Como eu me tornei um educador antirracista - PORVIR

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Como eu me tornei um educador antirracista

Em sua coluna de estreia no Porvir, o professor Rafael Silva, especialista em educação das relações étnico-raciais, compartilha seus primeiros passos em direção a uma prática antirracista, reconhecendo saberes negros e indígenas na escola

por Rafael Silva ilustração relógio 3 de setembro de 2025

Até a 7ª série do antigo ensino fundamental (atual 8º ano), fui bolsista e único aluno não branco de uma escola particular no Rio de Janeiro, cidade que possui mais de 50% de população negra. Mais tarde, me graduei e me tornei mestre em História. Ao longo da carreira, estive entre os poucos educadores negros nos espaços escolares nos quais trabalhei. Paralelamente, sempre consumi conteúdos sobre relações étnico-raciais e a condição do negro no Brasil.

Com esse “currículo”, acreditava que já praticava uma educação antirracista e que meus alunos, estudantes do ensino médio de uma escola privada carioca, recebiam um ensino capaz de desconstruir preconceitos e estereótipos raciais. Mas, para minha surpresa, eu estava enganado. Um episódio, em meados de 2020, foi decisivo para que eu descobrisse isso e repensasse todo o meu fazer pedagógico.

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Entre 2018 e 2020, tive o privilégio de acompanhar uma aluna nascida em Gâmbia, na África. Perto de concluir o ensino médio, ela me procurou para agradecer e me presenteou com uma camisa tradicional de seu país. Ao final da conversa, fez a pergunta que mudou minha vida profissional:

“Rafael, no currículo brasileiro, só se estudam os africanos na escravidão e os negros a partir da desigualdade social e de alguns traços culturais?”

De início, respondi: “Acho que não!”. Era a reação de quem acreditava não reproduzir esse padrão. Mas, ao ouvir seus argumentos, percebi que ela estava certa.

Na ânsia de denunciar os horrores do colonialismo e as consequências do racismo estrutural, eu acabava privilegiando narrativas, personagens e histórias eurocentradas.

Mesmo em tom de crítica, a estrutura do conteúdo seguia a epistemologia branca europeia.

A violência, a pobreza e a crueldade do sistema escravista precisam ser discutidas. Mas, se ficarmos apenas nisso, corremos o risco de reforçar estereótipos e perpetuar uma visão subalterna das populações afrodiaspóricas (comunidades negras fora da África, formadas a partir da diáspora forçada pelo tráfico transatlântico de escravizados) e dos povos originários. Além disso, essa abordagem nega ou negligencia as diversas contribuições e conhecimentos produzidos por esses grupos, tratando-os somente como objeto de estudo.

É o que a filósofa e ativista brasileira Sueli Carneiro chama de epistemicídio em seu livro “Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser”: a negação do lugar dessas populações como sujeitos produtores de conhecimento.

Uma prática pedagógica antirracista precisa ir além.

É fundamental resgatar a contribuição dessas populações nas áreas social, econômica e política, bem como valorizar suas culturas e identidades. Isso inclui trazer para a sala de aula o que o intelectual quilombola Nego Bispo, no livro “A terra dá, a terra quer”, chamou de saberes contracoloniais, aqueles que desafiam a lógica colonial (ideias e práticas marcadas pela dominação, exploração e hierarquização de povos e culturas). 

Precisamos apresentar e valorizar estéticas diversas, destacar narrativas de resistência e protagonismo afroindígena, adotar um olhar interseccional sobre a dinâmica social e contar histórias a partir do olhar dessas próprias comunidades.

O episódio com minha aluna foi um divisor de águas. Ele me mostrou que o antirracismo na educação não se resume a denunciar a violência histórica. É também sobre abrir espaço para que novas narrativas ocupem o centro do currículo e norteiem as escolhas em sala de aula. 

Inclua saberes indígenas

Vale mencionar também que essa tarefa não é de responsabilidade apenas de professores não brancos, muitas vezes vistos como especialistas no tema, o que além de injusto, sobrecarrega esses profissionais. Tampouco essa abordagem é exclusiva de professores das ciências humanas. A temática das relações étnico-raciais pode e deve permear todo o currículo escolar.

Reconhecer a centralidade das relações étnico-raciais na escola significa incluir os povos indígenas e afrodiaspóricos como sujeitos de conhecimento. Ela deve valorizar e dar visibilidade à história, às culturas e aos saberes desses povos, rompendo com visões estereotipadas ou restritas ao passado.

Os livros didáticos muitas vezes retratam os povos nativos como parte de um passado distante e em contextos geograficamente isolados, criando uma imagem de “exotismo congelado no tempo”. Essa abordagem os apresenta quase como “relíquias vivas” da contemporaneidade, dessa forma, reforça estereótipos e simplificações das diversas identidades e culturas indígenas.

A representação indígena deve superar as narrativas de passividade para refletir a complexidade e diversidade desses povos ao longo da história, suas estratégias de resistência e aspectos da vida contemporânea. Para isso, pequenos boxes ou espaços como “saber mais”, muito comuns em livros didáticos, não são o suficiente. 

Por isso, crie espaços em sua aula para dar representatividade e protagonismo às comunidades indígenas. Há uma enormidade de produções indígenas na atualidade, podcasts, filmes, livros infantis e adultos. Aproveite para apresentar os autores e produtores dessas iniciativas e suas diferentes comunidades e territórios. 

Olhar para trás e reconhecer esse processo de transformação foi fundamental para que eu entendesse que ser um educador antirracista é um exercício contínuo, que exige afeto, humildade e estudo a partir da revisão constante de nossas referências acadêmicas.

A pergunta da minha aluna me mostrou o quanto nossas escolhas em sala de aula importam e como podemos, muitas vezes sem perceber, reforçar estereótipos. Mais do que conceitos, esses materiais contracoloniais nos ajudam a fortalecer práticas e saberes capazes de construir estudantes antirracistas. 

Não sabe por onde começar? Segue abaixo uma dica simples, mas que faz toda a diferença para uma abordagem antirracista a partir de saberes e pedagogias indígenas. 

Podcast “Caminhos de Abya Yala”, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ

Produzido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), o podcast aborda histórias, culturas e saberes dos povos originários e latino-americanos. Com entrevistas e reflexões, promove o diálogo entre filosofia, política e diversidade cultural. A proposta é ampliar a compreensão de Abya Yala como território vivo de resistência e de produção de conhecimento.

Podcast “Floresta no Centro”, do Instituto Socioambiental

Criado pelo Instituto Socioambiental (ISA), o podcast traz histórias e debates sobre a Amazônia e os povos que nela vivem. As conversas revelam desafios ambientais, culturais e políticos ligados à floresta. O objetivo é aproximar o público urbano da realidade amazônica e reforçar a importância da preservação socioambiental.

Livro “O amanhã não está à venda”, de Ailton Krenak

Esta é uma coletânea de reflexões do líder indígena sobre crises ambientais e sociais. Krenak defende uma mudança de consciência coletiva e critica o modelo de progresso que ameaça a vida no planeta. A obra propõe a urgência de outros modos de existir e resistir.


Série documental “Gentes do Xingu”, desenvolvida pelo Coletivo Kuikuro de Cinema

Produzida por cineastas indígenas, a série retrata o cotidiano e os rituais dos povos do Xingu. Valoriza o olhar de dentro, fortalecendo a memória coletiva e dando protagonismo às comunidades.

Canal “Povos Indígenas no Brasil”, do Armazém da Memória

Espaço digital dedicado à divulgação de vídeos sobre a vida, as lutas e os conhecimentos dos povos indígenas. O canal preserva registros históricos e atuais, contribuindo para a memória e visibilidade das comunidades.

Livro “O Karaíba: uma história do pré-Brasil”, de Daniel Munduruku

Romance histórico que narra a chegada dos europeus às terras indígenas a partir da perspectiva dos povos originários. Munduruku resgata memórias e histórias para valorizar a ancestralidade e confrontar a visão dominante da colonização.

Livro “Kadu, o pinóquio”, de Lana Claice Potiguara

História que apresenta às crianças elementos da cultura indígena, unindo imaginação e identidade. Por meio da trajetória de Kadu, a autora promove valores de respeito, diversidade e pertencimento.

Livro “Txopai e Itôhã”, de Kanátyo Pataxó

Narrativa voltada para os pequeninos, o texto explora a amizade entre duas crianças pataxó, revelando tradições, brincadeiras e saberes de seu povo. A obra incentiva o reconhecimento da infância indígena e da riqueza cultural dos povos originários.


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Coluna Rafael Silva, educação antirracista

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