Escola arranca cultura dos alunos para ensiná-los - PORVIR
Crédito: David Zacek

Como Inovar

Escola arranca cultura dos alunos para ensiná-los

Professor da Universidade de Columbia defende na abertura do SXSWEdu que única maneira de destraumatizar jovens em relação à escola é ouvi-los

por Tatiana Klix ilustração relógio 7 de março de 2017

Durante algum tempo, a tribo Dinka, no Sudão do Sul, sofreu uma epidemia de tétano, que congelava as mandíbulas dos infectados. Para que as crianças conseguissem comer e sobreviver, os integrantes da tribo arrancavam seus dentes. Posteriormente, mesmo depois do surto ter ido embora, os dinkas mantiveram a prática, não porque isso fosse essencial para as crianças, mas porque era uma tradição. Essa história foi contada pelo Christopher Emdin, professor do Departamento de Matemática, Ciência e Tecnologia da Teachers College, da Universidade de Columbia, na palestra de abertura do SXSWEdu 2017, evento que reúne milhares de educadores, gestores e empreendedores para discutir tendências na educação em Austin, nos Estados Unidos.

“Na educação contemporânea, fazemos a mesma coisa. Também arrancamos os dentes dos adolescentes para que eles recebam conhecimento. Arrancar os dentes é o mesmo que extrair a cultura deles”, afirmou prendendo a atenção da plateia que lotava o salão principal do centro de convenções onde serão realizadas mais de 400 sessões até quinta-feira. Repetindo várias vezes o bordão que é também o nome de um álbum do grupo de rap Quest – “We Got It from Here…Thank You 4 Your Service” (Agora deixa com a gente…Obrigado pelos serviços prestados, em livre tradução) –, ele endereçou um recado àqueles que chamou de inimigos da educação, por não respeitarem a cultura dos alunos: “Eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que nós éramos sementes”.

Se um estudante é brilhante na rua, mostra energia para trocar e aprender com amigos, tem referências musicais e usa metáforas, mas dorme na sala de aula, alguma coisa está errada com o sistema de ensino

Christopher é negro, colabora com pesquisas relacionadas a minorias, tem pós-doutorado em educação urbana, é criador do movimento de mídia sociais HipHopEd e autor do best-seller “For White Folks Who Teach in the Hood… and the Rest of Y’all Too: Reality Pedagogy and Urban Education (Para homens brancos que ensinam no gueto…e para todos vocês também: pedagogia real e educação urbana, em livre tradução). Ele fez um discurso crítico, mas ao mesmo tempo motivador e performático, com objetivo de transformar aqueles que têm boas intenções, mas atuam em um sistema que historicamente marginaliza minorias, em amigos da educação. “Se um estudante é brilhante na rua, mostra energia para trocar e aprender com amigos, tem referências musicais e usa metáforas, mas dorme na sala de aula, alguma coisa está errada com o sistema de ensino”, afirmou.

A receita para “deixar de arrancar os dentes dos alunos”, segundo ele, é conversar com os estudantes. Para Christopher, os jovens estão traumatizados, porque são desrespeitados continuamente nas escolas por educadores que não conhecem sua cultura. E esse desrespeito já acontecia com seus pais e avós. Lembrando episódios recentes, ele citou como não poder conversar e debater em escolas casos de negros mortos pela polícia ou de imigrantes perseguidos causa trauma em crianças. Para o acadêmico, eles se obrigam a deixar suas emoções e sentimentos fora da aula.

“Será que conseguimos ser humildes o suficiente para criar espaços em que jovens vão nos ensinar o que nós precisamos fazer?”, convocou a plateia.

Entre aqueles que não considera amigos da educação estão empreendedores que ouvem boas ideias para aprender como ganhar dinheiro com elas. Entre as críticas que expôs na palestra estão a de que não basta redesenhar a escola para torná-la super tecnológica e focar no ensino de STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em inglês) para engajar estudantes. “Muitos se escondem atrás do guarda-chuva da tecnologia e esquecem do pedagógico”, disse. A experiência escolar, para ele, deve fazer sentido para os alunos, e para isso, é preciso ouvi-los.

Projetos sem relevância para estudantes e que não se transformem em serviços para a comunidade tiram o valor da educação baseada em projetos

Tendências muito discutidas em eventos sobre inovações educacionais como o SXSWEdu não ficaram de fora dos ataques de Christopher. É o caso da educação baseada em projetos. Para ele, em escolas urbanas frequentadas por negros, há muito tempo, sempre que há uma goteira, os alunos precisam consertar o telhado e já aprendem matemática e ciências nesse processo. Hoje, no entanto, crianças estão sendo incentivadas a resolver problemas que não existem. “Projetos sem relevância para estudantes e que não se transformem em serviços para a comunidade tiram o valor da educação baseada em projetos”, afirmou.

Por fim, Christopher deu um caminho para abrir a conversa com os alunos, o hip hop, e convidou educadores a abraçarem essa cultura para promover o aprendizado dos alunos. “Não vamos mais deixar nossos brilhantes se sentirem insignificantes” afirmou. “Hip hop tem tudo a ver com excelência acadêmica”.

Nesta terça-feira, o Porvir/Inspirare promove um debate no SXSWEdu alinhado com a defesa do professor que abriu o evento. O painel Students as Education Innovators (Estudantes como Inovadores da Educação) vai discutir o papel do aluno na transformação da educação e mostrará dois casos brasileiros em que os estudantes foram ouvidos para promover mudanças.

Assista ao vídeo da apresentação de Christopher Emdin:

* Tatiana Klix, editora do Porvir, acompanha o SXSWEdu in loco. Acompanhe novidades nos próximos dias


TAGS

aprendizagem baseada em projetos, diversidade, educação integral, socioemocionais, sxswedu

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