Como abordar a guerra em diferentes etapas de ensino  - PORVIR
Crédito: BigNazik/iStockPhoto

Inovações em Educação

Como abordar a guerra em diferentes etapas de ensino 

Professores e especialistas ouvidos pelo Porvir comentam sobre como tratar os aspectos históricos do conflito entre Rússia e Ucrânia com estudantes

por Ruam Oliveira ilustração relógio 24 de março de 2022

Era uma sexta-feira quando o professor Jair Alves Gaiga se deparou com uma entrada diferente no diário de uma de suas alunas. A atividade que ele havia pensado era que, diariamente, os estudantes pudessem escrever como estavam se sentindo, comentar sobre suas rotinas, de forma a englobar o eixo Projeto de Vida. Como um diário comum, esperava encontrar desde detalhes sobre como os alunos veem o dia a dia, a aulas na escola e o que pensam sobre o futuro. Mas foi surpreendido.

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“Estou muito triste e com medo por causa da guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Não quero que ela se encaminhe ao Brasil, pois muitos podem morrer”, dizia o texto da estudante do 6º ano. Pego desprevenido, o professor resolveu compartilhar com seus amigos em uma rede social o material, que imediatamente chamou a atenção na internet e serviu de alerta sobre como tratar o conflito com as crianças.

Não falar sobre os conflitos que hoje ocorrem entre Ucrânia e Rússia é praticamente uma meta impossível. Desde que a Ucrânia foi invadida pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, os noticiários foram inundados com informações sobre a situação e crise humanitária instalada.

De acordo com estimativas da agência de notícias Reuters, aproximadamente 20 mil pessoas já foram mortas e ao menos 10 milhões estão desalojadas. Entre imagens de casas e edifícios destruídos e à mostra na TV, bem como as dos refugiados, a escola não pode se esquivar de abordar o tema em sala de aula.

Distintas formas de abordagem 

A professora Tatiane de Lima, do Colégio Anglo Leonardo da Vinci, de Osasco (SP), a cada quinze dias separa uma aula de 50 minutos para tratar especificamente sobre atualidades. Ela dá aulas para uma turma do terceiro ano do ensino fundamental.

“Há alguns dias, durante a aula, havia acabado de acontecer o acidente nas obras do metrô de São Paulo. Enquanto folheávamos a revista que uso na aula, vimos uma notícia sobre a guerra na Ucrânia. Meus alunos logo perguntaram: ‘Professora, quando vamos falar sobre a guerra?'”, conta Tatiane.

Ela diz que, na maioria das vezes, quem puxa os assuntos são os próprios estudantes. São eles que trazem os diferentes temas para o debate sobre atualidades.

Jair Ferreira, professor de história no Colégio Pollux e no Colégio Vida, ambos em São Paulo (SP), trabalha com três ciclos de ensino diferentes: alunos do ensino fundamental 1 e 2 – do 4º ao 9º ano – e também os do ensino médio. Para cada uma dessas turmas, a abordagem sobre os conflitos foi diferente.

No caso dos alunos mais jovens, os de 4º e 5º anos, Jair usou como estratégia apresentar o que é um conflito e como essas questões envolvem muitos lados. “Eu apresentei de forma geral o conflito. Localizei a Ucrânia e a Rússia no mapa, mostrei o planisfério, apresentei o mapa da Europa e discuti como a Rússia é o maior país do mundo. Também apresentei algumas imagens da Ucrânia”, descreve.

Com essa turma de idade menor, a ideia do professor foi justamente conversar. De maneira mais livre, pontuar quais são os argumentos da Rússia para invadir a Ucrânia e o que cada país diz para defender seu ponto de vista. “Não é nada de cena de batalha, é mais para eles terem uma noção geral do que está acontecendo.”

Mapa da Euopa e da Ásia com alfinetesCrédito: samxmeg / iStockPhoto

Debate sobre a Guerra entre Rússia e Ucrânia é uma chance de aproximar estudantes da aulas de geografia e história

Sem esconder a realidade 

O psicólogo Axel Gregoris de Lima afirma que o professor não precisa necessariamente saber de todas as respostas, mas deve trabalhar o senso de realidade com a turma. Ou seja, transmitir o que está ocorrendo, não só no mundo, como também no Brasil. Ele chama a atenção para diferentes conflitos internos que ocorrem atualmente no país e que também podem ser trabalhados em classe.

Axel sugere, porém, que o tratamento do tema depende muito da idade de quem está ouvindo. Algo na linha de como o professor Jair está fazendo. O psicólogo reforça que o assunto deve ser debatido principalmente com adolescentes. “A criança não tem como mensurar ou dar significado ao que é uma guerra”, comenta.

A professora Tatiane usa de uma mesma estratégia com seus estudantes do fundamental: conversar com eles de maneira livre sobre o tema. Uma das propostas abraçadas pela turma é construir um painel de informações que ficará à disposição de todos na escola sobre o que têm sido os conflitos. “A ideia do painel é mostrar o que os dois lados estão dizendo e o que cada um deles está perdendo a cada dia. Não é sobre um estar certo e o outro errado”, comenta.

Não é uma das tarefas mais fáceis explicar o que são os conflitos para crianças pequenas. Com adolescentes, pode ser até um pouco mais fácil. Contudo, estar bem preparado para falar sobre a temática é de extrema importância.

“Com crianças mais novas, você geralmente quer seguir as dicas das próprias crianças – até o quanto elas estão vendo e ouvindo, se elas entendem as coisas que estão vendo e ouvindo, e então oferecendo a elas algumas ideias e possibilidades para como gerenciar ou lidar com suas emoções”, afirma Kathleen Minke, diretora executiva da instituição norte americana National Association of School Psychologists (Associação Nacional de Psicólogos Escolares, em tradução livre) ao site EdWeek.

No caso de Tatiane especificamente, que trabalha com crianças entre 9 e 10 anos, o receio é que o assunto em si possa gerar traumas, como o medo constante de que a guerra chegue até o Brasil – tal como aconteceu com a estudante do professor Jair Alves, retratada no início da reportagem.

Tanto Jair Ferreira quanto Tatiane apontam que é válido mostrar as diferenças geográficas entre os países e o Brasil, a fim de afastar o medo dos estudantes de que o conflito chegue aqui. “A gente acabou de sair de uma quarentena, e temos crianças já com alguns traumas como medo de perder a família, entre outros”, pontuou a educadora.

Outra questão levantada pela professora é que os estudantes acabem desenvolvendo posicionamentos equivocados como, por exemplo, determinar quem está certo ou errado nos conflitos e, com isso, passem a perceber a guerra como algo “necessário”, o que não é.

Rússia vs bandeira da Ucrânia na parede rachada, conceito de guerra entre a Rússia e a UcrâniaCrédito: IherPhoto / iStockPhoto

Mundo assiste ao redesenho de fronteiras na Europa

Contexto geopolítico 

Além de apresentar as visões e contextos dos ataques, algo que o professor Jair passou a fazer com seus estudantes do fundamental 2 foi trabalhar os conflitos por meio da cartografia. Ele usou uma sequência de mapas como o da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), da Czarina, da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), comparando com países do Pacto de Varsóvia.

Pano rápido: após a Revolução Russa de 1917 e final da Primeira Guerra Mundial, a Ucrânia foi brevemente uma nação independente, e em 1920 tornou-se parte da URSS, a União Soviética, como mostra essa matéria da CNN Brasil. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha invadiu a Ucrânia.

Em 1944, a União Soviética recuperou o controle da Ucrânia sob o comando de Joseph Stalin. A Ucrânia se tornou independente em 1991. Um detalhe importante para compor esse rápido arco é que atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, é judeu e seus parentes morreram no Holocausto.

E aqui a aula do professor Jair encontra a linha do tempo ucraniana. O educador trabalhou todo o contexto territorial de ambas as regiões, passando pela independência da Ucrânia, a situação da Crimeia, por exemplo. “Para eles não é algo totalmente novo porque desde 2014 já trabalho os conflitos”, diz. Jair também usa artigos de jornais e revistas para contextualizar suas aulas e mostrar, dentro de um contexto histórico, os fatos que levaram à situação atual nos países.

Tipos de abordagem 

O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) sugere que nestas conversas é importante compreender o que crianças e jovens sabem sobre o tema e também não minimizar ou ignorar preocupações que possam ter. Pelo contrário: essas preocupações podem ser boas estratégias para disparar conversas mais profundas e desmistificar possíveis erros.

Outra sugestão da organização é a de não estigmatizar pessoas que estão envolvidas nos conflitos. Esse tipo de combate pode gerar preconceitos e discriminação – evitar rótulos é importante.

Ao tratar do tema, é necessário se ater ao tipo de público. O professor Jair tem uma abordagem distinta com estudantes do ensino fundamental 1, do 2 e também com sua turma do ensino médio. “Eu acho que as crianças precisam saber, porque se a gente não fala, elas fantasiam muito. Eu falo a realidade, mas com uma linguagem mais simples”, afirma Tatiane.

Isso significa que é possível tratar sobre o tema em diferentes etapas do ensino, desde que respeitadas as diversidades de público.

No caso do ensino médio, o professor Jair sugere uma atividade com a criação de dois grupos: um que representasse a Ucrânia e outro que representasse a Rússia. “Eles pesquisaram o que o Putin fala, o que as Forças Armadas defendem, o parlamento, a população ucraniana e então fizemos um debate”.

O professor comenta que o importante é contextualizar os conflitos. Mostrar de que maneira eles foram construídos e se relacionam com a atualidade fazendo, inclusive, um paralelo com outros conflitos na história como a Guerra Fria e as Grandes Guerras.

O tema pode ser mote para comentar outras áreas que não necessariamente os estudantes podem fazer uma conexão imediata, como, por exemplo, a relação com o preço dos alimentos e dos combustíveis. “O conflito é lá do outro lado do mundo, mas vivemos num mundo globalizado, então afeta a gente no mesmo instante”, conclui.


TAGS

ensino fundamental, ensino médio, interdisciplinaridade, projeto de vida

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