Alunos de comunidade rural desenvolvem leitura e escrita por meio de crônicas - PORVIR
José Augusto Souza dos Santos

Diário de Inovações

Alunos de comunidade rural desenvolvem leitura e escrita por meio de crônicas

Projeto de professor em Paripiranga, no interior baiano, transforma alunos do ensino fundamental 2 em escritores. Inspiradas no cotidiano, as crônicas ganharam podcast e foram publicadas em livro prestes a ganhar segunda impressão

por José Augusto Souza dos Santos ilustração relógio 17 de outubro de 2023

Sou professor de língua portuguesa da rede municipal de Paripiranga, no interior da Bahia, divisa com o estado de Sergipe. Durante minhas aulas na Escola Municipal Maria Dias Trindade, localizada em uma comunidade rural, notei que os alunos tinham dificuldade em realizar atividades de interpretação de texto, de ler considerando a pontuação e a entonação – e ainda de se expressar na oralidade para opinar, questionar ou mesmo participar de uma roda de leitura coletiva. Diante disso, compreendi que um projeto de leitura, a partir de um gênero que fosse atrativo para eles e que lhes permitissem refletir sobre a realidade em que viviam, poderia abarcar todas as necessidades da turma em relação à aprendizagem de leitura e escrita.

Nasceu, então, o projeto “Crônicas do meu lugar”. A partir da escolha da crônica como gênero textual e do foco no ensino de língua portuguesa, o projeto considerou os seguintes aspectos: a realidade dos alunos como temática das produções, a leitura para a vivência do gênero e a escolha do produto final do projeto, que ganhou forma em uma coletânea digital das crônicas e na versão impressa em livro, em 2022.

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Iniciei as atividades em 2019, com a turma do 9º ano. Tudo começou quando propus aos estudantes que lessem crônicas de grandes escritores brasileiros, como Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo. Começamos com roda de conversa sobre as leituras feitas e suas impressões, para prever o que eles já sabiam sobre crônica. Foram participações tímidas.

Então, apresentei-lhes o desenho do projeto: a princípio, disse que era uma ação de incentivo à leitura e à escrita. E pedi dicas de temas, assim, eles já se sentiriam responsáveis pelo seu desenvolvimento. Como a escola é satélite, ou seja, recebe alunos das comunidades vizinhas, recebi sugestões diversas, sempre ligadas a questões sociais, como depressão e ansiedade, até mesmo os impactos das derrubadas de árvores e queimadas, algo muito recorrente em nossa região.

Na aula seguinte, levei para a turma uma atividade de leitura, interpretação e escrita para diagnosticar as dificuldades dos alunos. Após esse exercício, analisei as atividades, mapeei os principais problemas de escrita e corrigi, com eles, na lousa, questões relativas à ortografia, concordância entre os termos, aspectos formais e informais na escrita, além de aspectos organizacionais do texto, como a ausência de parágrafos. Constatei aqui o primeiro grande desencontro entre a leitura e a escrita dos estudantes, pois até os que liam bem tinham uma escrita frágil.

A partir deste diagnóstico sistematizado, resolvi centrar as atividades no gênero em estudo, no caso a crônica. Foram muitas atividades para sanar as dificuldades supracitadas, até eu perceber que o avanço não era o esperado. Intensifiquei as atividades de leitura, sempre chamando a atenção para a expressividade do texto, observando pontuação, o tom do texto, entre outros aspectos.

Também ressaltei os objetivos do projeto:

  • Incentivar os alunos de uma turma de nono ano para o exercício da leitura de fruição e a escrita autoral;
  • Ler, considerando elementos de entonação e expressividade; 
  • Grafar a língua conforme a norma padrão, reconhecendo suas variações e as diferentes situações de uso da língua formal e informal;
  • Reconhecer, por meio da escrita autoral, os papéis sociais do autor e do leitor, além da finalidade e do campo de atuação do gênero escrito;
  • Conhecer o gênero crônica, as marcas linguísticas do gênero e autores cronistas;
  • Ressignificar o ensino de língua portuguesa para o uso social desta, tendo como aporte os eixos oralidade, leitura e escrita.

Seguindo a rota, convidei-os a um passeio pelo gênero crônica a partir das indagações: Que gênero é  este? Pensando nas leituras que fizemos, que características desse gênero é possível destacar? Por que será que tantos autores se dedicaram a escrever crônicas? Em qual campo de atuação podemos encontrá-las? A participação deles nesta conversa foi bem mais significativa, e, juntos, percebemos como esse gênero está presente no nosso dia a dia.

Cientes dessa presença e de sua finalidade, lancei novos questionamentos em sala: Quais fatos vocês acham que podem ser noticiados em sua comunidade, ou seja, o que poderia virar notícia? Logo vieram as contribuições, voltadas às várias situações que acontecem ou aconteceram na comunidade, umas engraçadas, outras socialmente críticas… Diversos tons embalaram nossa prosa naquela aula. Naquele instante, iniciamos uma nova etapa no projeto: a escrita autoral de crônicas.

No vídeo a seguir, você confere o passo a passo do projeto:

Estudantes autores e protagonistas

Para a escolha dos temas sobre os quais os estudantes escreveriam, fizemos uma dinâmica bem interativa. Coloquei os assuntos pré-selecionados por eles numa caixinha e levei plaquinhas com os dizeres “curtir”, “comentar” e “compartilhar”, para que marcassem os temas (foi a forma que encontrei de efetivar a interação entre eles). Assim, percebi que os temas polêmicos (alcoolismo, estiagem, depressão e ansiedade, política) eram os mais comentados, os humorísticos (como as conversas entre vizinhas, fábulas populares) chamavam muito a atenção e, em sua maioria, compartilhados, e os líricos (como namoro na adolescência) eram curtidos por todos.

Chegamos ao encontro do aluno com a escrita autoral. Foram muitas as leituras para apropriação do gênero em estudo, somadas a escrita, revisão e reescrita dos textos, ora mediadas pelo professor, ora pelos alunos monitores, que já haviam aprendido sobre crônica e auxiliavam os colegas (prática que os levou a serem convidados para socializarem suas produções em outras escolas do município). Assim, criaram um grupo chamado de “Intercâmbio de Leitura”, percorrendo, antes da pandemia, por outras unidades escolares onde participavam de rodas de leituras com os alunos e falavam do quanto as atividades serviram para eles como uma fuga do estresse, da ansiedade e da depressão, como você pode conferir no vídeo a seguir.

Eles também contavam que os textos, escritos sobre suas realidades, fez com que saíssem do anonimato na cidade: publicamos uma coletânea digital com 24 crônicas, que podem ser lidas neste link

Os alunos buscaram os temas para suas crônicas na sua própria vivência. Socializaram as aprendizagens também com a comunidade escolar, compartilhando seus textos e a experiência vivida no projeto. Dentre outras questões, falavam da função social da leitura na vida de uma pessoa. 
Alguns deles participaram de uma formação para professores de língua portuguesa a convite da coordenadora pedagógica do município de Paripiranga, Gilza Andrade Cruz. Na conversa, explicaram como foi motivador o estudo do gênero crônica, pois podiam escrever sobre o dia a dia deles.

Em 2020, gravamos as crônicas e criamos um podcast, que você pode ouvir clicando no player abaixo:

Com a volta das atividades presenciais, publicamos, em 2022, as “Crônicas do meu lugar” no formato de livro, pela Filos Editora. Reencontrei toda a turma, que hoje está no ensino médio, e entreguei a eles um exemplar. A ação aconteceu na praça da Igreja, com apoio da Secretaria da Educação. Atualmente, estamos trabalhando para lançar uma nova edição. Gostaria muito de retomar o projeto e conseguir apoio para levar oficinas a outras escolas e fazer ações pela cidade.

Acredito que todo projeto de sala de aula, por natureza, se encaminha para a interdisciplinaridade, Não é escolha do professor que sua prática seja interdisciplinar, o próprio contexto do projeto, suas atividades nos apontam essa para tal forma. Por isso, defendo que um projeto de sala de aula tem em si uma proposta de PTO (Prática Textualmente Orientada). Assim, dialogamos com língua portuguesa, literatura, redação, ciência, tecnologia e educação artística.

Arquivo pessoal Reencontro da turma em 2022

Era um sonho meu e dos alunos poder publicar um livro que falasse das nossas escrevivências (parafraseando a escritora Conceição Evaristo). E conseguimos.

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José Augusto Souza dos Santos

Mestre em Estudos Linguísticos (Universidade Federal de Sergipe), é graduado em Letras Vernáculas pelo Centro Universitário Uniages. Professor efetivo de Língua Portuguesa da rede municipal de Paripiranga (BA), tem experiência em Ensino Superior EAD. Vencedor estadual do Prêmio Professores do Brasil 2017; Destaque estadual no Prêmio Professores do Brasil 2018; eleito como professor inovador no Desafio Diário de Inovações 2019, pelo Porvir; embaixador na Vivescer, plataforma virtual de formação integral de professores; embaixador do Criativos da Escola e autor do "Vamos Conversar" (@vamosconversar___), projeto pedagógico que hoje é política pública no município de Paripiranga e  referência no Banco de Práticas da BNCC (Base Nacional Comum Curricular).

TAGS

Dia do Nordestino, ensino fundamental, Finalista Prêmio Professor Porvir, leitura, Prêmio Professor Porvir, socioemocionais

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