Eliane expõe um cuidado que considera necessário com relação à inserção dos recursos tecnológicos no meio escolar.
“O grande papel da escola é a dimensão intelectual; se entrar a tecnologia, a escola tem que fazer pensar sobre o uso. Precisa continuar problematizando, ao trazer as novidades para dentro da escola, para o aluno olhar, aprender a usar, criticar e aprender a fazer coisas a partir daquilo. Fazer pensar, hoje, demanda uma dinâmica diferente de cem anos atrás e, quando resistimos a isso, a escola fica muito chata”, sintetiza. “Quando a escola mexe nos seus eixos e começa a experimentar coisas, os alunos parecem ter mudado, mas o que mudou foram as atividades, foram as formas de produção de conhecimento; é necessário ousar desafiar o aluno a responder de formas diferentes”.
Desafios
A transformação da Escola Municipal Souza Carneiro pode servir de inspiração para muitas outras instituições. Como Eliane reforça, quando se trata de educação é essencial treinar o olhar. “O desafio que ainda resta é fazer com que as pessoas desconstruam a cultura escolar, não no sentido de uma inovação fugaz, rompendo com a essência da escola, mas sim de romper com a cultura escolar que engessa o nosso olhar e deixa de ver o que é realmente importante no fazer educativo”.
Hoje, pais e mães se surpreendem ao visitar por dentro aquela que é conhecida como “a escola que mudou”. Circulando pelo espaço, Eliane percebe os alunos tranquilos, sentindo que pertencem à escola. “Precisamos ver o que realmente se desenrola nas salas, no pátio, que é o que importa. O grande desafio é fazer com que a escola seja um espaço em que os alunos queiram estar. Eles pedem para ficar mais um pouco para fazer um trabalho, não querem ir embora logo. A escola tem que ter significado para o aluno. (Temos que) entender que ela é um lugar de aprendizado, mas não pode ter o mesmo desenho do século passado, que não comporta o aluno que está aí hoje”.