‘As escolas deveriam ser oficinas de conhecimento’
Em entrevista, o professor da UFRGS Fernando Becker diz que a sala de aula deve funcionar como ‘laboratório do saber’
por Davi Lira 22 de outubro de 2013
A escola precisa mudar. E a grande mudança que deve ser feita é a da própria concepção de aprendizagem que ela difunde no dia a dia de suas práticas. A afirmação é do professor de psicologia da educação na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Fernando Becker. O especialista é um crítico mordaz da ideia de compreensão por repetição e do tratamento do conhecimento pela via unilateral da docência – que despreza o valor do aluno e considera apenas o repasse de informações pelo professor –, ambas realidades bastante presentes na didática de educadores brasileiros. “Repetir sim, mas o que se compreendeu, não repetir para compreender. De que serve um pianista repetir cem vezes a partitura se não compreendeu a música?”, fala.
Por causa dessas ideias, Becker foi chamado a compor a lista de palestrantes da terceira edição do TEDxUnisinos, que tem como propósito divulgar boas ideias que possam inspirar pessoas, entidades e governos sobre inovações em educação. No evento – formatado sob a dinâmica de apresentações de menos de 20 minutos – o professor da UFRGS dará uma palestra sobre a importância das escolas se tornarem um ambiente com uma “cara” mais de “laboratório do saber” do que auditório, ou seja, espaços mais focados em processos que em resultados. Marcado para acontecer no dia 31 de outubro em Porto Alegre, o TEDxUnisinos ainda contará com outros palestrantes do país e também estrangeiros. As inscrições já estão encerradas, mas para quem quiser acompanhar as discussões, o evento vai transmitir on-line as palestras.
Com doutorado pela USP em psicologia escolar e desenvolvimento humano, Becker é autor de vários livros, como O caminho da aprendizagem em Jean Piaget e Paulo Freire: da ação à operação, Educação e construção do conhecimento, Epistemologia do professor: o cotidiano da escola e Epistemologia do professor de matemática. Para ele, os conceitos defendidos pelo epistemólogo suíço Piaget e pelo educador pernambucano Freire podem contribuir bastante com o debate sobre a melhoria da educação no país. “O próprio Manuel Castells [sociólogo espanhol] quando veio recentemente ao Brasil questionou com muita firmeza: ‘como é que um país que tem Paulo Freire não investe numa educação para a liberdade?!’”, disse Becker.
Então para melhor compreender as contribuições desses pensadores no contexto do debate sobre a melhoria da educação do país, além de entender de que maneira a escola poderia se tornar um laboratório do conhecimento, confira a entrevista concedida pelo pesquisador gaúcho ao Porvir:
Qual sua avaliação sobre a situação das escolas atualmente?
As escolas precisam trabalhar de maneira diferente da que trabalham hoje. Qual é o modelo, em geral, que elas usam? Aquele em que o professor expõe o conteúdo, o aluno então o copia e passa a repeti-lo. As escolas acreditam que quando o aluno copia e repete, ele copia e passa a repeti-lo. Elas precisam mudar isso, as escolas devem mirar uma didática em que o aluno saia da condição de copista e repetidor e se transforme em ator e protagonista.
Mas o que faz as escolas ainda focarem nesse modelo?
Elas ainda estão centradas em trabalhar a acumulação de conteúdos. E isso, efetivamente, não faz mais sentido. Porque os conteúdos hoje são tantos e tão variados ao alcance de um clique. Com a internet, as possibilidades de informação são infinitas. Em resumo, a escola deveria mirar a formação de capacidades, competências e estruturas cognitivas e não simplesmente a acumulação de conteúdos. Esse processo desenrola-se, obviamente, através de conteúdos significativos, mas o horizonte educacional não se esgota em sua acumulação, mas no desenvolvimento de capacidades, sobretudo de pensamento.
Que capacidades e competências seriam essas?
No fundo, são capacidades lógicas: espaço, tempo, relação causal, implicação, injunção, equivalência, etc. Quando lemos um texto é preciso que a gente consiga capturar a estrutura desse texto, sua totalidade, saber o que ele propõe, qual sua ideia central, quais são seus pontos secundários e quais são as conclusões principais, e as acessórias que legitimam a principal. Esses são alguns exemplos de capacidades que devem ser trabalhadas nas escolas. Mas infelizmente elas não são. Basta ver o número de analfabetos funcionais que possuímos. Até na pós-graduação percebemos algumas deficiências em alunos de mestrado, por exemplo. Precisamos trabalhar sob o ponto de vista da capacidade lógica do conhecimento humano e difundirmos mais o conhecimento matemático enquanto atividade matemática; mirar as estruturas comuns a essas duas disciplinas. Nossos alunos precisam desenvolver suas capacidades de organizar o mundo e de saber relacionar os fatos ao seu cotidiano. Além disso, outra capacidade extremamente importante é a escuta. Ouvir alguém e não simplesmente negá-lo, mas aprender sobre o que o outro disse, sintetizando o seu pensamento e utilizando ao seu favor, na medida em que o pensamento do outro contribuiu para melhorar o próprio.
O que é preciso fazer para estimular esse novo modelo de escola?
Os educadores precisam mudar as concepções que eles têm sobre a aprendizagem. Infelizmente nossos professores são empiristas. Eles acreditam, a grosso modo, que os alunos são uma superfície vazia e cabem a ele empurrar o conhecimento para dentro desse espaço. Essa é a concepção que está na base do ensino hoje. Encarar a criança como esponja. É um conceito primitivo, que nem plenamente é concretizado já que a escola nem sequer supre o desejo de sucção da criança, ávida por conhecimento. O quadro se torna ainda pior quando o professor abusa de sua autoridade. É preciso ao mestre se dar conta de que a criança quando chega na escola já percorreu um caminho de conhecimento fantástico, construindo as estruturas básicas do seu pensar. Logo, o professor deveria pedir licença para entrar nesse espaço e juntos construírem um novo mundo de conhecimento.
O “preconceito pedagógico” também seria uma barreira a essa construção?
Exatamente. O conhecimento começa na experiência, mas não necessariamente deriva dela, afirmava Kant. Piaget, ao contrário, afirma o valor da experiência, física ou lógico-matemática, de toda criança; desde seu nascimento, ela constrói conhecimento. Elas precisariam, no entanto, que o entorno subsidiasse seu esforço na construção de suas capacidades cognitivas para desenvolvê-las da melhor forma e com maior alcance. Os professores precisam ficar atentos a isso. É preconceituoso achar que determinadas crianças já nascem com determinadas capacidades imutáveis, que aquele aluno problemático não poderá jamais ser um aluno talentoso. Esse tipo de concepção apriorista ou inatista traz consigo um preconceito pedagógico que redunda em exclusão do aluno, praticada pela própria docência. Se o aluno não exibe talento é sinal que nasceu assim; o professor acha inútil investir nele. O prejuízo é enorme. Os professores precisam ter em mente que para os alunos aprenderem assuntos mais complexos eles precisam desenvolver determinadas capacidades antes disso, pois não nasceram com elas.
Mas como alimentar, na prática, essa nova didática?
Precisamos trabalhar em sala de aula com atividades que desafiem o pensar. Devemos instrumentalizar os alunos a trabalharem com o enfrentamento de problemas, propor atividades baseadas em projetos, em resolução de problemas de pesquisa, sempre considerando seu repertório cultural e sua vivência social. Durante todo esse processo, o professor vai propor sugestões, só que ele não vai ser o centro do processo. Quem vai estar na centralidade tão pouco é o aluno. O centro de toda essa nova lógica será a relação produzida por ambos; trata-se de um modelo pedagógico centrado na relação. É preciso difundir a ideia, conforme defendia Piaget, que ao pesquisarmos um conjunto de problemas o resultado principal não é a resposta e sim a formulação de novas perguntas.
É desse processo que se construiria uma escola com mais cara de laboratório?
Em geral, o professor tem uma péssima ideia de achar que o aluno não sabe nada, nem em conteúdo e, menos ainda, em capacidade. É preciso mudar essa visão distorcida. O professor não deve simplesmente repassar o conteúdo de matemática, cabe a ele tornar o aluno um matemático, fazer com que ele passe a pensar matematicamente. E isso não se faz somente no auditório, mas predominantemente no laboratório. É assim que deveriam ser as escolas. Uma espécie de oficinas de conhecimento, onde professores e alunos possam trocar experiências e informações e aprenderem juntos; desenvolvendo capacidades e não apenas acumulando conteúdos. Quando o educador se propõe a criar esse tipo de ambiente, pode ter certeza que ele vai se surpreender com os seus alunos. Ou seja, devemos deixar mais de lado a ideia de escola enquanto um auditório, preocupada com a comunicação de resultados, e devemos focar numa escola enquanto laboratório de experimentação, de invenções de coisas, de conhecimentos e de teste de hipóteses. O grande desafio dos professores é propor tudo isso, considerando os conteúdos escolares que devem ser trabalhados em sua prática pedagógica.
É possível afirmar que as ideias e conceitos de Piaget e Freire podem contribuir para a discussão atual sobre inovação e qualidade na educação pública?
Não tenho dúvidas quanto a isso. Basta ver alguns dos verbos mais presentes em algumas de suas obras que me dei o trabalho de catalogar. Se seguíssemos e adotássemos em nossas escolas, certamente, conseguiríamos diminuir a força do ‘copiar’ e do ‘repetir’. São eles: cooperar, descentrar-se, descobrir, compreender, inventar, construir, ultrapassar – ao contrário de impor limites –, tomar consciência, testar, sentir – os sentimentos são tão cognitivos quanto qualquer outra percepção –, refletir, experimentar, interagir – nuclear no pensamento de Piaget –, intervir, indagar, transformar, dialogar – a essência de Paulo Freire –, e finalmente: perguntar. Esses verbos designam ações, ricas e variadas, cuja tradução pedagógica ou didática desloca os objetivos da educação escolar para muito além da cópia e da repetição. É esse o caminho da autonomia, fundamento da verdadeira cidadania.