Com apoio de anciãos, escola indígena valoriza cultura e território no MT
Primeira indígena a se formar doutora pela UNB, Eliane Boroponepa Monzilar conta como sua gestão envolve família e comunidade em escola do povo Balatiponé-Umutina
por Eliane Boroponepa Monzilar 3 de agosto de 2022
Como educadora e gestora, atualmente na Escola Estadual Indígena Jula Paré, em Barra do Bugres (MT), o meu trabalho tem a perspectiva de valorização e ressignificação dos conhecimentos e saberes do povo Balatiponé-Umutina, dando ênfase e dialogando com os saberes dos não indígenas.
Somos um povo que está em processo de ressignificação da nossa língua e revitalização da nossa cultura. Embora muitos na comunidade não sejam falantes da língua nativa, conseguimos tornar a língua materna obrigatória no currículo da escola. Com apoio dos anciãos que ainda estão vivos, ela está sendo repassada para as crianças e jovens, que já sabem algumas palavras e até mesmo músicas. Os professores indígenas também têm um papel fundamental, principalmente na área de linguagens, pois ensinam os alunos a produzir frases e textos na língua materna. Todos os professores da escola são indígenas e moradores da aldeia. E a maioria está se especializando no curso de mestrado da Faculdade Indígena Intercultural.
Entre as atividades de inovação que foram e são desenvolvidas em sala de aula durante a minha experiência como educadora, destaco as seguintes que me marcaram muito neste processo de ensino-aprendizagem.
Conhecer o território
Em diálogo com os estudantes do ensino médio, percebi que não conheciam o seu próprio território e transitavam pouco pela história da demarcação da terra. Quando indagados sobre a história do território Balatiponé-Umutina, os estudantes não sabiam e viram a necessidade de conhecê-lo in loco, em uma atividade de elaboração de projeto denominada “Aula de Campo – Conhecer o Território Indígena Umutina”.
Conhecemos o marco da divisa, os lugares sagrados, as aldeias antigas, bem como as aldeias que foram sendo construídas ao longo do tempo. Na ação, foi identificada a oportunidade de explorarmos as narrativas históricas dos anciões, a oralidade, a escrita sobre o ponto que é o marco histórico, a referência da divisão do território e, principalmente, estimular o sentimento de pertencimento e a reafirmação da identidade étnica e a valorização do espaço territorial.
Tivemos três momentos nessa proposta. Primeiramente, o debate e a elaboração do projeto, cronograma, organização e articulação com professores, cacique, liderança e tratorista. O segundo foi a prática, ou seja, a ida para conhecer o marco, a divisa do território e a descida de barco pelo rio Bugres (Xopô, na língua Umutina), com registros por escrito e com máquina fotográfica. Cada estudante fez o relatório dessa atividade com a ajuda da narrativa dos anciões presentes. A atividade proporcionou a exploração do conceito de território, com as histórias contadas pelos anciãos, o processo da demarcação, hectares e os recursos naturais existentes dentro do território.
No terceiro momento, realizamos a sistematização da aula de campo para a comunidade escolar por meio de seminários, cartazes, relatos das experiências e exposição de fotos da atividade. Confira a galeria de fotos:
A atividade foi um sucesso. Todos conseguiram participar e fazer uma ótima apresentação, envolvendo envolveu pais, anciões, estudantes, professores, cacique, lideranças e gestão escolar. Desde então, a proposta passou a constar no nosso Projeto Político-Pedagógico, executada durante o ano letivo. Entendemos que essa atividade de campo contribuiu, ainda, para que as novas gerações, a comunidade e a escola tivessem acesso ao conhecimento, aos saberes, valorizando o processo histórico da demarcação pelas pessoas que o vivenciaram.
Projeto Boika y Ixó
Outra atividade considerada inovadora das práticas pedagógicas executadas na sala de aula com a turma dos estudantes do ensino fundamental foi o Projeto Boika y Ixó. O objetivo dessa ação é o fortalecimento e a valorização no manejo da confecção do arco e flecha e, consequentemente, incentivar o esporte tradicional.
Para começar, a turma foi até as matas para pegar as matérias primas, que são: taquara, seriva e tucum (palmeira da qual é retirada a fibra para fazer o cordão do arco). Em seguida, aconteceram as oficinas com os anciãos, que detém o manejo da confecção dessas artes. Eles ensinaram a preparação e confecção do arco e da flecha, os estudantes ficaram empolgados e interessados. Para finalizar a atividade, realizamos uma competição do esporte tradicional denominado “Flechada”.
Tais ações visam a promoção e fortalecimento dessas práticas do saber do povo Balatiponé-Umutina, que, por alguns anos, ficaram fragilizadas. A atividade permitiu a conscientização da importância. Para a Escola Jula Paré, trata-se de momento muito importante e histórico, um trabalho construído e elaborado em conjunto com a equipe escolar: gestão, coordenadores, pais, anciãos, professores e estudantes, como podemos ver nas imagens a seguir:
Semana cultural
É importante destacar o Projeto da Semana Cultural, desenvolvido pelos professores indígenas Balatiponé-Umutina. São atividades que têm fortalecido as práticas culturais da comunidade, como a festa tradicional, realizada no mês de abril, com a semana cultural. São realizados os preparativos da dança tradicional, a preparação da tinta para a pintura corporal, ensaios dos cantos, preparação das comidas típicas: beiju, a xixa, peixe assado e a caça, confecção de trançados de diferentes formas e, no final, o dia da grande festa a apresentação das danças: Mixinose, Loruno, Yuri, Katama, Andorinha, Boika, entre outras. A juventude e as crianças já se pintam cotidianamente, cantam na língua materna, e os adultos estão envolvidos ativamente, valorizando a cultura.
Muitos conhecimentos e saberes tradicionais puderam ser construídos e reconstruídos por meio destas atividades, em diálogo com os conhecimentos dos componentes curriculares da base do ensino não indígenas. São oportunidades para conhecer mais sobre a realidade do nosso povo Balatiponé-Umutina.
A minha motivação para desenvolver essas iniciativas está no intuito de emergir, fortalecer, valorizar as práticas dos conhecimentos socioculturais e, principalmente, o protagonismo dos estudantes enquanto indígenas dentro do âmbito escolar interno e externo à aldeia.
Essas ações inovadoras estão centradas dentro da filosofia da escola e da educação escolar indígena do povo Balatiponé-Umutina.
Eliane Boroponepa Monzilar
Indígena, pertence ao povo Balatiponé-Umutina. Mora na aldeia Boropo, no Território Indígena Umutina, no Mato Grosso. Licenciada em ciências sociais pela Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso), tem especialização em educação escolar indígena pela Faculdade Indígena Intercultural. É mestre em desenvolvimento sustentável e doutora em antropologia social, ambos pela UNB (Universidade de Brasília). É professora e, atualmente, está na gestão escolar da Escola Estadual Indígena Jula Paré, na aldeia Umutina.