Turma de educação infantil se une em sonho coletivo: o fim da guerra na Ucrânia
Com idades entre 5 e 6 anos, as crianças do Pré-2 da EMEI Marilda Aparecida Montemor, em São José dos Campos (SP), compartilham com ucranianos o resultado de seus desenhos e pesquisas culturais
por Cristina Helena Furtado Sarmento 10 de julho de 2023
Qual é o seu sonho? A pergunta, quando feita às crianças, pode trazer respostas surpreendentes. E ampliar a nossa prática pedagógica.
Trabalho na EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) Marilda Aparecida Montemor, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Todas as turmas do Pré-2 que fazem parte da rede municipal desenvolvem o projeto “Pedagogia Empreendedora dos Sonhos”. Além de expressar seus desejos por meio de múltiplas linguagens (fala, desenho, escrita espontânea, fotos, dramatizações, músicas, histórias, entre outras), as crianças, entre 5 e 6 anos, aproximam-se do empreendedorismo no sentido de planejá-lo, colocá-lo em ação, tornando-o algo intrínseco.
Uma das etapas do projeto é o envio de bilhetes para as famílias dos alunos, explicando a proposta e convidando-as a debater sobre seus sonhos. Na volta à sala de aula, nos reunimos em roda e conversamos a respeito. Também convido cada aluno a responder qual é seu grande sonho.
Raul foi além de qualquer pedido material, e nos deixou surpresos. Trouxe do bate-papo com os pais o desejo de ver o fim da guerra na Ucrânia. A invasão russa no país acaba de ultrapassar os 500 dias.
Muitas crianças ainda não tinham ouvido falar do conflito, tampouco debatido o assunto antes, que costuma ser distante do universo infantil. Ao justificar a opção, Raul disse que ficava triste em saber que havia uma guerra no mundo, pois muita gente estava triste. A turma toda, curiosa, não hesitou em votar no sonho de Raul, escolhendo o fim da guerra na Ucrânia como sonho coletivo. E aí nasceu meu desafio do projeto intitulado “O fim da guerra na Ucrânia”.
Como abordar um assunto tão árido com crianças pequenas? Escrevi novamente para os responsáveis, comentando a escolha durante nossa Assembleia. A adesão foi imediata. Tive que investigar e buscar informações sobre a melhor forma de abordagem do assunto e contei com a intensa parceria dos familiares durante o processo. Em casa, muitos pais faziam pesquisas sobre a cultura ucraniana com os pequenos.
Li muitas indicações na internet sobre como falar de guerras com crianças, e não expus imagens de violência ou falei sobre morte e os horrores das guerras. Busquei uma maneira lúdica para explicar que se tratava de uma briga entre dois países, comparando com uma briga entre duas pessoas.
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Em sala de aula, construímos um mapa mental (passo a passo detalhado ao final do texto), a partir de perguntas disparadoras:
- Qual é o nosso sonho?
- O que precisamos saber sobre o nosso sonho?
- Quem poderá nos ajudar?
- O que faremos (ações para a realização do sonho)
Elas decidiram fazer uma lista de sentimentos em relação a quem está passando pela guerra. Amor, medo e tristeza foram os que mais apareceram. Nos desenhos, também registraram o que haviam entendido sobre amor, amizade, união e solidariedade.
Todos manifestaram interesse em saber a localização geográfica da Rússia e da Ucrânia, os hábitos e costumes da população. Em votação, decidiram que queriam saber mais sobre a cultura ucraniana, sobre a gastronomia, a dança e o idioma. E veio deles uma proposta: será que há ucranianos morando em nossa cidade? Eles poderiam nos visitar?
(Clique na imagem abaixo para ver a galeria de fotos)
Novamente, voltei a pesquisar. Entrei em contato com uma igreja que envia missionários ao mundo inteiro, inclusive à Ucrânia. E descobri que havia um grupo de ucranianos na cidade! Conversei com os missionários, convidando os estrangeiros a visitar a escola.
Foram quatro meses de negociação e preparo das crianças, ainda mais entusiasmadas com a visita. Elas queriam entrevistá-los e entregar pessoalmente as cartinhas de solidariedade e de amizade que fizeram. Nosso acordo era não falar sobre a guerra e suas perdas, mas sim sobre o que mais gostavam no Brasil, se já conheciam outra cidade além de São José, qual comida brasileira se tornou a preferida.
Também preparamos pinturas, produzimos bandeiras ucranianas e brasileiras. A turma escolheu algumas frases para se comunicar com os estrangeiros e, aos poucos, toda a escola passou a treinar ucraniano:
Bom dia – DOBROHO RANKU
Bem-vindos! – LASKAVO PROSYMO
Obrigado por virem! – DYAKUYU SHCHO PRYYSHLY
Foi um prazer! – TSE BULO ZADOVOLENNYA
No dia 9 de novembro de 2022, preparamos o café da manhã especial para nossos convidados: três famílias ucranianas vieram nos visitar. Contamos com um apoio de um intérprete voluntário, que nos ensinou, ainda, que os ucranianos também falam russo: ambos os idiomas são falados na capital, Kiev, e que existem alguns dialetos que diferenciam uma região da outra.
Apresentei cada etapa do projeto, e as crianças entregaram desenhos, cartas e entrevistaram os visitantes. Elas também cantaram “Sal da Terra”, de Beto Guedes, uma música que convida à reflexão sobre o resgate de valores humanitários, como união, paz e cuidado com o planeta. Nossos ensaios duraram quatro semanas.
Ao final, eles decidiram dar um “abraço de amor” nos convidados. Não consigo encontrar palavras para descrever o momento tão especial e caloroso. Todos nós choramos, emocionados. Nem fotos conseguimos tirar!
Resultados
Como resultado, estreitamos laços de amizade e engajamento com muitas famílias. A conversa sobre importantes valores universais, como união, empatia, tolerância e paz também passaram a ser rotineiras na sala de aula, despertando o potencial das crianças para a investigação.
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) determina cinco campos de experiência para a educação infantil, voltados à aprendizagem e ao desenvolvimento pleno dessa fase. Todos fizeram parte do projeto, em especial as competências “O eu, o outro e o nós”, “Escuta, fala, pensamento e imaginação”. Também incluí várias etapas com muitas das propostas sugeridas pelos alunos, uma vez que valorizamos muito o protagonismo nessa fase. As atividades passaram por diferentes áreas, história, geografia e atualidades, bem como a aula invertida, quando as crianças levaram a pesquisa para casa.
Bruna Costa, mãe de Ana Clara, contou à reportagem publicada no site da Prefeitura de São José dos Campos que ficou encantada com o projeto. “Minha filha amou a experiência. O que ela mais gostou foi de cantar para eles. Achei a ideia fantástica de demonstrar a realidade difícil que nossos irmãos estão passando e recebê-los com a doçura e a pureza das crianças”.
O pai de Eloá, Richard Sutter, comentou que as aulas também influenciaram a rotina da família. “Gostamos muito, pois nossa pequena se mostrou super interessada na cultura do país. Agora, quando acorda, nos saúda com Dobroro Hanku (bom dia) e quando chega a recebemos com Laskavo Prosymo (bem-vinda).”
Davi ficou feliz em saber que “os ucranianos se apaixonaram pela música que cantamos”. Já Nicolas adorou brincar e conversar com os estrangeiros. “Aprendi que eles gostam do Brasil e que também não podemos falar só de guerras, mas de amor e paz.”
Uma das convidadas ucranianas é pedagoga e, ao final da apresentação, veio conversar comigo. Disse ter ficado impressionada em ver como escutei as crianças, como elas participaram de cada etapa do projeto e que ela nunca tinha visto uma iniciativa parecida, voltada à autonomia das crianças. Juntos, todos aprendemos com o projeto.
O projeto foi dividido em etapas, usando diferentes metodologias e estratégias: |
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1. Promover várias rodas de conversa. 2. Instigar as crianças a conhecer o sonho de outras pessoas e de funcionários da escola. As crianças devem elaborar um convite da entrevista a um funcionário da escola, escolhido por elas, sobre seus sonhos. Elas também ajudam a organizar o espaço para recebê-lo. 3. Preparar a “Assembleia dos sonhos”. Neste momento, a turma escolhe o sonho coletivo. 4. Desenvolver o projeto. Conversar sobre as ações que serão desenhadas. 5. Construir mapa do sonho. A professora perguntará às crianças: Qual nosso sonho? O que precisamos saber sobre nosso sonho? Quem poderá nos ajudar? O que faremos? (ações para realização do sonho). 6. Observar e registrar as práticas e as atividades ao longo de todo o processo. 7. Elaborar materiais. Pinturas, cartas de apoio e amizade, bandeiras ucranianas e brasileiras. 8. Seguir pesquisando. Buscar informações e contatos para conversar com os ucranianos e convidá-los a irem à nossa escola em data pré-estabelecida. 9. Elaborar a entrevista. O que será perguntado no dia da visita dos ucranianos? 10. Selecionar música. Escolher uma canção que fale de paz para cantar para os ucranianos. 11. Planejar o café da manhã. Elaborar uma lista de alimentos para o café da manhã típico brasileiro para recebermos os convidados ucranianos. 12. Escolher frases. As crianças selecionaram frases no idioma dos convidados, para aprendermos todos juntos, e falarmos no dia da visita. 13. Organizar a recepção no dia da visita. Professora e crianças organizam a sala para receber os convidados. 14. Conversar sobre a visita. Registrar as falas sobre suas emoções e o que mais gostaram de aprender. |
Cristina Helena Furtado Sarmento
Graduada em Relações Públicas, Pedagogia, Letras e Artes Visuais. Pós-graduada em Alfabetização e Letramento e em Psicopedagogia. Tem experiência com ensino fundamental 1 e, atualmente, trabalha na educação infantil.