“A gente adora o frio na barriga dos primeiros dias com as turmas” - PORVIR
Secretaria de Educaão do Piauí

Inovações em Educação

“A gente adora o frio na barriga dos primeiros dias com as turmas”

A professora e orientadora pedagógica Renata Salomone escreve sobre os recomeços de cada ano letivo e a importância da redescoberta ao entrar em sala de aula

por Renata Salomone ilustração relógio 11 de fevereiro de 2025

A gente adora começo de ano nas escolas. É tempo de lembrar das bonitezas e desafios de trabalhar com a profissão mais encantada do mundo: ser professor. Mas começos não existem sem história. Por isso, chamo para esta conversa o professor e escritor Nêgo Bispo (1959-2023), liderança quilombola e um dos principais intelectuais brasileiros, com sua proposta de começo-meio-e-começo registrada em poema:

“Nós somos o começo, o meio e o começo. Existiremos sempre, sorrindo nas tristezas para festejar a vinda das alegrias. Nossas trajetórias nos movem, nossa ancestralidade nos guia.”

O verso nos faz lembrar de que ciclos não se encerram, mas se reinventam e se desdobram nas tranças dialógicas do dia a dia. Se há um meio, ele é travessia; se há um começo, ele nunca é absoluto, pois já vem carregado de memórias e presenças. 

Recomeçar é se enlaçar com “fruturos”, junção de “frutos” e “futuros” indicando que os resultados de nossas ações moldam o que virá. O conceito nos conecta ao “futuro ancestral”, colocando na roda nosso grande filósofo e ambientalista Ailton Krenak, primeiro indígena a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. 

Quando evocamos o futuro na educação, não estamos falando daquilo que podemos prever ou mensurar. Estamos tratando de resgatar ancestralidades e abrir as fendas para a imaginação radical, para os sonhos, para a criação, para a responsabilidade coletiva de seguir em conexão, para o mergulho no outro, para o devir. Construir fruturos é cultivar caminhos sem saber como vai ser a colheita, é cuidar da rega do inesperado.

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A gente também adora o frio na barriga dos primeiros dias com as turmas. É sinal que o pulso ainda pulsa. É momento de se redescobrir no encontro. Somos sempre outros quando atravessamos os portais das novas salas de aula. Ainda que já tenhamos em mente as figuras arquetípicas dos nossos estudantes, a experiência nos faz entender que eles também se reinventam no cruzamento dos saberes e nas gingas das trocas. E é essa metamorfose que nos faz seguir nos reencantando com o nosso fazer.

O historiador Luiz Simas, que também é escritor e professor, nos lembra que educação não é apenas escolaridade; é ampliação de repertório, construção de sentido e partilha do comum, que acontece em cada esquina da escola e da vida. Por isso, valorizamos as “sabências” temperadas das ruas, dos sujeitos das margens, dos conflitos dos recreios, dos nossos alunos. Vivemos tempos de muito comunicado e pouca comunidade, o que faria Paulo Freire (1921-1997) nos contar sobre como temos cultivado a desconexão entre aprender e viver, entre saber e sentir. 

Nos dias de hoje, entusiasmo tem se transformado em ansiedade. O senso de agência, que deveria ser força de criação, foi capturado pela urgência, pelo medo do fracasso, pela busca irrefreada por dopamina. Vivemos num tempo onde a gramática do ódio e do medo estreita a perspectiva, bloqueia o movimento e nos agrilhoa. O medo sufoca o futuro antes mesmo que ele possa ser sonhado. E, nesse sufocamento, abre espaço para soluções autoritárias, para a promessa de ordem, para a docilização dos corpos, que dispensa o desejo e silencia a imaginação. 

Na lida cotidiana com tantos estudantes sedentos de futuros, precisamos desafiar essa gramática afetiva do ódio e do medo e colocar na gira a crença em novas possibilidades narrativas. Precisamos esperançar.

Professor da Universidade de Artes de Berlim (Alemanha), o filósofo ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han nos fala do espírito da esperança, um impulso que não é ingênuo nem conformado, mas ativo e movente. A esperança não é um estado de passividade otimista, nem uma ilusão confortável de que tudo dará certo. 

Aliás, nessa encruzilhada educativa, não cabem os coaches de sucesso, os otimistas tóxicos que não arriscam nada, porque estão aprisionados à própria alegria: eles acreditam que o curso das coisas se resolverá por si só. Também não deveriam entrar na roda os pessimistas crônicos, pois eles tendem a ter uma resistência arrogante à diferença, à renovação – se fecham às possibilidades de acreditar naquilo que o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) nos contou certa vez: que esse mundo infame está grávido de outros mundos possíveis.

Se a gramática do ódio fecha possibilidades, a pedagogia do encontro e do afeto as expande. Por isso, devemos invocar a esperança para trabalhar com educação. A esperança não promete que tudo ficará bem, mas mantém vivo o desejo de caminhar, de construir, de criar. A esperança convoca o coletivo, porque sabe que nenhum futuro se faz sozinho. Se o medo desvincula, a esperança reúne. O sujeito da esperança não é o “eu”, é o nós. E num tempo em que tudo parece conspirar para nos fazer desistir, talvez o maior ato de coragem seja continuar acreditando – não na certeza de um final feliz, mas na possibilidade ininterrupta dos começos. 

Daqui a pouco, o encantamento das ruas vai invadir nossos calendários. O Carnaval tem muito de pedagógico. É festa que nos ensina sobre espaço de comunhão, sobre aprendizagem na diferença, ensina sobre pluriversalidade, insubmissão, ginga e improviso. Nos faz lembrar que temos alma. Rompe a lógica produtivista e nos recorda que há vida para além do desempenho, que o aprendizado precisa de riso, de dança, de invenção, de pulsão de vida, de DESEJO. 

Luiz Simas cita um aforismo do cantor do Império Serrano, Beto sem Braço: “o que espanta miséria é festa”. 

E se a festa espanta a miséria, que a educação seja uma grande roda – de samba, de capoeira, de conversa –, onde aprender é celebrar a potência do encontro.

Que tenhamos um ano encantado.


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