Educação antirracista: 6 cidades inspiram práticas para efetivar a Lei 10.639
Levantamento do Geledés Instituto da Mulher Negra e do Instituto Alana reúne experiências exitosas das redes municipais de ensino em Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR)
por Ana Luísa D'Maschio 20 de fevereiro de 2024
Quando se fala em educação antirracista, como superar a ausência de formação e a falta de planejamento em torno do assunto? Seis municípios brasileiros vêm ultrapassando tais desafios para implementar a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Tais práticas são o foco da segunda etapa da pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”.
Lançado nesta terça-feira (20), o estudo qualitativo é realizado pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana. Clique aqui para fazer o download.
Esta segunda etapa do levantamento foca em trabalhos sólidos que vêm sendo realizados nas cidades de Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR). Os municípios foram escolhidos por se destacarem na primeira parte da pesquisa (quantitativa), apresentada ao público em 2023. Eles foram na contramão do resultado principal: das 1.187 secretarias municipais de educação ouvidas, 71% das cidades não cumprem a lei.
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“A fase qualitativa traz um alento, mas também serve como uma bússola. Trazer a experiência dos seis municípios permite um aprofundamento de como a implementação da lei é feita nessas localidades”, diz Tânia Portella, sócia e consultora em educação do Geledés. “Esta etapa valoriza os profissionais que mantêm a roda da educação antirracista girando, independentemente das dificuldades.”
A pesquisa conta com parceria estratégica de Imaginable Futures e apoio institucional da Uncme (União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação) e Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação).
Lições de cada cidade
Em comum, os seis municípios selecionados investem na formação continuada de profissionais da educação (equipes de apoio, professores, direção e coordenação) e na articulação com organizações e universidades. Nas salas de aula, valorizam-se aspectos da cultura, jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras, a leitura de autores e personalidades negras regionais e nacionais e a diversidade étnico-racial da turma.
Em Belém, por exemplo, desde 2021 a Coderer (Coordenação da Educação para as Relações Étnico-Raciais) é responsável por formações, produção de materiais e orientações de práticas pedagógicas. Também são realizadas formações em parceria com a UFPA (Universidade Federal do Pará), a partir do Projeto Cartografia, que também busca a efetivação de outra lei, a 11.645/08, sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena e afro-brasileira.
Já Cabo Frio conta com uma legislação própria, a Lei 3.096/19, que institui o Estatuto Municipal da Promoção e Igualdade Racial. O documento estabelece medidas que orientam as políticas públicas nas áreas de educação, saúde e cultura, bem como o desenvolvimento de materiais didáticos. Também há a seleção de um profissional chamado “dinamizador de rede”, um professor convidado pela secretaria para ser o responsável pelas ações de educação antirracista.
Em Diadema, há uma lei local que determina a “inclusão, de conteúdo programático, sobre a história da África e da cultura afro-brasileira, nos currículos das escolas públicas municipais”. Em 2012, representantes de associações dos movimentos negros criaram o Fórum de Promoção da Igualdade Racial Benedita da Silva, que fortaleceu a agenda pública e as ações políticas ligadas aos estudos das relações étnico-raciais.
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No texto de abertura da pesquisa, Nilma Lino Gomes, professora, pesquisadora e ex-ministra da Igualdade Racial, reforça que só 8% das 1.187 que participaram do levantamento na primeira fase têm algum tipo de destinação orçamentária para viabilizar este tipo de política pública e apenas 5% dizem ter uma área específica para cuidar da educação para as relações étnico-raciais.
Ela destaca: “Ao entendermos como a raça é estrutural e estruturante em nosso país, não há como discutir sobre currículo, infraestrutura, formação docente, relação escola-comunidade, avaliação e gestão, principalmente na educação pública e em uma sociedade multiétnica e multirracial, se não considerarmos que todo esse processo envolve as pessoas negras, ou seja, aquelas que representam 56% da população brasileira, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística”.
⏬Acesse a ficha técnica o resumo dos aprendizados para uma educação antirracista
Aprendizados compartilhados
A publicação se debruça em detalhar como cada município leva à escola e à sala de aula a temática antirracista. O orçamento público destinado às ações e atividades que merecem mais atenção são temas reforçados pela pesquisa. Ao final, há 10 pontos compartilhados entre as cidades estudadas para mostrar o que efetivamente funciona para colocar a legislação em prática:
1. Criação e/ou fortalecimento de equipe ou responsável para coordenar as ações
O estudo reforça a necessidade de profissionais comprometidos com uma educação antirracista que ocupem outros cargos de gestão dentro da secretaria e das escolas.
2. Previsão orçamentária para o cumprimento de ações
A pesquisa mostra a importância de prever e estruturar o orçamento para investir em formação e material de apoio: são ações que demonstram o compromisso da gestão para o cumprimento da lei, por meio de projetos mais estruturados e perenes.
3. Regulamentação em nível municipal para aproximar a lei federal da realidade do território brasileiro
Regulamentar a lei localmente é fundamental para aproximar as diretrizes federais da realidade de cada município, permitir a criação de núcleos e coordenadorias e refletir esse contexto nos projetos e instrumentos de educação, como os currículos. O relatório lançado em abril mostra que só um em cada cinco municípios respondentes possui regulamentação específica sobre o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira.
4. Coordenação da secretaria de iniciativas realizadas pelas escolas com constância, ao longo do ano, e não apenas em datas comemorativas ou em casos de racismo
O monitoramento das atividades desenvolvidas nas escolas da rede é importante para reconhecer os interesses da comunidade escolar, potencializar iniciativas existentes e fomentar a troca de experiências. Tal acompanhamento contribui para superar a abordagem episódica da educação, integrando de maneira contínua e sistemática o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira ao currículo e ao cotidiano da escola.
5. Uso de materiais didáticos que estejam de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
A composição do acervo das bibliotecas escolares precisa contemplar títulos que abordam as relações étnico-raciais, subsidiando a atuação dos professores e ampliando o repertório — um dos caminhos para isso, por exemplo, é o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). As diretrizes curriculares devem prever o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira ao longo do ano, e os currículos devem considerar a diversidade das escolas e garantir sua autonomia.
6. Formação de professoras e professores, gestão escolar e demais profissionais da educação que atuam diretamente na comunidade escolar
A falta de conhecimento sobre como aplicar a Lei 10.639/03 e a resistência de profissionais da comunidade escolar estão entre os principais desafios para a sua implementação. Nesse sentido, a oferta de formações específicas e continuadas pelas Secretarias Municipais de Educação é essencial para a sensibilização, conscientização e instrumentalização dos profissionais dentro da escola.
7. Realização de diagnóstico junto às escolas para identificar os desafios e as práticas já realizadas na rede
A realização de um diagnóstico da rede em relação à implementação da Lei 10.639/03 é um passo importante para uma atuação efetiva das secretarias. Esse processo permite avaliar o grau de aplicação da lei pelas instituições educacionais, identificar os desafios enfrentados, divulgar práticas exitosas e elaborar planos de ação ajustados à realidade da rede. Assim, é possível definir estratégias direcionadas a escolas e grupos específicos.
8. Uso de dados qualificados e uso de indicadores educacionais por raça e cor para orientar as políticas educacionais no município
A produção e o uso de dados qualificados para a formulação de políticas educacionais são fundamentais, e observá-los a partir do recorte racial pode ser transformador. É importante prever a coleta das informações de raça e cor e garantir a autodeclaração de crianças e famílias nos cadastros educacionais. Apenas com esses dados disponíveis é possível gerar evidências para a realização de políticas públicas mais assertivas no combate ao racismo e redução de desigualdades.
9. Engajamento dos profissionais da educação e diálogo com familiares e responsáveis, especialmente os que ainda não estão comprometidos com o tema
Diretores escolares e coordenadores pedagógicos comprometidos com a implementação da lei dão condições e criam um ambiente propício à sua aplicação efetiva. Em escolas onde esses profissionais têm um conhecimento aprofundado sobre educação étnico-racial, a abordagem é mais consistente. A gestão apoia os professores, aumentando a probabilidade de que toda a comunidade escolar desenvolva consciência sobre questões raciais. Boas experiências também envolvem os estudantes no desenvolvimento de discussões e práticas antirracistas dentro das escolas, via criação de comitês ou comissões de alunos.
10. Realização de parcerias com outras entidades, organizações, universidades e representantes de movimentos negros
As parcerias são importantes para assegurar condições de implementação da legislação, considerando a diversidade de contextos, tamanhos e capacidades técnicas das secretarias de educação. A colaboração com entidades externas, como universidades, institutos, organizações do movimento negro e órgãos governamentais, apresenta-se como uma estratégia valiosa. As universidades públicas, em particular, têm sido aliadas fundamentais, contribuindo significativamente para a capacitação de professores e o desenvolvimento de materiais didáticos. Há, inclusive, uma demanda expressa por professores por um envolvimento mais direto e um suporte mais próximo das universidades, a fim de fornecer uma base sólida e aprofundar o entendimento em temas que se sentem inseguros para abordar.
Música marca lançamento da pesquisa
O vídeo “Ubuntu, eu sou porque nós somos” é uma das ações de divulgação da pesquisa qualitativa. Lançada pela Banda Alana (iniciativa do Instituto Alana desenvolvida na zona leste de São Paulo), Silvanny Sivuca, Adriana Biancolini e Matheus Crippa, a canção focada na educação antirracista foi escrita coletivamente por crianças, educadores e equipes. Confira o vídeo: