Creche em Manaus ensina e aprende com crianças e famílias da Venezuela
Ao receber crianças venezuelanas e indígenas do povo Warao, professora de creche manauara cria projetos que envolvem famílias, parceiros e trocas culturais na comunidade
por Maria Raquel Souza dos Santos 14 de agosto de 2023
2022 foi um ano emblemático para as escolas de Manaus (AM) com a chegada em massa da comunidade imigrante venezuelana. A grave crise econômica, política e social da Venezuela resultou no que se aponta como o mais intenso deslocamento forçado da história recente da América Latina. Manaus é a segunda cidade do Brasil que mais acolheu venezuelanos, atrás apenas de Curitiba (PR): são mais de 40 mil pessoas do país vizinho que chegaram ao Amazonas em busca de segurança alimentar e novas expectativas de vida.
Muitas crianças na idade pré-escolar migram com essas famílias; outras nascem já em solo brasileiro. Elas têm chegado às creches públicas municipais da cidade (com maior intensidade entre 2020 e 2022) e são admitidas de acordo com a máxima constitucional que garante a educação “como direito de todos e dever do Estado”.
Meninos e meninas trazem consigo sua pluralidade cultural, costumes, falas e percepções de mundo. E fizeram com que o nosso trabalho na Creche Municipal Magdalena Arce Daou, que atende 196 crianças de 1 a 3 anos, no maternal 1, 2 e 3, ganhasse uma nova ótica ao conceber a primeira infância na contextualização do refúgio.
Mesmo tão pequenas e ao mesmo tempo, ambientalizadas em duas culturas simultâneas em tão curto tempo de vida, entender como acolher bem essas crianças foi desafiador. Recebemos, também, crianças indígenas do povo Warao (segunda maior etnia indígena da Venezuela).
Diante das adversidades, a instituição se reorganizou para atender a todos os envolvidos no processo educacional. A primeira medida foi oferecer escuta ativa às famílias, em especial às refugiadas, formadas principalmente por mães solo e desempregadas. A creche se localiza no bairro Santa Luzia, área de grande vulnerabilidade social, que sofre consequências de tráfico de drogas, enchentes e mendicância, por isso a ação com diferentes setores tem sido fundamental para o acolhimento.
Nesse cenário, criei o projeto “Das Arepas ao Tucumã: uma proposta intercultural de cidadania em ambiente de creche”, que foi abraçado pela gestora Jucilene Seixas de Carvalho e pela coordenadora pedagógica Maria Virginia Cunha Roque, bem como pelas demais professoras e toda a equipe escolar. A ideia central era atender à demanda social de inclusão, não só das 19 famílias venezuelanas, mas também da comunidade ali atendida. Portanto, as ações foram além das atividades com as crianças.
Passo a passo para o acolhimento familiar
Procurar parcerias gratuitas, com instituições de idiomas para melhorar a comunicação com as famílias, foi a segunda decisão tomada. Toda a equipe escolar passou a fazer aulas de espanhol após o expediente e começou a oferecer curso de língua portuguesa para os venezuelanos que assim desejassem.
Com o apoio do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas) e das organizações sociais Hermanitos e Adra Visão Mundial, foram oferecidas oficinas sobre mercado de trabalho às mães desempregadas, por meio dos encontros como os do projeto “Ven, Tú Puedes” (Venha, você pode).
Na escola, envolvemos as crianças e suas famílias em uma série de trocas interculturais. Também criamos algumas ações sociais em prol da comunidade venezuelana, com combate ativo contra situações de xenofobia e resgate da cidadania. Listo, abaixo, as atividades realizadas:
Festival das arepas
Uma dificuldade é a alimentação, pois os bebês e as crianças menores costumam resistir ao cardápio oferecido pela secretaria municipal de educação, composto com frutos e elementos da região amazônica, como tucumã e açaí. Elas pediam arepas (bolo de milho, tradicional da gastronomia venezuelana).
Fizemos, então, um intercâmbio de sabores: as mães venezuelanas ofereceram oficinas para as merendeiras e colaboradores da instituição com esse tradicional prato. As crianças brasileiras também experimentaram as arepas, e é uma pena não encontrarmos com facilidade a farinha que baseia a receita para fazermos com mais frequência, mas, pontualmente, produzimos algumas fornadas com recurso próprio.
Exposição “Territórios Babies Amazon – Cores e Mistérios”
Nela, reunimos 10 estandes na qual também fui a curadora. Os meninos se inspiraram em artistas amazonenses, como a artista visual e poeta Laís Borges e o artista plástico Lucas Pio Antony, para criar seus desenhos. As crianças Warao também se apresentaram com trajes, indumentárias e músicas tradicionais do povo indígena venezuelano. após buscarmos no Google referências de artistas da Venezuela. Carlos Enrique Diaz Acuna, por exemplo, é um refugiado que foi diretor do Museu da Universidad Central de Venezuela e hoje vende suas pinturas em Boa Vista (RR).
O elo artístico é uma maneira de mostrar a interculturalidade de forma mais palpável para a turma. Fui selecionada para um curso sobre arte contemporânea no contexto da educação infantil pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), de forma remota, e ele me inspirou a pensar nessa mostra. Assistia às aulas e compartilhava as ideias com os colegas até chegarmos à exposição.
Também visitamos museus e espaços de arte de Manaus para pensar em como realizar a mostra e torná-la visualmente parecida a um espaço de arte, pois sabemos que muitas famílias não têm meios de se deslocar. Também indico o livro “Arte Contemporânea e Educação Infantil – Crianças observando, descobrindo e criando”, de Suzana Rangel Vieira da Cunha e Rodrigo Saballa de Carvalho, para quem está em sala de aula e pensa em realizar algo parecido.
Nesse sentido, o projeto trouxe inovação para o processo de ensino, proporcionando sentimento de pertencimento nas trocas do vivido das crianças e contribuiu para a comunidade local na relação cultural. Isso impactou positivamente nos índices de evasão escolar que despencaram e passamos de uma média de 30% de evasão escolar para apenas 2 evasões no ano anterior, o que corresponde a menos de 1% do total de crianças atendidas pela instituição.
Ação social
Para celebrar os dez anos da creche, famílias, crianças e comunidade dos bairros mais próximos tiveram uma manhã de atendimento estético, vacinação e exames preventivos.
Resultados alcançados
A crise humanitária vem afetando todos os setores sociais da cidade. A educação não ficou imune. Considerar as salas referências das creches como primeiro contato institucionalizado educativo e coletivo para esses meninos e meninas é pensar em um espaço diverso e propulsor de grandes trocas interculturais. É nesse cenário que as trocas culturais do vivido emergem com maior transparência e com menor interferência externa.
O projeto foi conduzido de forma interdisciplinar, envolvendo os cinco campos de experiências do arranjo curricular para educação infantil. Todas as educadoras da instituição participaram ativamente. Os costumes, o idioma e a cultura trouxeram para nossas salas referências um mundo novo de possibilidades, alinhando-se às orientações da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que coloca o pensar e o agir da criança como centro do processo educativo, bem como enfatiza o currículo municipal da cidade de Manaus em relação ao acolhimento da diversidade cultural.
E todas as ações vão virar um livro infantil coletivo: “LuiGRANTE: O menino que veio distante”, como produto de toda essa troca vivida durante o processo.
Maria Raquel Souza dos Santos
Graduada em pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas, especialista em educação infantil e educação especial. Trabalha como professora há 18 anos, 10 deles atuando em creche.