Bets nas escolas: o papel da educação financeira para alertar sobre riscos
Contra bets e jogos de azar nas escolas, professores querem estimular senso crítico dos alunos e veem na educação financeira um caminho possível para o debate
por Redação 25 de novembro de 2024
A história é repetida por diferentes professores das redes pública e particular de ensino: adolescentes passam cada vez mais tempo na escola com celulares nas mãos, apostando, seja nas chamadas bets ou nos jogos de azar. O mais famoso deles, o “do tigrinho”.
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Três professores de três escolas em três cidades diferentes de São Paulo relataram ao Porvir que se trata de uma cena que deixou de ser rara. Os docentes buscam alternativas para alertar os alunos quanto aos riscos.
“Já mostrei a eles como o mercado de apostas é desproporcional entre a empresa e o apostador. Os eventos que oferecem maior retorno financeiro para o apostador são aqueles com menor probabilidade de acontecer”, diz Deivide Nascimento, embaixador do Porvir, professor no colégio paulista Marista Glória e na Universidade Estácio, ambos em São Paulo (SP), ao explicar a lógica de seu trabalho em sala de aula com os adolescentes.
Ele exemplica: “Se houver um jogo de futebol entre Real Madrid e Bahia, é quase impossível o Bahia ganhar. Portanto, a odd (probabilidade) para quem apostar no Bahia vai oferecer muito dinheiro, mas a chance de isso acontecer é muito baixa. A pessoa aposta na esperança de ganhar esse dinheiro, mas a probabilidade é muito pequena.”
O que atrai os jovens nas bets
A combinação de idolatria, fácil acesso aos aplicativos de apostas pelo celular e desconhecimento sobre como tratar apostas como investimento deixa muitos adolescentes vulneráveis ao risco de perder dinheiro. Assim como acontece com qualquer produto financeiro — inclusive aqueles ofertados por grandes bancos —, um histórico de acertos no passado não garante ganhos futuros.
A educação financeira e o debate honesto sobre o assunto são caminhos para a conscientização desses jovens, e não uma maneira de incentivá-los ao jogo. Inclusive, alguns professores ouvidos pela reportagem pediram para não ter a identidade revelada porque já identificaram alunos que estão viciados nas apostas.
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É o caso do professor João* (nome fictício), que trabalha em uma escola pública na periferia da Grande São Paulo. Ele explica: “Muitos jovens, especialmente os meninos, estão fascinados pela ideia de ‘ganhar dinheiro fácil’. Talvez isso seja influenciado pelos ídolos que eles acompanham ou pela facilidade de acesso à tecnologia, com celulares sem nenhum tipo de controle.”
Ele relembra um episódio que ocorreu recentemente. “Um aluno entrou na sala e me mostrou a tela do celular, dizendo: ‘Professor, olha só, aperte aqui!’. Quando olhei, percebi que era um jogo do ‘Tigrinho’. Respondi: ‘Menino, você não tem idade para jogar isso!’. Mas ele retrucou, com entusiasmo: ‘Ah, professor, mas eu já ganhei muito aqui. Já fiz R$ 2 mil!’”
Para o educador, o cenário é desanimador. “Vejo muitos estudantes de 15 ou 16 anos já presos a esse tipo de vício. E não é um caso isolado: os próprios colegas comentam que quase toda a escola joga. Eu já sugeri ações à direção, como cartazes educativos, mas nada foi colocado em prática até agora”, lamenta.
Outro educador de uma escola pública do litoral paulista, que não quis se identificar, compartilha uma experiência semelhante. Em uma aula com mais de 30 alunos, ele mostrou como são calculadas as probabilidades nas casas de apostas e explicou por que os jogadores são destinados a perder dinheiro.
Atualmente, propostas pedagógicas que incluem a educação financeira no debate sobre jogos de apostas são esporádicas e descoordenadas. Em São Paulo – tanto no estado, quanto na capital –, por exemplo, não existem programas vindos das secretarias de educação que abordem o tema.
Apesar disso, iniciativas nesse sentido são fundamentais para estimular o senso crítico dos estudantes e alertá-los sobre os sérios riscos associados aos jogos de apostas.
Tecnologia e intencionalidade pedagógica
Em 12 de novembro, a proposta que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos com acesso à internet nas escolas do estado de São Paulo foi aprovada na Assembleia Legislativa.
A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados referendou proposta idêntica no final de outubro, mas o assunto ainda não foi para votação em plenário. O Ministério da Educação já se manifestou quanto à possibilidade de endossar a medida.
Pelo menos dentro da sala de aula, o professor tem papel mais didático, dizem especialistas. Não só para explicar os riscos, mas para identificar comportamentos que podem ser considerados de risco. Trata-se, portanto, da intencionalidade pedagógica e da função educacional da tecnologia, debate que o Porvir vem acompanhando em suas reportagens.
“O que a escola pode fazer é perceber quais são as crianças mais impulsivas, com maior tendência à ansiedade. São essas as pessoas que vão jogar mais. Tudo isso passa por um diálogo”, avalia Gustavo Estanislau, psiquiatra especialista em infância e adolescência pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
“Os professores conseguem identificar as crianças que estão jogando. Não necessariamente com comportamento errático, mas estão jogando. Até porque a escola é a ponta do iceberg. Se a criança ou adolescente está jogando na sala de aula, significa que fora dali está jogando muito mais”, complementa. Gustavo é pesquisador da Ame sua Mente, ONG que desenvolve projetos sociais pautados em pesquisas científicas, com foco na promoção da saúde mental.
De acordo com o levantamento ‘A study of adolescents’ knowledge, attitude and practice to gambling’ (‘Um estudo sobre o conhecimento, atitude e prática dos adolescentes em relação ao jogo de azar’, em tradução livre), do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 22% dos adolescentes entrevistados relataram ter feito sua primeira aposta em jogos de azar aos 11 anos ou menos, enquanto a maioria (78%) começou aos 12 anos ou mais.
Paara alguns pesquisadores, banir os aparelhos tem sido visto como uma prática que tende a melhorar o desempenho acadêmico do aluno. Tobias Bottger e Klaus Zierer, dois professores de ciências sociais da Universidade de Augsburg, na Alemanha, detectaram também melhoria nas relações sociais entre os alunos.
“O banimento de smartphones deve ser acompanhado de medidas educativas e ser avaliado regularmente. Isso melhora o clima social e reduz distrações em potencial. Novas pesquisas são necessárias para entender os efeitos nos resultados acadêmicos a longo prazo”, escreveram os professores no estudo “Banir ou não banir? Uma rápida revisão no impacto da proibição de smartphones em escolas no bem social e performance acadêmica.”
Oportunidade para o debate
No Brasil, professores e matemáticos veem a polêmica das bets e dos jogos de azar também como uma oportunidade para o debate. Exatamente como Deivide Nascimento, eles acreditam na possibilidade de alertar jovens quanto aos perigos matemáticos envolvidos nas apostas e aos aspectos de educação financeira envolvidos neste contexto.
“O problema com relação a adolescentes é que eles não têm maturidade para entender modelos matemáticos e até questões de probabilidade. Só vão aprender isso no ensino médio e de forma muito superficial. O caminho natural é a educação, porque esses adolescentes podem ser presas fáceis para apostas. E a gente deve dizer a eles que a casa sempre vence”, ressalta Alexsandro Bezerra Cavalcanti, matemático e professor de estatística da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande).
Outra preocupação crescente nas escolas é o uso da verba do Programa Pé-de-Meia, que oferece bolsa mensal de R$ 200 para estudantes de baixa renda, com denúncias de que a verba esteja sendo usada em apostas e bets. Em resposta a uma reportagem da Agência Pública sobre o assunto, o Ministério da Educação afirmou que “assim como ocorre com programas como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, a legislação que institui o Pé-de-Meia não estabelece restrições específicas quanto ao uso do dinheiro recebido pelos beneficiários”.
O MEC ainda reforça que o assunto é parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Também lembra que o uso responsável de novas tecnologias faz parte da Estratégia Nacional de Educação Financeira, política nacional incluída na formação de professores.
Riscos eminentes das bets
A despeito de reportagens demonstrando como a matemática comprova que quase sempre se perde dinheiro com bets, nas redes sociais são comuns os conteúdos de adolescentes a passarem a imagem errônea de que é muito fácil lucrar com jogos de azar e apostas.
“Isso influencia muitas pessoas, ainda mais os jovens, porque fazem conexão desses influenciadores com o mundo deles. O contexto de vida perfeita que é mostrado (nas redes sociais) mexe muito com meninos e meninas e se torna um grande atrativo porque se sentem obrigados a consumir produtos, gastar e experimentar tudo aquilo. E ainda há o perigo de apostar ser visto como uma profissão, uma carreira”, alerta Jaqueline Lixandrão, professora de matemática da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Não é surpresa que professores ressaltem a necessidade de educar, mas eles lembram, por experiências próprias, que esclarecer pontos de dúvida e ajudar os jovens a refletir sobre os perigos das bets pode ser mais relevante do que simplesmente proibir os dispositivos. Se pararem de apostar e entenderem questões financeiras na sala de aula, levarão isso para a vida.