Estudantes veem melhora na rotina e menos distrações, mas sentem falta do celular
Para compreender a adaptação à nova rotina, o Porvir ouviu nove jovens de diferentes estados sobre os impactos da lei na vida escolar
por Bruna Ribeiro 3 de abril de 2025
Para uma geração que nasceu no mundo digital, a desconexão do virtual para a conexão com o real pode ser um desafio – ou, quem sabe, uma grande novidade. Trocar o celular do intervalo por uma partida de xadrez, pela leitura de um livro físico, um jogo de futebol ou um mero bate-papo? Este é o cenário vivenciado pelos mais de 47 milhões de alunos da educação básica brasileira neste início de ano letivo.
A mudança, que chegou com a Lei 15.100 e tem como objetivo melhorar a concentração dos alunos e reduzir os impactos negativos do uso excessivo de telas, gerou reações diversas. Entre especialistas e educadores, há um consenso sobre a necessidade de reavaliar o papel da tecnologia na sala de aula, mas também preocupações sobre a implementação da medida, em especial para os que lecionam em escolas sem infraestrutura e conexão adequadas.
Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
De acordo com o estudo “Panorama da qualidade da Internet nas escolas públicas brasileiras”, realizado pelo Ceptro.br (Centro de Estudos e Pesquisas em Tecnologia de Redes e Operações), do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), apenas 29% das escolas públicas no Brasil dispõem de equipamentos tecnológicos, sejam computadores desktop, notebooks ou tablets, para uso dos alunos. Mesmo nesses casos, há apenas uma máquina para cada 10 estudantes. E somente 11% das escolas de ensino fundamental e médio têm planos de internet com velocidade considerada adequada pela Estratégia Nacional de Escolas Conectadas.
Recentemente, a Agência Mural, agência de notícias sobre as periferias das cidades da Grande São Paulo, fez uma reportagem sobre os desafios das escolas públicas da periferia que não contam com laboratórios de informática ou computadores para oferecer acesso à internet. “As alunas e os professores com quem conversei não são contra a normativa, enxergam pontos positivos, como o aumento da interação e a diminuição das telas. Inclusive, nem sempre os alunos de escola pública têm celular, isso é mais comum em espaços com maior valor aquisitivo”, comenta Jacqueline Maria da Silva, repórter do portal. “No entanto, uma das reclamações foi justamente a chegada da lei sem uma infraestrutura para tal em um momento em que a virtualização dos conteúdos está muito presente”, destaca.
Do outro lado, o Movimento Desconecta, formado por pais e mães de escolas privadas de São Paulo, engajados na campanha “celulares só após os 14 anos” e na criação de um ambiente escolar sem os aparelhos, realizou um levantamento positivo sobre a adaptação dos alunos à legislação. A maior parte das 300 escolas particulares ouvidas avaliou que a implantação das novas regras vai bem e como poucas reclamações, conforme mostra a reportagem da revista Veja.
Para Jaqueline, com base nos relatos de seus entrevistados, a falta de um planejamento mais detalhado pode aprofundar desigualdades entre escolas públicas e privadas, pois a digitalização do ensino avançou nos últimos anos e nem todas as instituições contam com alternativas viáveis ao uso do celular.
Leia também
Perguntas e respostas sobre a lei do celular na escola
O que significa, na prática, uso pedagógico do celular?
Lei do celular: escolas relatam primeiras impressões após reorganização
O que dizem os estudantes
Entre os jovens, as opiniões variam: enquanto alguns reconhecem que a regra tem ajudado na concentração e na interação entre colegas, outros sentem falta da praticidade que o celular oferecia no dia a dia escolar. Para entender como eles estão lidando com a nova rotina, o Porvir ouviu nove jovens de diferentes estados brasileiros, de escolas públicas e privadas, que compartilharam suas experiências e percepções sobre os impactos da lei na vida escolar.
Adaptação às regras
Samily Vasconcelos da Silva e Adria Ruby Moraes Corrêa têm 17 anos e estão no 3º ano do ensino médio no Centro de Educação Integral (CEI) José de Araújo Rodrigues, em Codajás (AM). Apesar das semelhanças, as opiniões sobre a legislação são divididas. “Ainda estou me adaptando. Não gostei muito dessa lei. Ela interferiu na minha rotina porque, apesar de agora ser proibido, eu usava o celular para tarefas e pesquisas durante as aulas, além dos intervalos”, comenta Samily.
Adria já diz ter se acostumado, embora ache que o celular é indispensável em certas situações. “Após a restrição, percebi que meus colegas ficaram menos dispersos e mais comunicativos. O lado negativo é a dificuldade de falar com meus familiares, pois preciso recorrer à coordenação para usar um telefone emprestado.”
Laís Palmeiras e Julia Santana de Lima, ambas de 16 anos, também relatam certa dificuldade em ficar sem o aparelho na escola. “No começo, foi difícil, porque estamos muito acostumados ao digital, mas, com o tempo, virou costume”, conta Laís, moradora de Rio Verde (GO) e estudante do 3º ano do ensino médio do Colégio Anglo Alante Ápice.
“As primeiras semanas foram complicadas”, diz Julia. Ela está no 2º ano do ensino médio do Colégio Chromos, em Belo Horizonte. “Ainda é difícil, porque, às vezes, esqueço da regra, mas estou me acostumando. Quando penso em pegar o celular para olhar a hora, lembro que não pode.” Ao mesmo tempo, ela vê a restrição como um incentivo para sair da zona de conforto. “Eu era tímida e não interagia. Com a proibição do celular, fui forçada a conversar mais e fiz amigos.”
Impacto na concentração
Laís também destaca que o excesso de tempo em telas afetava sua saúde mental. “Me causava angústia e falta de concentração. A retirada do celular ajudou a reduzir isso. Passei a usar celular cerca de um hora por dia e o tablet para estudar”. Para a estudante, até as aulas ficaram mais produtivas. “Há mais perguntas e interação entre alunos e professores. Nos intervalos, conversamos mais e fortalecemos as amizades.”
O estudo The “online brain”: how the Internet may be changing our cognition (O cérebro online: como a Internet pode estar mudando nossa cognição, em tradução livre), publicado no World Psychiatry, jornal oficial da Associação Mundial de Psiquiatria, mostra que o uso constante da internet pode prejudicar a concentração e a atenção sustentada, ou seja, a capacidade de manter o foco em uma tarefa por um longo período, sem se distrair.
Além disso, a pesquisa indica que muitas pessoas passaram a depender da internet como uma “memória externa”, consultando informações em vez de retê-las. Esse hábito pode impactar a aprendizagem e a capacidade de resolver problemas, uma vez que a facilidade de acesso imediato a respostas reduz o esforço de memorização e raciocínio crítico.
Ana Laura relembra essa dificuldade ao afirmar que, mesmo sem o celular, a mente dos adolescentes ainda está condicionada ao uso excessivo da tecnologia. “Durante as explicações, consigo entender e anotar, mas, na hora das atividades, a dispersão ainda acontece”, relata. Isso demonstra como a dependência digital pode afetar a concentração e a autonomia no aprendizado.
Para Laís, a restrição trouxe benefícios claros. “Meu foco nas aulas e nas atividades aumentou muito. Resolvo exercícios com mais eficácia, tiro mais dúvidas e me distraio bem menos”, afirmou. Julia compartilha da mesma opinião. “Minha concentração melhorou muito. Presto mais atenção na aula, faço mais atividades e minhas notas subiram bastante comparado ao ano passado. Está sendo difícil, mas produtivo.”

Menos tela e mais interação
No CEI José de Araújo, onde também estuda Emanuela Santos da Silva, de 17 anos, os recreios agora contam com cinema e xadrez. “Seguir as regras tem sido bom porque evita problemas. Passei a interagir mais com os colegas, conversar no recreio e participar das atividades”, afirma. “Antes, muitos só queriam mexer no celular; agora, há mais contato entre os alunos”, conta a aluna do 3º ano do ensino médio.
Em Belo Horizonte (MG), Ana Laura Salles Lisboa dos Santos, estudante do 2° ano do ensino médio na Escola SEB, também concorda que a interação melhorou muito. “O foco durante as aulas dura mais”, comenta. “Mas a comunicação com os pais ficou mais difícil. Para muitos, foi uma mudança brusca sem apoio adequado”, diz a jovem de 16 anos.
Já em Brasília, Alice Thauany de Oliveira Gomes não viu diferença na interação social. “Minha turma sempre foi bem comunicativa e brincalhona”, diz a jovem de 14 anos, aluna do 9° ano do ensino fundamental do Centro de Ensino Fundamental 15, no Gama (Distrito Federal). Sua única crítica, porém, é a restrição nos intervalos, período que usava para ouvir música e ver vídeos. “O tédio nos intervalos é um desafio”, diz.
A colega de sala de Alice, Sophya de Andrade Souza, de 13 anos, concorda: “Seguir as regras sobre o uso do celular na escola tem sido tranquilo. No horário de aula, nada mudou para mim, já que nunca gostei de usar o celular em sala. Mas, nos intervalos, é um pouco mais difícil porque, querendo ou não, bate aquela vontade de mexer”.
Combinados escola-estudantes
Com o apoio técnico do Porvir, o MEC (Ministério da Educação) lançou guias de apoio para escolas, redes e famílias, com orientações para o uso crítico e seguro da tecnologia. Cada escola ficou responsável por estabelecer combinados prévios com os estudantes para implementar a legislação. Mas isso não aconteceu na maioria dos casos ouvidos pela reportagem.
“Não houve reunião com os alunos ou com o grêmio estudantil, apenas um encontro entre pais e professores, onde os responsáveis assinaram um termo de ciência sobre a proibição”, relata Samily.
O mesmo aconteceu nas escolas de Ana Laura e Alice. “A escola não nos escutou. Poderiam ter mais atividades para substituir o uso do celular”, diz. “O aparelho não é recolhido. Deve ficar na mochila e, se alguém for visto usando, o celular é confiscado”, explica Ana.
O único acordo, destaca Alice, é o cumprimento da lei por todos. “Eu não me importo de não usar dentro da sala, mas acho injusto proibir nos intervalos, principalmente para quem tem dificuldade em se enturmar”. Sophya relembra que a decisão vai além do controle dos gestores. “Não foi a escola que decidiu, foi o governo que decretou. Mas eu sugeriria que o uso fosse liberado nos intervalos”.
Para Laís, teria sido mais interessante uma conversa mais direcionada antes de confiscar os aparelhos. “Nos informaram que não podíamos mais usar os celulares e seguimos essa orientação. Mostrar dados sobre os impactos negativos do celular ajudaria na conscientização”. Para Julia, o uso deveria ser mais flexível. “O coordenador avisou no início do ano que não podíamos usar dentro da sala, mas fora dela é permitido, por exemplo, para pagar o lanche na cantina. No início, fui contra, mas depois percebi benefícios”.
Emanuela explica que reduzir o uso do celular já era uma tendência na sua escola antes mesmo da lei. “A gestora já havia proibido o uso de celulares porque alunos estavam filmando desentendimentos e postando nas redes sociais. A escola apenas explicou que o celular fazia mal. Um dia por semana com liberação seria uma boa alternativa”, analisa.

Uso de tecnologias alternativas
Alice acredita ser justificável usar o celular no intervalo, ainda mais quando os computadores estão sem internet. “São poucas as atividades em que realmente precisamos dele, e antes só tínhamos acesso durante as aulas de informática. Mas, no momento, os computadores estão sem internet”.
Laís e Julia apontam que a tecnologia alternativa poderia ser mais incentivada. “Utilizamos para atividades em PDF e questionários online, mas a escola não incentiva muito”, diz Laís. Julia sugere que o celular seja permitido para pesquisas rápidas e destaca que prefere estudar no computador da escola.
Emanuela e Ana Laura sugerem liberar o celular para pesquisas quando a sala de informática está ocupada. Ana Laura, que estuda no CEB Unidade Serra, relata que lá a tecnologia é amplamente utilizada: “Trabalhamos com a plataforma Z, que inclui testes e provas digitais. Os professores disponibilizam Chromebooks, e o celular só é usado com autorização”.
Samily e Sophya ressaltam a importância das aulas de tecnologia, agora dependentes dos computadores escolares. “Temos poucas aulas de tecnologia, mas usamos a sala de informática para pesquisas e trabalhos com vídeos ou podcasts, com autorização dos professores”, explica Samily. “Os professores adotaram métodos alternativos, como pesquisas de campo e trabalhos em grupo”. Sophya reforça: “A escola precisa de um laboratório de informática, essencial para projetos e atividades”.
Adria e outras alunas acreditam que o celular deve ser usado apenas para pesquisas acadêmicas. “As aulas de tecnologia são raras e focadas em pesquisas e apresentações. Acredito que essas atividades poderiam ser feitas diretamente no computador”, opina Adria, estudante de Codajás.
Equilíbrio e aprendizado
O desafio, portanto, está em encontrar formas de integrar a tecnologia ao ensino sem comprometer a atenção e o desempenho acadêmico dos alunos. Essa é a opinião de Laís. “A tecnologia deve ser usada para ampliar conhecimentos, evitando distrações desnecessárias”, afirma.
Julia acredita que o essencial é encontrar um meio termo. “O ideal é ter equilíbrio. Saber quando usar o celular e quando focar nos estudos”, explica. Alice compartilha uma visão semelhante e sugere um uso mais direcionado do aparelho nas aulas. “Acho que usar o celular em sala para pesquisas e para aprofundar o assunto seria mais produtivo do que assistir a vídeos durante a aula”, opina.
Sophya, por sua vez, acredita que a proibição total do celular na escola não é a melhor solução. “O equilíbrio é muito importante, mas eu não concordo em proibir o celular de forma geral na escola. Sou a favor de proibir apenas em sala de aula, para garantir mais concentração e evitar perder o foco no que realmente precisa ser feito”, argumenta.
Recomendações para o equilibrado do celular |
---|
Para a pediatra Evelyn Eisenstein, coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, a regulação é um passo essencial para lidar com os desafios impostos pela tecnologia na rotina escolar. Evelyn participou da equipe que desenvolveu o Guia Crianças, Adolescentes e Telas, recém-lançado pelo governo federal. “Os adolescentes são curiosos, impulsivos e criativos. O uso descontrolado das telas tem impactos diretos na saúde mental, no sono e até na convivência escolar”, explica. Segundo a especialista, a retirada do celular pode provocar sintomas semelhantes à abstinência, mas pode ser amenizada com atividades ao ar livre e maior interação social. Confira suas recomendações: Desconectar faz bem – Estabelecer momentos sem telas ajuda a melhorar a concentração e a convivência. Regras de tempo de uso – O tempo máximo recomendado é de 4 a 5 horas por dia. Mais natureza, menos tela – Exercícios ao ar livre, caminhadas, brincadeiras e até dançar são essenciais para o bem-estar. Mediação é essencial – O uso do celular não deve ser apenas responsabilidade da escola, mas também dos pais. Estar presente e ouvir os adolescentes é fundamental. Diálogo e protagonismo – Os adolescentes são curiosos e precisam ser ouvidos. Criar momentos de troca e atividades presenciais fortalece os vínculos e incentiva um uso mais consciente da tecnologia. Confira mais dicas sobre como promover o uso saudável |