“É preciso acreditar na escola pública, democrática e inclusiva”
Educadora do ano de 2019, a coordenadora pedagógica Joice Lamb segue inspirando a comunidade escolar e registra sua atuação – e suas memórias – em livro
por Ana Luísa D'Maschio 3 de junho de 2022
As palavras sempre foram um refúgio para a educadora Joice Lamb. A partir das conversas que tinha consigo mesma na infância, transformava-se em espiã ou viajante em frente ao espelho da mãe. Na adolescência, as agendas eram recheadas com poemas, próprios ou com trechos de grandes autores. A importância do diálogo, inclusive, a levou ao prêmio de Educadora do Ano em 2019, com o projeto #aprenderecompartilhar Escola Inovadora. Por meio da gestão democrática, os professores passaram a reavaliar suas práticas pedagógicas e valorizar o trabalho coletivo na EMEF Profª Adolfina J. M. Diefenthäler, em Novo Hamburgo (RS).
“Nunca parei de falar comigo mesma”, diz a coordenadora pedagógica. “Até hoje não passa uma palavra por mim que não seja lida de longe ou de perto”, confessa Joice, que aprendeu a ler aos 7 anos, com a professora Marli.
Para Joice, a vida começa nas lembranças – e é exatamente sobre elas que se trata o livro “A vida escrita – Memórias de uma professora”, recém-lançado pela Editora Ática. A obra é uma das que inaugura a Coleção Delas, homenageando mulheres que se dedicam à literatura e à educação. Além da biografia de Joice, o livro “Rastros e riscos: minhas memórias de leitores”, da renomada escritora infantojuvenil Ana Maria Machado, compõem o novo selo editorial.
Com um texto leve e sensível, Joice compartilha suas memórias e experiências. “Quantas vezes a gente pode ficar adulto numa vida só?”, questiona. Para ela, são três as experiências mais marcantes: ser mãe, ser chefe e ganhar o título de educadora do ano. Ela se debruça sobre os assuntos no livro, e compartilha um pouco de sua trajetória nessa entrevista ao Porvir. Confira:
Porvir – Quando surgiu a ideia do livro?
Joice Lamb – Eu sempre escrevi muito, mas coisas só minhas, guardadinhas, sem publicação. Ganhei visibilidade na mídia depois do Prêmio Educador Nota 10 e pensei que seria a hora de escrever um livro direcionado para a formação de professores e coordenadores pedagógicos. Conversei com o pessoal da Editora Ática, que me convidou para uma outra proposta, a de mulheres escrevendo suas memórias. Achei a ideia maravilhosa, poder contar um pouco da minha vida pessoal, um pouco da minha vida dentro da escola. Foi como fazer uma uma viagem de volta pra mim, como pessoa, como professora.
Porvir – É curioso descobrir que sua relação com a pedagogia começou por causa da sua paixão pelo handebol. Como foi esse processo?
Joice Lamb – Eu jogava na equipe da escola, tinha 15, 16 anos. Nosso professor era muito dedicado, queria que as alunas seguissem nos estudos, e me ofereceu uma bolsa de magistério em uma escola particular. Se eu quisesse continuar jogando, teria de aceitar essa bolsa. Fui meio por acaso. No final de 1990, prestei concurso público aqui em Novo Hamburgo e me lembro muito bem de chegar na escola, com a turma de alfabetização, e pensar: “Ai, meu Deus, daqui a pouco vão notar que eu não sou muito boa e vão me mandar para outra escola!”. Pelo contrário, fui muito bem acolhida. Fiz um curso de formação continuada e fui gostando de dar aula, entendendo que era uma coisa que eu realmente sabia fazer e que ia dar certo. Assim fui seguindo. Comecei a cursar pedagogia, mas troquei por letras e fiz especialização tanto em coordenação pedagógica quanto em gestão escolar.
Porvir – No livro, você pergunta quantas vezes a gente pode virar adulto na mesma vida. E cita três grandes marcas: ser mãe, ser chefe e ganhar o título de Educadora Nota 10. Como foi sair da sala de aula para assumir a direção?
Joice Lamb – Em 2005, houve uma eleição de diretores e, até então, todas as todas as funções de direção eram indicadas pelo secretário de educação. À época, a secretária fez uma lista tríplice, com indicados pelos professores, e eu fui um dos três nomes. Estava em licença maternidade do meu segundo filho, mas fui escolhida. Eu tinha de apresentar um plano para a escola. Era um plano ousado, de gestão democrática, de integração daquela comunidade com a escola. Quando assumi a direção, senti uma diferença imensa. Você precisa direcionar as coisas, o que você manda tem de acontecer, mesmo. Eu sempre conversei com todo mundo, contava com um espaço democrático, mas a última palavra era a minha e eu era responsável por fazer tudo acontecer. E se não desse certo, era porque eu não organizei direito… O peso foi grande, mas cresci muito, não tive dificuldade de entrar nesse papel porque eu tinha um plano para aquela escola. Ao mesmo tempo, não achava que seria tão abrupta a mudança de olhar das pessoas, de não virem mais falar comigo livremente, sabe? Mas faz parte do processo, dessa coisa de hierarquia.
Porvir – Gerir uma escola é diferente de gerir a sala de aula? Como você vê isso?
Joice Lamb – Para mim foi diferente. Claro, você tem muita responsabilidade dentro da sala de aula, mas ela aumenta consideravelmente. Fez bastante diferença eu ter sido professora de anos finais para implementar e sugerir mudanças aqui na escola. Hoje sigo como coordenadora pedagógica.
Porvir – Acessei seu LinkedIn para confirmar seus dados e por lá consta, ainda, que você é professora. Você se considera uma professora, acima de tudo?
Joice Lamb – Eu sinto muita falta de estar na sala de aula, eventualmente eu entro para cobrir um professor em licença, mas fiz uma escolha. Existe um problema de informação e de entendimento do trabalho dos gestores no Brasil, sabe? Às vezes, eles não são considerados como importantes, ou que podem ser escolhidos a esmo pela pelas pelos prefeitos ou pelo secretário de educação. Eu acho que, para transformar mesmo a educação, o meu trabalho só na minha sala de aula não ia fazer muita diferença. Apesar de que eu nunca me afastei: estou na coordenação, mas sei que o contato e o diálogo com os alunos me faz uma coordenadora melhor.
Porvir – A premiação como educadora do ano, pelo Prêmio Professor Nota 10, de 2019, vem desse seu desejo de transformar a escola em um espaço democrático, trazendo assembleias para o cotidiano, entre outros exemplos de participação ativa. Como foi implementar essa cultura?
Joice Lamb – Foi um processo coletivo. Eu sou a pessoa da equipe que mais gosta de escrever, então sempre inscrevo a escola em prêmios, faço os relatórios. Desde 2012, começamos a trabalhar com a comunidade, juntamente com professores e alunos, pensando em maneiras de melhorar a nossa escola em todos os aspectos. Nós nos inscrevemos algumas vezes no prêmio com outros projetos individuais, mas em 2019 decidimos mostrar como a proposta pedagógica da escola, como um todo, funcionava. Ela já era chamada de aprender e compartilhar, intercruzando projetos como se fossem uma teia, pois um depende do outro para funcionar.
Porvir – Poderia exemplificar?
Joice Lamb – As aulas de matemática são um exemplo. Os alunos chegavam ao 6º ano e diziam que parecia que a professora falava outra língua. Eles colocaram essa queixa em assembleia. Fizemos um documento de conferência para entender como melhorar a aprendizagem e quais projetos poderiam ser feitos. Chegamos ao modelo de aprendizagem por meio de resolução de problemas, baseados na ideia de que todos nós podemos aprender matemática. Nossas propostas são voltadas para o jogo, para o cálculo mental, começando com as crianças do 4º ano. Tanto que, em 2021, tivemos 17 premiações na OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas).
Porvir – Foi uma ousadia inscrever a proposta pedagógica da escola, não?
Joice Lamb – É, eu acho que sim. Acho que era um momento de virada para que a gente pudesse dizer: “Nossa, o que estamos fazendo aqui na escola é diferente, sim, e é importante que as pessoas vejam”. Não queríamos nos sentir dentro de uma bolha, como se tivéssemos alguma mágica que fizesse os problemas sumirem. Temos aqui, mesmo depois do prêmio, as mesmas questões que todas as escolas têm com adolescentes, com famílias, com professores. A diferença é que, na nossa proposta de trabalho coletivo, a solução desses problemas vem por outros meios que são mais eficazes: a ideia de que todos são responsáveis por todos, que temos de crescer em conjunto. No momento em que venci o prêmio, representei uma classe de pessoas, os coordenadores pedagógicos. Eles são extremamente importantes na educação pública e, por vezes, não são valorizados ou não conseguem encontrar esse lugar de trabalho na escola, como responsáveis pela proposta pedagógica e resolvendo problemas.
Porvir – No livro, você enfatiza muito a preocupação e a paixão pela educação pública. O que ainda precisa ser feito para melhorá-la?
Joice Lamb – Acho que é preciso acreditar na educação pública. Falta isso. Ontem mesmo, estava escrevendo um texto para uma disciplina do mestrado no qual falo sobre como existe no senso comum a ideia de que a educação pública não é de qualidade, que escolas estão depredadas, são feias, as crianças todas são carentes os professores passam perrengue por não ter infraestrutura, não ter nada… Isso aparece o tempo todo no noticiário. E as escolas privadas? Só aparecem na publicidade. Acredito que um dos problemas da educação pública é almejar ser o ensino privado. A escola pública tem muitas características que são só da escola pública: é uma escola de comunidade, aceita todas as pessoas. Na escola privada, os alunos já têm um perfil já meio desenhado e aqui, não. A diversidade é imensa.
Porvir – E a escola pública deve ver essa diversidade como qualidade.
Joice Lamb – Sim! Deve abraçar essa diversidade e torná-la uma qualidade, não um defeito. Enquanto negamos esse esse lugar da escola da diversidade e queremos transformá-la em uma coisa formatada, com um método de ensino formatado, perdemos. Não significa que não deve haver estrutura ou que os professores não devem ser bem pagos. Quando as pessoas falam que estão tentando achar uma solução para a escola pública, não se trata só de melhorar a infraestrutura e pagar melhores salários. Elas estão falando em método de ensino, que o professor não sabe ensinar da maneira adequada e, por isso, a escola pública é ruim – e a rocha cai em cima dos professores. A escola pública é perpassada por um universo de necessidades dos estudantes que não aparecem em outros lugares. As carências dos alunos são muito cruas, elas batem na nossa porta o tempo todo e a escola não pode negar isso, ou jogar para debaixo do tapete.
Porvir – O que deve ser feito, então?
Joice Lamb – É preciso abraçar essa problemática toda por meio do trabalho coletivo, da gestão democrática, transformando a escola como tentamos fazer. Não há como transformar tudo, mas a nossa busca é por uma uma escola pública democrática e inclusiva. Não digo que busco uma escola pública de qualidade porque eu acho que essa palavra, qualidade, já ficou contaminada. As pessoas olham para a escola pública e dizem que ela não tem essa qualidade. Então eu sempre digo que eu busco por uma escola pública democrática e inclusiva.
Porvir – Qual seria a sua sugestão para quem põe o pé na escola pela primeira vez nesse ano pós-pandemia, seja como professor ou como diretor? Quais os desafios?
Joice Lamb – Poderia dizer muitas coisas, mas a principal é: é preciso ter escuta. Não só ouvir. Precisamos ter uma escuta ativa do que as pessoas estão sentindo. Todo mundo está precisando dizer o que sentiu, o que passou. Um professor está no controle de um grupo e precisa saber ouvir e incorporar o que se está dizendo no dia a dia da sala de aula. Não dá para fazer de conta ou jogar para o lado tudo o que foi sentido. Em relação ao conteúdo, é preciso criar maneiras de criar empatia entre todos, não só do professor para os alunos, mas também entre eles. Voltamos à escola tendo de reaprender muitas coisas: as crianças que entraram não sabem como é a cultura da escola, precisamos retomar as práticas. Temos de refundar nossas referências e ideias para poder ir em frente.