Existe formação acadêmica ideal para um gestor escolar?
Nesta segunda reportagem da série sobre liderança, em parceria com o Instituto Unibanco, o foco está nas habilidades e competências exigidas do diretor
por Ana Luísa D'Maschio (Colaborou Vinicius Oliveira) 18 de janeiro de 2022
Enfermagem é um dos cursos técnicos oferecidos pela Escola Estadual de Ensino Profissional (EEEP) Irmã Ana Zélia da Fonseca, no município cearense de Milagres (a 280 km da capital Fortaleza). Com uma coordenadora pedagógica especialista em saúde mental, o apoio da secretaria municipal de Saúde e a presença de residentes do curso de psicologia, o retorno às aulas presenciais foi marcado por oficinas e conversas sobre questões socioemocionais.
Falar (e ouvir) sobre as fragilidades causadas pela pandemia foi uma das preocupações da diretora Cícera Alves Agostinho de Sá, mais conhecida como Jucy, durante 2021. E não só: neste primeiro ano à frente da direção da escola, para a qual foi selecionada por meio de uma chamada pública, Jucy implementou a aprendizagem entre pares, com monitorias abertas aos sábados e na hora do almoço nas disciplinas de português e matemática. Além disso, conseguiu tirar do papel o curso de eletrotécnica integrado ao ensino médio.
A gestão precisa de um olhar holístico para as áreas administrativas, financeiras e pedagógicas, com formação e atualização constantes. Mas abrir canais para entender e gerenciar pessoas, para Jucy, ocupa espaço especial no exercício de liderança. “Mobilizar, sensibilizar e dialogar são os verbos e as ações fundamentais para um diretor escolar”, garante Jucy, com a segurança de quem já conhecia bem a escola e a comunidade – ela ali trabalhou entre 2012 e 2016 como coordenadora pedagógica.
A atuação de Jucy exemplifica o que a Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar, que alicerça a BNC Diretor Escolar (Base Nacional Comum do Diretor Escolar), aponta como habilidades necessárias para o gestor. Aprovado em maio de 2021 pelo CNE (Conselho Nacional de Educação), o documento ainda precisa ser homologado pelo Ministério da Educação. São dez competências gerais, desdobradas em 17 competências específicas em quatro dimensões: político-institucional, pedagógica, administrativo-financeira e pessoal e relacional. “O diretor tem a responsabilidade fundamental no desenvolvimento de uma cultura de ensino-aprendizagem eficaz e efetiva, realizando os objetivos acadêmicos e educacionais da escola. Cabe a ele liderar, coordenar e conduzir o trabalho coletivo e colaborativo para garantir a qualidade do ensino e da aprendizagem dos estudantes em todos os aspectos de seu desenvolvimento”, aponta o documento.
Quando coordenadora da escola, Jucy apoiou a implementação de cursos de formação continuada para os professores: três horas por semana eram reservadas aos estudos da Lei de Diretrizes e Bases e outros parâmetros educacionais. Vem daquela época, também, o contato direto com a comunidade escolar. E ela não se esquece do aprendizado, que segue colocando em prática, agora como diretora. “É fundamental apoiar o ensino, mas também o bem-estar das pessoas. Temos de observar a saúde emocional dos alunos, dos professores e da comunidade. Precisamos entender a escola como um espaço de transformação. Foi a educação que mudou minha vida por completo”, afirma.
Filha de agricultores, Jucy passou a infância na zona rural. A escola mais próxima ficava a 12 km de sua casa. Não havia ônibus escolar na região e ela só foi alfabetizada aos 9 anos. Aplicada, dedicou-se ao magistério e, aos 18 anos, tornou-se professora de língua portuguesa das séries iniciais por meio de um concurso. E não mais largou os estudos. Hoje, Jucy coleciona diplomas: é doutora e mestre em letras, além de especialista em língua portuguesa, arte e educação e gestão escolar. “Conhecer a escola, os projetos de vida dos alunos, dividir minha história com eles. Ter disposição para articular, estudar, repensar caminhos. Creio que esses são os caminhos para a boa formação de um diretor escolar”, complementa.
Liderança democrática
A BNC Diretor Escolar é um instrumento que pretende unificar “um conjunto de parâmetros para a atuação desse profissional da educação, em compasso com as demandas estabelecidas pela normatização da educacional nacional”.
A despeito de não existir uma única forma de liderar (as práticas de gestão são variadas, levando em consideração o contexto e o histórico do território), a liderança distribuída – aquela executada com o apoio da comunidade escolar, que participa ativamente decisões da escola – se destaca nos estudos recentes sobre o tema, entre eles os dois volumes da Coleção Políticas Públicas em Educação, do Instituto Unibanco: Liderança escolar para a melhoria da educação e Seleção de diretores escolares: desafios e oportunidades.
Feitos em parceria com a UDP (Universidade Diego Portales), do Chile, as pesquisas trazem exemplos internacionais sobre políticas de lideranças escolares e o que há de mais recente na literatura especializada.
Na América Latina, a formação de diretores é uma área que tem recebido atenção. Chile, Peru, Colômbia e Equador, por exemplo, definem as atribuições dos gestores escolares de forma centralizada, com alguns atributos comuns. “Predominam aquelas responsabilidades associadas sobretudo à gestão administrativa e institucional das escolas, enquanto a função mais pedagógica (apoiar o trabalho dos professores, gerar condições para o ensino-aprendizagem de qualidade) surge de forma secundária, segundo uma perspectiva mais normativa”, descreve o documento. Nesses quatro países, existem marcos de atuação ou parâmetros de liderança que definem responsabilidades e escopo da gestão.
“A seleção de diretores é um processo fundamental para melhorar a qualidade educacional. Um bom processo seletivo garante que os candidatos adequados cheguem à função diretiva”, explica Gonzalo Muñoz, pesquisador adjunto da Faculdade de Educação e do Programa de Liderança Educacional da UDP e um dos pesquisadores dos estudos do Instituto Unibanco. No Brasil, a Base Nacional Comum do Diretor Escolar é um passo para essa organização.
A importância da profissionalização do diretor escolar, temática ainda tímida nos países latinos, também é abordada nos documentos. “O desafio que o Brasil tem, e que a maioria dos países da América Latina também tem, é construir sistemas de formação para condições de trabalho, a fim de que a função gerencial seja atrativa, para que os melhores professores queiram ser diretores, sem problemas de seleção. São sistemas que garantem aos profissionais mais capacitados chegarem à função de gestão para dirigir as escolas”, reflete Gonzalo.
Formação acadêmica
No Brasil, informa o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), entre os mais de 160 mil diretores estaduais e municipais em atuação, a maioria conta com diplomas universitários (86,4%), principalmente em pedagogia, mas apenas um em cada dez cursou uma formação específica para a gestão educacional.
No Rio de Janeiro, por exemplo, professores montam suas chapas e planos de gestão e são eleitos como diretores pela comunidade escolar. Não há necessidade de formação exclusiva em pedagogia. “Pela legislação em vigor, os requisitos são ser concursado, efetivo da rede pública e ter três anos de regência em sala de aula”, explica Celinha Coelho, coordenadora pedagógica da ADERJ (Associação dos Diretores de Escolas Públicas do Rio de Janeiro). Após o processo, os diretores fazem um curso de apoio à formação.
“O que pedimos como associação é que a secretaria ofereça a formação em gestão, porque ninguém é obrigado, apenas pela sua graduação, a conhecer todos os campos. O diretor precisa ser responsável pelas áreas administrativas, pela gestão de pessoas… O recurso financeiro é público. Por isso, é preciso saber como lidar corretamente com as finanças e conhecer bem as legislações”, ressalta. “Também pedimos aos nossos próprios associados que se mantenham em constante estudo. Nossa coordenadoria oferece treinamento para quem precisa de apoio.”
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A importância da especialização
O curso de gestão educacional oferecido pela secretaria de Educação de Brasília foi um dos que Neide Rodrigues de Sousa, diretora da Escola Parque Anísio Teixeira, de Ceilândia (cidade-satélite de Brasília), realizou. Eleita por gestão democrática, Neide está à frente da escola complementar, de caráter não-obrigatório, há oito anos. A proposta das Escolas Parques, idealizadas pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971), é oferecer atividades culturais e esportivas aos alunos de escola pública.
Nessa unidade dirigida por Neide, são 23 atividades (como natação, canto e música, entre outras) aos jovens que cursam do 6º ao 9º ano. A capacidade é para 3,2 mil estudantes. Durante a pandemia, Neide comemora a baixa taxa de abandono: 60% dos alunos conseguiram acompanhar as oficinas e atividades on-line oferecidas pela escola.
“Cursei magistério, tenho licenciatura em educação física e busquei a especialização em gestão educacional. Sempre participo de formações continuadas”, conta. Está na troca com a comunidade escolar, porém, um dos segredos de seus 28 anos de atuação na área educacional, reconhecidos, inclusive, pela Medalha Mérito Buriti em 2018 (premiação destinada ao servidor público que tenha desempenhado suas funções de forma relevante).
“Do portão para dentro da escola, tudo é educação. Vejo a educação como ato coletivo e constante”, diz Neide, destacando a importância da avaliação institucional. “Precisamos ouvir dos alunos o que é preciso planejar e replanejar, e é preciso se despir de vaidades quando recebemos uma nota baixa”, explica a diretora, que também participa da Rede Conectando Saberes, da Fundação Lemann, na qual segue em constante contato com colegas do Brasil inteiro.
Formação contínua
“Para ambos, professores e diretores, além dos demais profissionais da educação, as oportunidades de formação continuada devem constantemente ser buscadas pelos próprios profissionais, mas devem, antes de tudo, ser asseguradas pelo sistema ou rede de ensino”, reforça a Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar. Caminho que as diretoras Jucy e Neide já seguem.”Só vamos mudar a educação se investirmos na pesquisa acadêmica”, diz Jucy.
“Acreditamos firmemente na gestão democrática na construção da vida escolar”, complementa Celinha Coelho, da ADERJ. “É preciso observar os vários ângulos das personagens que atuam nesse cenário, da coordenação, aos pais, dos alunos ao conselho e ao grêmio, para a tomada de decisões”, sugere.
Para Gonzalo, o que se aprende com a revisão de experiências é que os governos devem investir em diferentes maneiras de formar lideranças. “O Brasil é um país grande demais para estabelecer que há apenas uma forma de formar diretores”, ressalta. “Devemos ter sistemas de formação para que, de alguma forma, todos os professores possam ter habilidades de liderança. Estamos falando de profissionais capazes de liderar o processo de melhoria da qualidade da sua escola, e isso exige conhecimento e maior legitimidade pedagógica”, alerta o especialista.