Como a crise climática afeta a saúde mental dos estudantes
Os efeitos nocivos causados pelo clima impactam não apenas o lado físico, como também o aspecto socioemocional dos estudantes e de profissionais da educação. A escola precisa estar atenta a essa questão
por Ruam Oliveira 29 de maio de 2024
O que o Brasil assiste ocorrer no Rio Grande do Sul ao longo do mês de maio é uma tragédia sem precedentes. Casas invadidas pela água, pessoas desabrigadas, crianças perdidas de suas famílias e um cenário de destruição causado pelas fortes enchentes que assolam o estado.
De acordo com o SOS Enchentes, 1.077 escolas estaduais foram afetadas – 579 delas, com 221.866 estudantes matriculados, estão completamente danificadas. Até a publicação desta reportagem, na quarta-feira (29), os dados atualizados do site mostravam o impacto: 391.395 crianças e adolescentes estão sem aulas, e 43 escolas estão atualmente servindo de abrigo. Somadas às escolas municipais, são mais de duas mil unidades fechadas em todo o estado.
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Entre outros pontos, o momento demanda que se tenha um olhar atento sobre a crise climática e os impactos que a tragédia pode gerar.
Experiências da infância podem ter repercussões ao longo de toda a vida, tanto em termos físicos quanto mentais. No caso de eventos traumáticos, como os experimentados pela população gaúcha, ainda mais. Para além do que ocorre no Rio Grande do Sul, as mudanças climáticas desempenham um papel importante quando se trata de observar a saúde mental.
Gustavo Estanislau, médico especialista em psiquiatria da infância e adolescência e pesquisador do Instituto Ame Sua Mente, aponta que a crise climática gera muito estresse nas pessoas, deixando-as mais à flor da pele.
“A ansiedade é um componente que também tem a ver com alerta, mas que gera preocupações com o futuro, uma antecipação de problemas, uma catastrofização das coisas, e que ao longo do tempo pode se transformar em desânimo ou em uma percepção negativa do mundo, como se as coisas não fossem melhorar”, comenta.
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As mudanças vivenciadas pela sociedade fazem com que novos termos surjam para dar entendimento às experiências vividas. Recentemente, o termo ecoansiedade tem ganhado espaço tanto dentro quanto fora da escola. Ele representa um pouco do que foi comentado por Gustavo: um medo crônico de que uma catástrofe ambiental ocorra. Geralmente, é algo que atinge crianças, adolescentes e jovens.
“Quando começa a ventar um pouco mais, algumas crianças começam a ficar mais assustadas, têm crises de ansiedade e faltam à escola porque acreditam que vai haver um ciclone ou algo do tipo”, exemplifica o psiquiatra. Por não terem os mesmos mecanismo de elaboração que uma pessoa adulta, as crianças, principalmente, tendem a ficar mais abaladas ao serem expostas à notícias de catástrofes, aponta Gustavo.
“Trazendo para o ambiente escolar, essa ecoansiedade pode gerar queda de desempenho, evasão ou isolamento. É algo perceptível quando se faz uma atividade voltada para questões climáticas e um aluno acaba ficando mais ansioso ou escrevendo informações que denotam essa preocupação maior”, afirma.
Muitas vezes, quadros de piora na saúde mental de crianças, adolescentes e jovens são percebidos no ambiente escolar. Educadores não são responsáveis por entregar tais diagnósticos; contudo, podem contribuir com essa observação e encaminhamento para profissionais especializados na área.
Impactos na vida e nas aprendizagens
“Experiências Adversas na Infância” é um conceito criado na década de 1990 pelos médicos norte-americanos Vincent Felitti e Robert Anda e diz respeito a situações estressantes que afetam a saúde e o bem-estar de crianças e adolescentes com repercussões na vida adulta.
“A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracteriza as experiências adversas na infância como fontes de estresse na infância e adolescência e enumera os seguintes eventos como parte do conjunto de adversidades prejudiciais: perdas interpessoais (morte dos pais e divórcio); ambiente familiar disfuncional (problemas de saúde mental dos pais, abuso de substâncias parental, criminalidade e violências); maus tratos (violência física, psicológica e sexual e negligências); doenças; dificuldades econômicas; violência entre pares (bullying); violência comunitária e coletiva (conflitos e guerras).” |
Fonte: Célia Regina de Andrade, em “Cadernos de Saúde Pública” |
“Mais de vinte anos desde o início desse estudo, a gente já sabe que mudanças climáticas estão dentro do conceito de experiências adversas na infância”, afirma Carolina Campos, diretora executiva do Vozes da Educação e fundadora do Movimento Aprendizagem Segura.
Ela aponta que crianças e adolescentes que vivenciam determinadas situações como a morte de um dos pais ou divórcio deles, situações de racismo, bullying e tragédias causadas pelas mudanças climáticas têm a tendência a ter vivido situações potencialmente traumáticas. “Os dados nos mostram que quatro ou mais experiências adversas na infância fazem com que as crianças tenham até 32 vezes mais dificuldade de aprender”, afirma Carolina.
“É consenso que as experiências adversas na infância são extensivas, impactantes e podem ser persistentes, com peculiaridades segundo as questões de gênero, características étnico-raciais e situação socioeconômica, as quais se sobrepõem e impõem sequências causais de risco e vulnerabilidades”, escreve a pesquisadora Célia Regina de Andrade no artigo “Experiências adversas na infância, características sociodemográficas e sintomas de depressão em adolescentes de um município do Rio de Janeiro, Brasil”, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública.
Como se debruçar sobre a questão
Com a proposta de pensar a longo prazo, Gustavo Estanislau acredita que é preciso estabelecer diálogos com educadores sobre assuntos como estresse, ansiedade e tristeza que possam estar associados às questões climáticas. “Acho que educadores têm que ter informações a respeito disso para tentar, de uma certa forma, ao menos identificar que essas coisas estão acontecendo. É importante que eles possam ter uma noção de desdobramento no processo de ensino-aprendizagem”, afirma o especialista.
Por outro lado, ele ressalta que essas situações também podem afetar a saúde mental dos educadores e é importante que o corpo gestor esteja atento a quem acolher, não apenas os estudantes.
“A escola deve ter um papel de protagonismo em entender que os traumas afetam diretamente a capacidade de relacionamentos, de comportamentos e da própria aprendizagem dos alunos. Se estamos falando de (no caso de crianças que vivenciaram situações traumáticas) de 32 vezes mais dificuldades no aprendizado, essa é uma barreira muito grande”, aponta Carolina.
Ela atua com o conceito de Escolas Sensíveis ao Trauma. Criada na década de 1990 por pesquisadores norte-americanos que trabalhavam com crianças vítimas de violência doméstica, a abordagem compreende que os traumas vividos pelos estudantes impactam diretamente no desempenho acadêmico, nas emoções e em como eles gerenciam a elas e nos relacionamentos.
“A ideia não é fazer com que a escola cuide do trauma dos alunos, mas sim que entenda que os traumas existem e que precisam ser considerados no processo de ensino-aprendizagem”, afirma.
Ela argumenta que a sociedade por si só é constituída e impactada por uma série de traumas. “Quando a gente leva essa clareza para profissionais da educação e eles entendem que o trauma é algo muito impactante no dia a dia e no trabalho deles, passam a perceber que trabalhar com isso, ter consciência e se informar sobre o trauma são ações extremamente importantes”, destaca.
“Acho que a escola precisa se envolver nesse debate – que também deve ser ampliado não só dentro do ambiente escolar, mas sobretudo no congresso – e levar isso adiante para que a gente possa ter políticas educacionais estruturadas e formar educadores para que ele se tornem pessoas conscientes, informadas, responsivas e sobretudo sensíveis ao trauma”, conclui.
O clima é tema da escola
Um estudo recente do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, apontou que o calor extremo impacta o desenvolvimento e a saúde na primeira infância. “Os seres humanos adaptaram-se com sucesso a uma vasta gama de climas, mas existem limites para a nossa tolerância e condições climáticas para além dos quais os nossos corpos não conseguem arrefecer suficientemente”, pontua o estudo.
A pesquisa também revela que as altas temperaturas estão associadas a uma função cognitiva mais lenta e à redução da capacidade de concentração. “Aprender em uma sala de aula quente pode fazer com que alunos e professores se sintam desmotivados, distraídos ou irritados. E, se as escolas estiverem desconfortavelmente quentes, os alunos ou professores podem faltar ou evitar intencionalmente as aulas”, destaca o estudo.
Este é apenas um outro exemplo de como a questão climática afeta as crianças e, por consequência, deve ser motivo de atenção das escolas.
O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), órgão do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), possui um braço educacional voltado à promoção de educação e ciência para a redução de riscos de desastres em comunidades escolares vulneráveis. Ele atua por meio do desenvolvimento de estratégias educacionais de pesquisa-ação, comunicação e mobilização para a gestão de risco e redução de vulnerabilidades a desastres.
“Como metodologia de ensino-aprendizagem, desenvolvemos diversas Jornadas Pedagógicas, que são caminhos formativos de aprendizagem, de investigação-ação-participativa e de Ciência Cidadã em Educação em Redução de Riscos de Desastres (ERRD) e Educação Ambiental Climática (EA Climática). Cada Jornada é formada por um conjunto de atividades com abordagens participativas, dialógicas e de construção coletiva, como por exemplo, estudo do meio, mapeamentos, visitas monitoradas, coleta de narrativas, entre outras”, explica Heloísa Tavares Martins, pesquisadora na organização.
A proposta do programa é fazer com que cada escola participante possa se tornar um Cemaden micro-local, ou seja, um espaço para realizar pesquisas, monitorar o tempo e o clima, compartilhar conhecimentos, entender e emitir alertas de desastres. Além de fazer a gestão participativa de intervenções com suas comunidades.
“Formar professores que estejam preocupados e compreendam a importância das mudanças climáticas é um desafio que envolve uma abordagem multidisciplinar e contínua”. Nesse sentido, a pesquisadora elenca algumas estratégias que podem ser utilizadas na escola:
- Encorajar e facilitar o acesso dos professores a cursos de atualização e aprimoramento sobre as mudanças climáticas e educação ambiental climática;
- Desenvolver currículos que integrem a temática das mudanças climáticas em diferentes disciplinas, promovendo uma compreensão holística do assunto;
- Utilizar metodologias ativas de ensino que envolvam os professores em projetos práticos relacionados ao meio ambiente, como os propostos nas Jornadas pedagógicas do Cemaden Educação;
- Promover momentos de reflexão e debate sobre as consequências das mudanças climáticas, tanto globalmente quanto localmente, incentivando os professores a se envolverem com a realidade local e a se tornarem agentes de mudança em suas comunidades;
- Estabelecer parcerias com universidades, ONGs e outras instituições que possam oferecer recursos e conhecimento especializado na área.
Os efeitos das mudanças climáticas que são sentidos em diversas localidades do Brasil e do mundo precisam ser tema de debates e de componentes curriculares das escolas, tanto de forma interdisciplinar, como em projetos dedicados especificamente ao tema, também levando em consideração o aspecto socioemocional da crise.