Como escolas da “Pequena Ucrânia” brasileira lidam com a guerra
Com pouco mais de 50 mil habitantes, Prudentópolis, no interior do Paraná preserva a cultura ucraniana dentro e fora da escola.
por Ruam Oliveira 31 de março de 2022
Nem todas as pessoas podem dizer que guardam dentro de casa a história e a cultura de seus antepassados. Nem todos tiveram esse privilégio.
Mas quando o país natal de seus avós, pais e mães começa a aparecer muito no noticiário e por notícias não muito boas, ter essas raízes pode ter um significado muito diferente. É isso o que tem acontecido com muita gente de Prudentópolis, no Paraná.
Considerado a “Pequena Ucrânia” brasileira, cerca de 80% da população do município (com pouco mais de 50 mil habitantes) é composta por migrantes e descendentes ucranianos que veem nos conflitos que hoje ocorrem entre o país e a Rússia motivo de apreensão e desconforto.
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Preservação da cultura
A cidade preserva a cultura ucraniana, seja na alimentação, seja no idioma. E na escola não é diferente. O ucraniano falado em casa é também ouvido pelos corredores dos colégios.
Vera Lúcia dos Santos Baldigm, pedagoga no Colégio Estadual do Campo Imaculada Conceição, afirma que apesar de as aulas serem ministradas em português, por estarem habituados a falar o ucraniano em casa, muitos dos estudantes acabam levando isso para o ambiente escolar. Ela própria filha de ucranianos, por vezes chega a se comunicar no idioma dentro do colégio.
Localizada em uma região rural, o colégio fica a aproximadamente 60 quilômetros do centro de Prudentópolis e enfrenta uma série de problemas, como dificuldades para o transporte e conectividade.
O incentivo ao aprendizado de idiomas faz parte do universo de muitas escolas espalhadas pelo Brasil. Os CELEM (Centros de Línguas Estrangeiras Modernas) disponibilizados em algumas escolas do Paraná, por exemplo, oferecem uma variedade de idiomas como japonês, francês, espanhol, italiano e ucraniano. Em Prudentópolis, esta é a opção ofertada para os estudantes.
Vera conta que há pouco mais de dois anos a escola deixou de ensinar ucraniano dentro do currículo regular para substituí-lo pelo inglês e, assim, acompanhar o restante do estado. Apesar disso, a escola onde atua mantém o ucraniano como ferramenta de manutenção e fortalecimento da cultura por meio da língua.
O mesmo ocorre na escola de Leopoldo Volanin, diretor do Colégio Estadual do Campo Pe. José Orestes Preima, que fica em Linha Esperança, região rural de Prudentópolis. Leopoldo, que também é filho de pai italiano e mãe ucraniana, reforçou que o idioma é uma das ferramentas usadas por eles para manter viva a cultura de seus descendentes.
Lidando com os conflitos
Assim que começaram os conflitos, houve uma preocupação do corpo docente sobre como conversar com os estudantes sobre o assunto, justamente por se tratar de algo próximo a eles. O diretor diz que um passo importante foi o de contextualização da guerra. Muitos alunos, ao verem o que se passava no país do leste europeu e compreenderem o que estava sendo dito, ficavam com o emocional abalado. O professor destaca que, naquele momento, foi importante olhar para o aspecto sentimental dos alunos e conversar com eles de uma maneira mais ampla sobre o conflito.
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Além do trabalho com o idioma, as disciplinas de artes e história passaram a ser ferramentas empregadas na compreensão do que ainda ocorre entre Ucrânia e Rússia. Na primeira disciplina, a professora de artes do colégio onde Leopoldo atua, sugeriu que os alunos expressassem o que estavam sentindo por meio de desenhos.
No caso do colégio de Vera Lúcia, os estudantes preparam um mural com mensagens escritas em ucraniano, pedidos de paz e bandeiras da Ucrânia pintadas em cores vibrantes.
Uma das preocupações da pedagoga, que envolve o emocional da turma, é poder ajudá-los a entender o que está ocorrendo nos conflitos para que, ao chegar em casa, os alunos sejam capazes de explicar a situação aos pais e avós, muitos deles com pouca instrução formal e que se comunicam pouco em português.
Impelida pela curiosidade dos estudantes, foi Vera quem iniciou os trabalhos sobre os conflitos depois de perceber o quanto os estudantes ficavam ansiosos em relação ao tema. A partir disso, e em conjunto com a professora de artes, que cartazes e poemas começaram a ser produzidos por estudantes de diferentes etapas do ensino. A escola onde Vera atua recebe alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e também as três séries do ensino médio.
A relação com o país europeu é forte. Leopoldo comenta que em agosto farão a Semana Ucraniana, período em que não apenas as escolas, como também diversos outros setores da cidade, celebram a herança cultural.
As migrações da Ucrânia para Prudentópolis começaram por volta de 1896. A cidade possui mais de 100 igrejas ucranianas e, segundo Leopoldo, são elas também que atuam nesse processo de fortalecimento de uma identidade. Esse contexto social, segundo o educador, também traz sua influência.
Apesar de aparecerem muito na vida e rotina dos estudantes, nenhuma das duas escolas possui um programa específico e dedicado às questões ucranianas. Tanto Leopoldo quanto Vera destacam que os educadores ficam sempre livres para abordar a temática se assim desejarem. Como eles próprios também são, em grande maioria, descendentes de ucranianos, o tema está praticamente sempre presente.
Tratando do tema em sala de aula
Um assunto complexo como uma guerra requer sempre muitos cuidados ao ser abordado. É comum que em situações de conflitos comecem a existir estereótipos sobre os cidadãos dos territórios envolvidos. A escola pode, e deve, ser um espaço que mitigue essas visões por vezes preconceituosas.
“Há diversos elementos controversos na política do Ocidente e da Ucrânia, mas ao abordá-los deve-se ter cautela em não utilizá-los para legitimar e justificar moralmente a agressão russa contra a Ucrânia, assim como nas críticas à Rússia deve-se ter o cuidado de não idealizar ou ‘romantizar’ o Ocidente e as lideranças ucranianas”, pontua Vicente Ferraro, cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia, da USP (Universidade de São Paulo). “Uma abordagem crítica, embasada em fatos e análises de especialistas, pode auxiliar nessa empreitada”.
Para fugir do dualismo, ele comenta que é sempre importante que os estudantes sejam estimulados a pensar de maneira crítica e olhar para os argumentos de ambos os lados participantes dos conflitos com um olhar mais reflexivo.
“As professoras e professores do ensino básico têm papel fundamental na divulgação do conhecimento científico, muito atacado nos últimos anos, e na comunicação entre a academia e os jovens.”, comenta Vicente.
Svetlana Ruseishvili, professora no Departamento de Sociologia e no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)), afirma que um cuidado que educadores e educadoras devem ter é de não estimular a xenofobia e criar imagens, por exemplo, em que toda a população russa é responsável pelos atos de seu presidente atual. “Isso é uma simplificação”, conta.
“Não se pode responsabilizar individualmente os russos por crimes cometidos pelo seu governo. Isso não pode acontecer. Isso estimula a xenofobia e a discriminação. Acho que esse é o maior cuidado a tomar quando se fala sobre essa guerra”, diz a socióloga.
Svetlana ainda aponta que estimular um cancelamento da cultura russa, por exemplo, é um caminho ingênuo e nada produtivo.
Recentemente, empresas e instituições cortaram relações com a Rússia e até mesmo o consumo de grandes clássicos literários, como os do escritor Liev Tolstói, entrou na discussão se deveriam ou não continuar sendo consumidos.
Uso de notícias como suporte para a aula
A socióloga destaca que usar notícias é um bom caminho, desde que sejam articuladas e com base em dados. Um exemplo de informação que pode ser verificada é a afirmação de que a Ucrânia é neonazista. Svetlana pontua que é necessário buscar os dados que comprovem tal afirmação.
“Por exemplo, no caso dessa alegação de que a Ucrânia é um país neonazista. Não existe representatividade nenhuma dos grupos ultranacionalistas no parlamento. O presidente Volodymyr Zelensky foi eleito majoritariamente sempre foi apoiado pela população russófona [falantes do idioma russo] e não pelos que falam ucraniano”, comentou Svetlana.
Vicente também lança um alerta, quando se pensa em usar notícias em sala de aula: identificar quem são as fontes. O professor destaca que, principalmente no início dos conflitos, muitas pessoas – nem todas elas especialistas no tema – se propuseram a falar sobre a guerra e suas consequências, o que contribuiu para análises superficiais e simplistas.
“Uma estratégia para dimensionar esses conflitos é selecionar artigos de especialistas no assunto e adaptá-los para uma linguagem de melhor compreensão para crianças e adolescentes”, sugere o professor.